domingo, 29 de novembro de 2009

Democracia Econômica - Ladisalau Dowbor

Democracia Econômica
Um passeio pelas teorias
Ladislau Dowbor
São Paulo, 16 de dezembro de 2006

1 – Uma visão mais ampla .............................................................................................. 4
2 - Buscando resultados .................................................................................................. 7
3 - Medindoresultados.................................................................................................... 8
4 - Financeirização da ciência econômica .................................................................... 11
5 - Da especulação ao investimento socialmente útil ................................................... 16
6 - Poder econômico e poder político ........................................................................... 21
7 - A teoria do consumo................................................................................................ 25
8 - O assédio comercial................................................................................................. 29
9 - A infra-estrutura econômica e as economias externas............................................. 37
10 - O Desenvolvimento local ...................................................................................... 41
11 - A economia do conhecimento ............................................................................... 46
12 - A economia das áreas sociais ................................................................................ 54
13 - A economia do tempo............................................................................................ 57
14 - A teoria econômica da sustentabilidade ................................................................ 63
15 – A política macroeconômica .................................................................................. 70
16 - A teoria da economia mundial............................................................................... 77
17 – O paradigma da colaboração................................................................................. 84
18 – A economia das organizações da sociedade civil ................................................. 90
19 – A ética na economia.............................................................................................. 95
20 – Democracia econômica....................................................................................... 102
Conclusões .................................................................................................................. 109
Bibliografia ................................................................................................................. 113
Agradeço ao Banco do Nordeste que, ao promover a conferência sobre o legado de Celso Furtado no final
de 2005, me estimulou a produzir o presente ensaio. E agradeço a ajuda de José Pascoal Vaz pelas
numerosas idéias sugeridas e o apoio na revisão.
Nota técnica: Este ensaio apoia-se essencialmente em literatura internacional. Em numerosas citações não
foi possível localizar a tradução em português, e muitos trabalhos simplesmente não têm edições em
português. De forma geral, as citações de obras estrangeiras foram traduzidas por mim, e em vários casos
foi acrescentado em nota de rodapé o texto original. (L.D.)
Copyleft - Ladislau Dowbor - http://dowbor.org

3
Democracia Econômica
Um passeio pelas teorias
“A evolução das estruturas de poder no capitalismo avançado
escapa aos esquemas teóricos que herdamos do passado” - C.
Furtado – Em busca de novo modelo – Paz e Terra, 2002, p. 9
“Chegou o tempo de reconhecer que todos os seres humanos
têm direitos econômicos iguais”. Marjorie Kelly, The Divine
Rights of Capital, p. 96
‘”If economists could manage to get themselves thought of as
humble, competent people, on a level with dentists, that would
be splendid!” – Economic Possibilities for our Grandchildren,
1930 1
A realidade econômica e social está mudando profundamente. Com isso, é natural que
mude um instrumento importante da sua interpretação, a ciência econômica. Eram
diferentes as regras do jogo nas sociedades agrárias, onde a referência principal era o
controle da terra, ou na sociedade industrial, onde o eixo de discussão era a propriedade
dos meios de produção. E quando o conhecimento, os serviços sociais e outros
“intangíveis” se tornam centrais na economia, podemos manter os mesmos referenciais
de análise?
Lendo recentemente um livro pequeno mas extremamente rico de Celso Furtado, Em
Busca de Novo Modelo, me dei conta a que ponto os referenciais mudaram, a que ponto
precisamos de outros conceitos, de um olhar renovado. Veio-me então a idéia de fazer um
tipo de revisão de literatura econômica internacional recente, buscando responder a uma
pergunta básica: haveria uma nova visão em construção? Estaria surgindo uma nova
ciência econômica mais afinada com as problemáticas atuais, mais próxima das
necessidades da sociedade em geral?
Não se trata, evidentemente, de navegar pelo imenso espectro da literatura econômica em
geral. Os malabarismos teóricos e econométricos que tentam justificar a fortuna dos ricos,
desculpar a pobreza dos pobres, ou trivializar a tragédia ambiental que ronda o planeta
simplesmente não interessam. Inclusive porque o seu esforço é essencialmente cosmético,
tentando dourar uma pílula cujo gosto amargo é cada vez mais evidente. O que nos
interessa aqui, são as propostas que buscam alternativas realistas e decentes ao escândalo
econômico que aí está.
1 “Se os economistas pudessem conseguir ser vistos como pessoas humildes e competentes, no nível dos dentistas, isto seria esplêndido”
4
Dialogando com algumas idéias centrais de Celso Furtado, e revendo uma série de
estudos que têm surgido na literatua econômica internacional, achei interessante trabalhar
com a hipótese de que algo novo está se desenhando no horizonte das teorias, uma visão
que já não seria uma versão remendada de teorias outrora importantes, mas que responde
de maneira mais realista a desafios históricos que são novos.
Esta visão, no seu conjunto, pode ser resumida no conceito de democracia econômica. A
democracia política, a idéia de que o poder sobre a sociedade deve ser exercido de acordo
com um pacto social e de forma democrática, foi um avanço impressionante, quando
consideramos a relativa proximidade histórica de reis que exerciam poder por “direito
divino”, dos impérios coloniais que datam ainda de poucas décadas, ou das diversas
formas de ditadura que subsistem.
A democracia econômica nos parece ainda um conceito pouco familiar. Bertrand Russell,
no entanto, descrevia nos anos 1940 um paradoxo: consideramos ultrapassado uma
família real querer mandar em um país, ou doar uma região a um sobrinho, com
habitantes e tudo, mas achamos normal uma família – os Rockefeller por exemplo –
disporem do poder econômico e político de que dispõem, e o repassarem, comprarem ou
venderem com trabalhadores e tudo, como se fossem feudos pessoais. Hoje, com 435
familias no mundo manejando ao seu bel-prazer recursos superiores à renda da metade
mais pobre da população mundial, torna-se legítimo ampliar a intuição de Russell, e
trazer para a discussão da ciência econômica um tema central: a economia precisa ser
democratizada.2
1 – Uma visão mais ampla
Um dos legados mais importantes de Celso Furtado é o seu esforço por fazer a teoria
econômica “colar” com a realidade. Tanto o evidencia a citação que abre o presente
ensaio, como a sua avaliação direta do que aprende o estudante de economia: “Haverá
lido de forma assistemática muito material sobre desenvolvimento econômico, conquanto
nem sempre tenha encontrado conexão clara entre essas leituras e a realidade”.3 Esse
“nem sempre” é pura bondade do economista: todos sentimos a brecha crescente entre o
que estudamos, ou ensinamos, e as dinâmicas sociais. A teoria já não ilumina
adequadamente o caminho, quanto a isto há poucas dúvidas. No entanto, estão surgindo
coisas novas, e respondendo ao desafio de Celso Furtado, optamos por sistematizar
alguns aportes recentes, olhando de certa maneira o que está surgindo no horizonte das
teorias econômicas em diversos países, e concentrando-nos em autores que de certa
forma tendem a fechar a brecha.
2 “Aceitamos o princípio da hereditariedade no que se refere ao poder econômico, enquanto o rejeitamos no
que concerne ao poder político. As dinastias políticas desapareceram, mas as dinastias econômicas
sobrevivem.” – Bertrand Russell – The History of Western Philosophy, p. 622 3 Celso Furtado – Em busca de novo modelo – Reflexões sobe a crise contemporânea – Paz e Terra, Rio de
Janeiro 2002, p. 69
5
Tânia Bacelar apresenta Celso Furtado como um “keynesiano de gauche”, Ricardo
Bielschowsky avalia o seu método como sendo “histórico-estrutural”.4 Ambas
qualificações são sem dúvida corretas, mas não esgotam a visão deste homem que aliava
preocupações sociais, postura ética e uma abertura teórica que o levaram a utilizar
conceitos das mais variadas correntes e áreas científicas. O importante para ele era
entender o mundo, e propor alternativas. Talvez um dos traços mais importantes de Celso
Furtado, em termos da herança teórica que nos deixa, é esta recusa de forçar a realidade
para dentro de teorias preconcebidas. O foco está na realidade, com toda a sua riqueza e
complexidade, vista sobre o pano de fundo dos valores básicos de justiça social,
viabilidade econômica e, sobretudo nas obras mais recentes, sustentabilidade ambiental e
riqueza cultural. A teoria, neste sentido, volta a ser um instrumento a serviço do
progresso humano, deixando para trás um arquipélago de refúgios teóricos acadêmicos e
de congelamentos ideológicos. Trata-se de um processo permanente de reconstrução
teórica para acompanhar a mudanças da realidade.
Uma forma de enfrentar o “desgarramento” teórico mencionado é tentar sistematizar e
avaliar a evolução das diferentes correntes teóricas tradicionais. É o que faz, por
exemplo, um número especial da publicação francesa Alternatives Economiques,5 que
mostra a evolução dos keynesianos para o neo-keynesianismo, dos liberais para o neo-liberalismo,
da corrente da economia institucional para o neo-institucionalismo e assim
por diante. A partícula ”neo” constitui frequentemente o que de mais novo apresentam as
digressões teóricas. É cômoda, pois permite fazer uma pequena ponte entre a teoria
herdada e uma realidade que teima em seguir o seu caminho. Mas nos dá igualmente um
certo sentimento de estar usando remendos, onde talvez sejam necessárias visões novas.
O fato é que de “neo” em “pós” fomos construindo algo que se assemelha cada vez mais
a uma colcha de retalhos, e os eixos tradiconais podem inclusive aprisionar o novo, pelo
peso histórico que carregam.
Outra visão consiste em tentar nos voltar de cabeça fresca para os dados básicos da
própria realidade econômica e social, revalorizar o enfoque empírico, e tentar expor da
maneira mais clara possível as diversas transformações que se manifestam, eixos de
mudança como por exemplo a dominância das dinâmicas financeiras, deixando para
mais tarde as teorizações mais amplas e eventuais etiquetas.
Não há dúvida que nos sentimos todos um pouco órfãos. Não órfãos de valores, pois a
busca do que Paulo Freire chamava singelamente de “uma sociedade menos malvada”
continua a nos mover a todos, ou pelo menos aos que não esqueceram. Mas órfãos de
uma geração de pensadores que se foi, levando Celso Furtado, mas também o próprio
Paulo Freire, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Milton Santos e outros gigantes que
constituíram os nossos referenciais. Na ausência dos grandes mestres, e frente aos
desafios cada vez mais dramáticos que despontam, somos obrigados a prosseguir na
4 Tânia Bacelar de Araújo – Celso Furtado: economista e cientista social – Teoria e Debate,
fevereiro/março 2005, p. 38 e ss. 5 Alternatives Economiques, La science économique aujourd’hui, no número especial de 2003, 3º trimestre,
apresenta uma visão geral das correntes atuais de pensamento econômico – www.alternatives-economiques.fr
6
permanente reconstrução da nossa capacidade de entender o mundo, e de viabilizar
alternativas.
No século XX as coisas pareciam mais simples. Fossemos de direita ou de esquerda,
havia um “caminho” relativamente reto, avenidas teóricas que bastava trilhar. Na
esquerda, o caminho seria a estatização dos meios de produção, o planejamento central e
uma classe redentora, o proletariado. Na direita, outro caminho reto, com privatização,
mecanismos de mercado e outra classe redentora, a burguesia. Definiam-se assim,
simetricamente, o marco institucional da propriedade, o mecanismo dominante de
regulação e a base social do poder. Frente à sociedade complexa que enfrentamos, estes
modelos murcharam. O estatismo de esquerda saiu simplesmente do horizonte, ainda que
o movimento pendular para a direita tenha fragilizado o Estado de maneira preocupante,
gerando tendências caóticas crescentes. E a visão privatista da direita, resumida no
equivalente capitalista do Pequeno Livro Vermelho, o Consenso de Washington, se
mantém não por credibilidade teórica, mas por servir interesses dominantes.
O fato é que, com o aquecimento global, a erosão dos solos, a destruição da
biodiversidade, a liquidação da vida nos mares, a polarização generalizada entre ricos e
pobres, e a progressiva perda da capacidade de governo – e portanto da própria
capacidade de pôr ordem nas coisas – estamos rapidamente nos orientando para impasses
estruturais dramáticos, no sentido literal e não no sentido teatral da palavra. Só os
desinformados, os mentalmente confusos e os privilegiados pelo processo deixam de
perceber o que está em jogo.
A visão que aqui sustentamos, é que numerosas análises pontuais de processos concretos
de mudança estão contribuindo para o desenho de uma nova configuração teórica; não se
trata de uma macro-teoria como foi a de Marx para a segunda metade do século XIX, mas
de um conjunto de estudos que partem do real, e que contribuem gradualmente para
construir uma outra visão de mundo, ainda pouco definida, e cujas linhas mestras apenas
começam a aparecer. Trata-se sem dúvida de teorias que surgem no segmento da
esquerda tradicional que soube repensar as suas antigas simplificações. Mas trata-se
também de um número crescente de teóricos do “sistema”, que estão deixando o barco
que os carregou para o sucesso, ao se darem conta dos absurdos gerados no planeta. Não
se trata de mais um “neo”, mas de contribuições que, ainda que dispersas e pontuais,
pertencem à construção de uma arquitetura diferente.
Cada um de nós tem o seu universo diferenciado de leituras. Ainda que sabendo que é
rigorosamente impossível acompanhar toda a produção científica publicada mesmo em
áreas científicas relativamente limitadas, tentamos aqui identificar novos pontos de
referência. Somos, de certa forma, condenados aqui a uma metodologia de esboços, ou de
impressionismo: como numa pintura de Renoir, de perto vemos inúmeros pontos sem
sentido. Quando nos afastamos da pintura, no entanto, surge uma forma. A visão que a
sustenta está apenas surgindo.
7
2 - Buscando resultados
No nível mais geral, há uma reabilitação a se fazer da ciência econômica como
instrumento de orientação de políticas. Celso Furtado explicita isto de maneira muito
clara: “Impõe-se formular a política de desenvolvimento com base numa explicitação dos
fins substantivos que almejamos alcançar, e não com base na lógica dos meios imposta
pelo processo de acumulação comandado pelas empresas transnacionais”6 . Em termos
metodológicos, este ponto é central. Ultimamente temos olhado para a economia apenas
do ponto de vista do ritmo do crescimento, esquecendo-nos de pensar o que está
crescendo, e para quem. Ou então, proclamando uma falsa objetividade, nos limitamos a
elaborar modelos que permitam prever se o dólar vai subir ou baixar, ou se a última
bomba no Iraque vai afetar o preço do petróleo. Temos de resgatar aqui um ponto
evidente: a economia é um meio, que deve servir para o desenvolvimento equilibrado da
humanidade, ajudando-nos, como ciência, a selecionar as soluções mais positivas, a
evitar os impasses mais perigosos.
Cabe aqui lembrar a importância que foi o surgimento, em 1990, do Relatório sobre o
Desenvolvimento Humano 7 , das Nações Unidas, que sugere uma fórmula simples mas
poderosa: temos de assegurar uma sociedade economicamente viável, socialmente justa, e
ambientalmente sustentável. Na medida em que esta articulação de objetivos está se
tornando aceita de forma generalizada, com a disponibilização anual de um balanço
mundial que cruza os três enfoques, e com todas as limitações dos estudos gerais, temos
aí um “norte” de grande importância. Na academia, ainda temos dificuldades, pois
algumas áreas científicas estudam o social, outras o econômico, outras ainda o ambiental,
quando as iniciativas têm de ser vistas simultâneamente sob os três ângulos. A
segmentação está sendo cada vez mais claramente contestada, pois impede a visão
sistêmica do processo.
O essencial, no entanto, é ultrapassar uma falsa objetividade da ciência econômica, como
se apenas se limitasse a fazer contas, a “constatar”: a economia parece tão complicada
porque diversas correntes servem simplesmente a interesses diferentes, e enfrentamos
análises contraditórias quando os interesses também o são. A Federação dos Bancos nos
diz que o Brasil tem um sistema de intermediação financeira sólido, a julgar pelos lucros.
Não diz que esta solidez se nutre da fragilização dos tomadores de empréstimos, e em
particular da área produtiva da economia. O leitor frequentemente vê um caos científico
onde há simplesmente a defesa de interesses divergentes, cada uma das partes se
apresentando como “científica”. Ao cientista econômico que não representa um grupo
particular, cabe explicitar os interesses, e buscar o interesse social.
Uma ótima visão desta volta da ciência econômica a uma visão normativa, centrada na
construção de objetivos que nos interessam como humanidade, é o livro de Herman Daly
e de John Cobb Jr., “For the Common Good: redirecting the economy toward community,
the environment and a sustainable future”.8 Devemos, segundo os autores, reconhecer os
6 C. Furtado, Op. Cit. p. 36 7 Os relatórios, elaborados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, PNUD, estão
disponíveis em http://undp.org/hdro 8 Herman E. Daly and John B. Cobb jr., For the Common good – Beacon Press, Boston 1994, 534 p.
8
limites dos mecanismos herdados: “A mudança envolverá correção e expansão, uma
atitude mais empírica e histórica, menos pretensão de ser uma “ciência”, e a vontade de
subordinar o mercado a objetivos que ele não está equipado para determinar”. Esta
mudança resultaria da perda, por parte do mercado, de sua capacidade básica de alocar
recursos escassos entre usos alternativos: “Tres grandes categorias de problemas com o
mercado foram identificadas pelos economistas: (1) a tendência para a competição de ser
auto-eliminadora (self-eliminating); (2) o efeito corrosivo do auto-interesse, que o
mercado implica, sobre o contexto moral da comunidade, e (3) a existência de bens
públicos e das externalidades”.9
Esta visão se materializa em recomendações recentes de estudos das Nações Unidas:
devemos nos concentrar “em políticas explícitas para evitar tanto os efeitos negativos da
globalização sobre o desenvolvimento social como as novas ameaças colocadas por
reformas centradas em mercados. Uma ação deliberada deve ser empreendida para
garantir que as identidades e direitos culturais, religiosos e étnicos sejam explicitamente
protegidos em acordos internacionais e em legislações nacionais e locais, e que esta
proteção se traduza num código de conduta implementável para as corporações nacionais
e transnacionais bem como os interesses privados que operam sob jurisdição nacional”.10
Quando falamos em “ação deliberada”, já não nos restringimos a obedecer a
“mecanismos”. Em outros termos, não basta criar um ambiente favorável ao mercado, é
preciso orientar a economia para o que dela a sociedade deseja. O “bem comum” parece
uma boa definição do que queremos, pois compreendemos cada dia mais que direcionar a
economia em função das minorias dominantes, gera problemas para todos. Esta idéia, de
resgatar a ciência econômica como instrumento da construção do bem comum, por
simples que seja, é importante. Falta explicitar, naturalmente, o que entendemos por
“bem comum”.
3 - Medindo resultados
Se quisermos orientar a economia, canalizando racionalmente os nossos esforços
produtivos para resultados que nos interessem, devemos construir os instrumentos de
avaliação destes resultados. Celso Furtado utiliza o conceito de “rentabilidade social”,
conceito que diz o essencial, mas que pode nos levar a confundir a visão da produtividade
macroeconômica com a produtividade dos setores que normalmente identificamos com o
“social”, como educação, saúde etc. Talvez seja mais explícito o conceito de
produtividade sistêmica. 11
9 Daly & Cobb, op. Cit., p. 8 e p. 49 10 UN – The Inequality Predicament: Report on theWorld Social Situation 2005 – United Nations, New
York, 2005, p. 135 11 Todos andam tateando em busca de um conceito que dê expressão mais ampla aos resultados socio-econômicos
esperados, já que a simples produtividade econômica é estreita demais para refletir os objetivos
sociais. Jörg Meyer-Stamer utiliza competitividade sistêmica no seu trabalho sobre Estratégias de
Desenvolvimento Local e Regional; The Economist utiliza o conceito de “social return” ao calcular o
impacto de investimentos sociais que façam “a maior contribuição possível aos problemas da sociedade”.
9
A lógica básica é simples: quando um grande produtor de soja expulsa agricultores para
as periferias urbanas da região, podemos eventualmente dizer que aumentou a produção
de grãos por hectare, a produtividade da empresa rural. O empresário dirá que enriqueceu
o município. No entanto, se calcularmos os custos gerados para a sociedade com as
favelas criadas e com a poluição das águas, por exemplo, ou o próprio desconforto de
famílias expulsas das suas terras, além do desemprego, a conta é diferente. Ao calcular o
aumento de produção de soja, mas descontando os custos indiretos gerados para a
sociedade, o balanço sistêmico será mais completo, e tecnicamente correto. Ou seja,
temos de evoluir para uma contabilidade que explicite o resultado em termos de
qualidade de vida, de progresso social real.
De forma semelhante, quando um país vende os seus recursos naturais, isto aparece nas
nossas contas como aumento do Pib, quando na realidade o país está vendendo recursos
naturais herdados, que não teve de produzir e que não vai poder repôr, e portanto está se
descapitalizando, aumentando a riqueza imediata às custas das dificuldades futuras.
O que herdamos, em termos de metodologia, é o sistema de contas nacionais elaborado
ainda nos anos 1950 no quadro das Nações Unidas, com ajustes em 1993, e que nos
fornece o famoso Pib, soma dos valores e custos de produção de bens e serviços,
restringida portanto à área de atividades mercantís. Não vamos aqui fazer mais uma
descrição dos limites desta metodologia, hoje bastante óbvios.12 O essencial é que a partir
de 1990, com as visões de Amartya Sen 13 e a metodologia dos indicadores de
desenvolvimento humano (IDH) houve uma inversão radical: o ser humano deixa de ser
visto como um instrumento para servir às empresas – na época o Banco Mundial dizia
que a educação era boa porque aumentaria a produtividade empresarial – e passa a ser
visto como o objetivo maior. Em outros termos, o social deixa de ser um meio para
assegurar objetivos econômicos; pelo contrário, o econômico passa a ser visto como um
meio para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Uma vida com saúde, educação,
cultura, lazer, segurança, é o que queremos da vida. E a economia tem de se colocar a
serviço destes objetivos sociais, da prosaica qualidade de vida.
A qualidade de vida é evidentemente mais difícil de medir do que o valor das vendas de
uma empresa, ou o custo de funcionamento de uma escola pública, sem falar da economia
do voluntariado e do trabalho feminino domiciliar. Mas a realidade é que enquanto não
adotarmos formas aceitas e generalizadas de medir o valor final, os resultados, das nossas
atividades, não teremos como avaliar nem políticas públicas nem privadas. Hoje,
aproveitando e indo além das metodologias do IDH, já se avançou muito. O livro de Jean
Gadrey e de Florence Jany-Catrice, Les nouveaux indicateurs de richesse (os novos
indicadores de riqueza), apresenta uma sistematização extremamente bem organizada do
novo quadro conceitual das contas nacionais que está se desenhando.14 Assim, passa-se a
12 A este respeito, ver o nosso A Reprodução Social, Editora Vozes, Petrópolis, 2003 – http://dowbor.org 13 O livro básico de Amartya Sen, Desenvolvimento como Liberdade, foi editado pela Companhia das
Letras, São Paulo, 1999, editora@companhiadasletras.com.br 14 Jean Gadrey et Florence Jany-Catrice, Les nouveaux indicateurs de richesse, Ed. La Découverte, Paris
2005, www.editionsladecouverte.fr - ver dados mais detalhados sobre o livro em http://dowbor.org sob
“dicas de leitura”. A edição brasileira é do Senac, 2006, editora@sp.senac.br ; outra publicação excelente é
o livro de Patrick Viveret, Reconsiderar a Riqueza, Ed. UNB, Brasilia, 2006
10
diferenciar a contabilização da produção (outputs), dos resultados efetivos em termos de
valores sociais (outcomes); os indicadores econômicos, sociais e ambientais; os
indicadores objetivos (taxa de mortalidade infantil, por exemplo) e os subjetivos
(satisfação obtida); os resultados monetários e não monetários. Com isto foram sendo
construidas várias metodologias, hoje bastante bem embasadas, como o índice de bem-estar
econômico de Osberg e Sharpe, o indice de bem-estar econômico sustentável
(IBED), o indicador de progresso real (IPV), o indicador de poupança real (genuine
savings) do Banco Mundial e outros.
Particularmente interessante é a metodologia adotada pelo Calvert-Henderson Quality of
Life Indicators: a new tool for assessing national trends 15 , um autêntico balanço das
contas nacionais aplicado aos Estados Unidos. Em vez de ficar na soma do produto
monetário, distribui as contas em 12 áreas, incluindo renda mas também direitos
humanos, segurança pública, qualidade do meio ambiente e assim por diante. O resultado
é que pela primeira vez os americanos têm um instrumento de avaliação de como e em
que áreas o país está melhorando (ou piorando). O interessante é que não foi preciso
construir novos indicadores ou realizar novas pesquisas: partiram dos dados existentes,
selecionaram os mais confiáveis, e simplesmente os cruzaram de maneira inteligente
segundo os grandes eixos de resultados práticos esperados pela população.
O próprio Banco Mundial está finalmente repensando as suas metodologias. No World
Development Indicators 2003 16 , no quadro 3.15 que avalia as poupanças, o Banco passou
a contabilizar a extração de madeira, por exemplo, não como cifra positiva (aumento do
PIB), mas como descapitalização do país. Na mesma lógica, paises que exportam o
petróleo passam a ser vistos como gastadores do seu capital natural, apresentando taxas
de poupança negativas. Na própria produção de automóveis passou-se a deduzir, no
cálculo, os gastos adicionais com saúde causados pela poluíção. Como as metodologias
do Banco Mundial têm um poder forte de indução, esta abertura é bem-vinda, e vai
influenciar contas nacionais em numerosos países.
Mas há igualmente soluções criativas bastante práticas. Na região de Cascavel (Paraná),
por exemplo, 22 municipios passaram a elaborar indicadores municipais de qualidade de
vida 17 . São 26 indicadores, relativamente simples, que conjugados permitem avaliar se a
situação da população está ou não melhorando, ano por ano. Assim as pessoas podem
orientar o seu voto segundo resultados reais para as suas vidas, e não segundo quem
distribuiu mais camisetas. A inovação não exigiu grandes cálculos econométricos, pois os
dados existem, mas significou uma mudança política extremanente importante: a
informação é organizada para a população, e os dados levantados são os que mais
interessam à qualidade de vida da população. Ou seja, a contabilidade econômica passa a
ser um instrumento de cidadania, e as iniciativas dos diversos atores públicos e privados
15 Hazel Henderson, Jon Lickerman and Patrice Flynn (editors) – Calvert Henderson Quality of Life
Indicators: a new tool for assessing national trends (Indicadores Calvert-Henderson de qualidade de vida:
uma nova ferramenta para avaliar terndências nacionais). – www.calvertgroup.com 16 World Bank – World Development Indicators 2003, Washington, 2003, páginas 174 e ss. 17 Programa Indicadores de qualidade de vida de Cascavel – Conceito e Metodologia de Aplicação –
Versão 1, outubro de 2001 (documento avulso).
11
serão avaliadas em termos de resultados finais para a sociedade, pelo menos no território
mais próximo, onde as pessoas podem mais facilmente participar dos processos de
decisão.
De toda forma, o que estamos apontando, é que a mudança do enfoque das contas
econômicas é essencial. Um banco que desvia as nossas poupanças para aplicações
financeiras especulativas, e apresenta lucros elevados, aumenta o Pib, mas reduz a nossa
produtividade sistêmica ao descapitalizar as comunidades, ao reduzir o uso produtivo das
nossas poupanças. O sistema alemão de intermediação financeira, baseado em pequenas
caixas econômicas municipais, não apresenta grandes lucros, mas canaliza as poupanças
para investimentos socialmente úteis, gerando melhores condições de vida para todos.18
O “lucro”, nesta visão, tem de ser social, e a produtividade tem de ser sistêmica. O fato
da ciência econômica evoluir para esta contabilidade integral, e não apenas micro-econômica,
constitui um progresso importante.19
De forma geral, um avanço importante para as ciências econômicas é a mudança radical
de como organizamos a informação sobre os resultados obtidos. Enquanto a medida se
resumia à soma do valor de produção das empresas e dos custos dos serviços públicos,
naturalmente passávamos a achar que o progresso só se dá através do lucro empresarial, e
que inclusive os serviços públicos representam um ônus. Quando passamos a avaliar de
maneira sistêmica os resultados para a sociedade no seu conjunto, podemos ter uma visão
inteligente do progresso real obtido. A construção de sistemas mais realistas de avaliação
do nosso progresso econômico e social vem corrigir uma deficiência estrutural da ciência
econômica.
Grande parte do nosso sentimento de impotência frente às dinâmicas econômicas vem do
fato que simplesmente não somos informados quanto à contribuição das diversas
iniciativas para o nosso bem-estar. Pessoas desinformadas, naturalemente, não
participam. Não há democracia econômica sem a informação e a transparência
correspondentes.
4 - Financeirização da ciência econômica
Outro eixo de análises busca entender o que acontece com as intermediações financeiras.
As pesquisas teóricas dominantes, curiosamente, não se preocupam em tornar as nossas
poupanças mais produtivas, mas em gerar instrumentos mais avançados para se fazer
dinheiro com aplicações financeiras. Assim a área das finanças passou a ser analisada de
18 Os dados sobre a gestão da poupança na Alemanha podem ser encontrados em The Economist, June 26th
2004, p. 77. The Economist naturalmente lamenta que os legisladores regionais da Alemanha “se recusem a
autorizar a venda dos bancos de poupança, que são de propriedade das comunidades locais, para
compradores do setor privado”. 19 Para uma discussão do papel da informação nesta apropriação cidadã das políticas econômicas, ver o
nosso artigo Informação para a Cidadania e o Desenvolvimento Sustentável, http://dowbor.org , sob
“Artigos Online”. É importante mencionar aqui os aportes metodológicos como os de Marcio Pochmann
nos estudos sobre a distribuição da riqueza no Brasil, e de Aldaiza Sposatti sobre os “mapas de exclusão”.
12
forma isolada das suas consequências e utilidade econômica, e a especulação financeira
adquiriu nas ciências econômicas um papel central.20
Continua a ser muito atual nesta área o livro de Joel Kurtzman, A Morte do Dinheiro.
Como o dinheiro passou a ser uma notação eletrônica, que viaja na velocidade da luz nas
ondas da virtualidade, o mundo se tornou um cassino global. Mais importante para nós, o
lucro e o poder gerados pela especulação financeira fizeram com que a ciência econômica
se concentrasse de maneira obsessiva nesta área. A lista dos prêmios Nobel de economia
constitui essencialmente, com raríssimas exceções como Amartya Sen, uma lista de
especialistas em comportamento do mercado financeiro. A situação é agravada pelo fato
do Nobel de economia não ser realmente um prêmio Nobel, mas um prêmio do Banco da
Suécia. Peter Nobel, neto de Alfred Nobel que instituiu o prêmio, explicita a confusão
voluntariamente criada por um segmento particular de economistas: “Nunca na
correspondência de Alfred Nobel houve qualquer menção referente a um Prêmio Nobel
de economia. O Banco Real da Suécia depositou o seu ovo no ninho de um outro pássaro,
muito respetiável, e infringe assim a “marca registrada” Nobel. Dois terços dos prêmios
do Banco da Suécia foram entregues a economistas americanos da escola de Chicago,
cujos modelos matemáticos servem para especular nos mercados de ações – no sentido
oposto às intenções de Alfred Nobel, que entendia melhorar a condição humana”.
Portanto, o dinheiro não vem do fundo Nobel, e os critérios de atribuição do prêmio
partem da própria área financeira, que se apropriou assim de uma respeitabilidade que
não tem, através de um processo fraudulento.O fato da área financeira ter conseguido que
o prêmio seja entregue na mesma cerimônia na Suécia, contribui para a confusão, mas
não para a ética do processo.21
Outra demonstração de força deste segmento da economia, é o poder das agências de
avaliação de risco. Todos os nossos jornais trazem com alarde a última cotação do “risco
Brasil”. O muito conservador The Economist chega a se indignar com o peso que
adquiriu este oligopólio de tres empresas – Moody’s, Standard & Poor (S&P) e Fitch –
que “fazem face a críticas pesadas nos últimos anos, por terem errado relativamente a
crises como as da Enron, da WorldCom e da Parmalat. Estes erros, a importância
crescente das agências, a falta de competição entre elas e a ausência de escrutínio externo
estão começando a deixar algumas pessoas nervosas”. The Economist argumenta também
20 Recentemente um canal de Tv pediu-me uma entrevista sobre como eu achava que as bolsas abririam
depois de um fim de semana prolongado. Expliquei à entrevistadora que aplicações financeiras não eram a
minha área. Reagiu surpresa: “Mas o senhor não é economista? Então o senhor entende de quê?” É muito
significativo um grande órgão de imprensa achar que economia se resume à análise de aplicações
financeiras ou de mecanismos especulativos. O próprio termo “mercado” hoje adquiriu esta conotação. 21 A este respeito ver o artigo de Hazel Henderson no Le Monde Diplomatique de fevereiro de 2005, p. 28
– O nome formal do “nobel” de economia é “Prêmio do Banco da Suécia em ciências econômicas em
memória de Alfred Nobel”, nome que facilitou a fraude: os economistas só usam a primeira e a última
palavra. O prêmio não é pago pela Fundação Nobel. Wikipedia apresenta os fatos: “The Bank of Sweden
Prize in Economic Sciences in Memory of Alfred Nobel, sometimes referred to as the Nobel prize in
economics, was not a part of Nobel's will. It was instituted in 1969 by Sveriges Riksbank, the Bank of
Sweden. Since this prize has no foundation in Nobel's will, and is not paid for by his money, it is
technically not a Nobel Prize. However, it is awarded with the official Nobel prizes”. É significativo que
Yunus, um dos economistas mais inovadores da atualidade, tenha sido reconhecido por um prêmio Nobel
da Paz.
13
que as agências de avaliação são pagas pelos que emitem títulos, e não por investidores
que utilizarão as avaliações de risco, com evidentes conflitos de interesse. O resultado é
que “a mais poderosa força nos mercados de capital está desprovida de qualquer
regulação significativa”.22
O essencial da especulação financeira, é que consiste em acumular riqueza sem precisar
produzir a riqueza correspondente. Em termos práticos, são pessoas que vivem do esforço
dos outros, e o ganho de um corresponde à perda de outro. Joseph Stiglitz entendeu isto, e
escreveu um livro forte e de leitura simples, Globalization and its discontents,23
mostrando como os países em dificuldade precisam de mais capital para se reequilibrar, e
é justamente o momento em que os capitais especulativos fogem, quebrando o país.
Stiglitz ilustra a sua visão do papel da liberalização dos capitais com os caso do Sudeste
Asiático, mas o mesmo raciocínio se aplica por exemplo à Argentina no momento do
“corralito”.24
A teoria oficial do Fundo Monetário Internacional,
amplamente dominante, aparece como cínica frente a estas
novas dinâmicas: “Os benefícios fundamentais da
globalização financeira são bem conhecidos: ao canalizar
fundos para os seus usos mais produtivos, ela pode ajudar
tanto os países desenvolvidos como os em via de
desenvolvimento a atingir níveis mais elevados de vida.”
25
O processo real é inverso. Descapitaliza-se o setor
produtivo, o Estado, as comunidades e o consumidor. A
liberalização dos fluxos de capital que deveria teoricamente
“ canalizar fundos para os seus usos mais produtivos ” leva
pelo contrário à drenagem dos recursos para fins
especulativos, e força as empresas a buscarem o
autofinanciamento, gerando um feudalismo financeiro em que
cada um busca a autosuficiência, perdendo-se justamente a
capacidade das poupanças de uns irrigarem os investimentos
de outros. O efeito é rigorosamente inverso ao previsto, ou
imaginado pelo Fundo, mas rigorosamente coerente com a
economia realmente existente.
O interessante para nós aqui é que não se trata mais de
mecanismos econômicos objetivos, do tipo “ reações do
mercado” : trata-se da montagem consciente de um processo de
desestabilização econômica e financeira, que envolve
22 The Economist, Credit-rating agencies: Special Report – 28 de março de 2005, p. 67 e ss. A última
citação é de Glenn Reynolds, de uma firma independente de pesquisa de crédito, no mesmo artigo. 23 Joseph Stiglitz, Globalization and its discontents, W.W. Norton & Cy., New York , 2002 – publicado no
Brasil com o título A Globalização e seus Malefícios, Ed. Futura. 24 Stiglitz analisa, no caso asiático, o que ele chama de “the naked self-interest of financial markets”, e
constata que “capital flows out of a country in a recession, prescisely when the country needs it most, and
flows in during a boom, exacerbating inflationary pressures. Sure enough, just at the time the countries
needed outside funds, the bankers asked for their money back”. (Stiglitz, po. Cit., p. 100). Para o caso
Argentino, ver o nosso Altos juros e descapitalização da economia, http://dowbor.org sob “Artigos
Online”. 25 Finance & Development, IMF, March 2002, p. 13
14
gigantescas propinas e a articulação de uma rede de amigos
no governo americano, em Wall Street, nas organizações
financeiras multilaterais e nas grandes empresas. Constituem
processos decisórios que não obedecem aos fins declarados, e
muito menos a mecanismos de mercado. Podemos naturalmente
colocar nomes feios neste processo, chamar de imperialismo
financeiro, por exemplo, mas na realidade trata-se de
mecanismos de manipulação político-financeira que não se
encontram nos compêndios tradicionais, e que autores como os
acima gradualmente “desmontam” , num tipo de engenharia
reversa, explicitando “ como funciona” um determinado
segmento de atividades econômicas a partir de exemplos
presenciados e vividos.
É impressionante a dimensão da desinformação sobre um fato
tão simples de que as aplicações financeiras, que os
banqueiros tanto gostam de chamar de investimentos, levam
ao enriquecimento de intermediários, sem gerar ativos novos,
e que este enriquecimento sem produção correspondente –
portanto correspondendo à apropriação da produção de
terceiros – se faz com o nosso dinheiro, e não com o
dinheiro dos próprios intermediários.
26
A área dos cartões de crédito constitui um processo curioso
em que ao mesmo tempo nos depenam e nos mostram como podemos
parecer importantes ao pagar com um “cartão ouro ” o jantar
com a namorada. Os olhares na mensagem publicitária deixam
claro quem será jantado, mas quem é depenado – com orgulho –
é evidentemente o dono do cartão. O cartão permite
simplesmente taxar todas as nossas transações, cobrando
tanto dos comerciantes como do consumidor através da taxa de
uso, do crédito implícito e dos juros sobre atrazos, além do
aluguel dos equipamentos. A General Electric, por exemplo,
já emitiu 68 milhões de cartões, 40% em países em
desenvolvimento. É mais uma empresa que descobriu que se
ganha mais brincando com o dinheiro dos outros do que
enfrentando a dureza dos processos produtivos. O americano
médio ostenta orgulhosamente uma média de 8 cartões de
crédito, e vive endividado.
The Economist, curiosamente, avalia que os brasileiros estão
entre os poucos espertos: “O número de cartões de crédito
no Brasil, por exemplo, cresceu em média 17,3% ao ano entre
1999 e 2004, segundo Bain & Company, uma outra empresa de
consultoria. Os brasileiros, no entanto, tendem a pagar as
suas contas mensais, em parte porque as taxas de juros são
altas (8-11% ao mês) mas também porque preferem usar os seus
cartões como um meio conveniente de pagamento e não como uma
forma de empréstimo. Há outros créditos mais baratos
disponíveis, diz Rodolfo Spielman, do Bain. Isto pode
26 Uma discussão deste tema pode ser encontrada no nosso O que é capital?, editora Brasiliense, São Paulo,
2004,10ª ed. revista e ampliada
15
explicar porque os gastos anuais dos brasileiros com cartões
de crédito cairam 4,1% ao ano, descontada a inflação, entre
1999 e 2004 ”.
27
A ciência econômica que ensinamos não nos ensina o
essencial, que é de como construir os objetivos do
desenvolvimento no novo contexto de mudança tecnológica,
desregulação e mudança institucional. Estas três categorias
de mudança fazem parte das análises do FMI, que está
começando, depois das críticas contundentes recebidas, a
ficar um pouco mais prudente nas suas certezas: “ Ainda que
seja difícil ser categórico sobre qualquer coisa tão
complexa como o sistema financeiro moderno, é possível que
estes desenvolvimentos estejam criando mais movimento
procíclicos que no passado. Podem igualmente estar criando
uma probabilidade maior (mesmo que ainda pequena) de uma
catástrofe (catastrophic meltdown) ”.
28
O cassino financeiro internacional (com a sua dimensão
nacional) gera assim um processo de descapitalização da
economia, levando a uma subutilização impressionante de um
dos principais fatores de dinamização econômica que são as
nossas poupanças. E dizemos bem aqui nossas poupanças, pois
o cassino joga com o dinheiro dos fundos de pensão, das
pequenas economias familiares, dos nossos depósitos. Trata-se,
como dizem na terra de Celso Furtado, de festa com
chapéu dos outros. Celso Furtado, aliás, gosta de ser claro: “Já ninguém ignora a
fantástica concentração de poder que hoje se manifesta nos chamados mercados
financeiros, que são dominados por atividades especulativas cambiais”.
29
Mas se ninguém ignora isto, o fato é que conhecemos todos como está estruturada a
indústria automobilística mundial, mas ignoramos como estão estruturados e como
organizam o seu poder político e econômico os grupos que se apropriaram das
poupanças. Temos páginas em todos os jornais com cotações diversas, mas nada sobre
como o processo é manejado. Jogar na mesa do cassino é permitido (cada um traz a sua
27 The Economist, January 14th 2006, p. 74 28 Raghuram Rajan, diretor do departamento de pesquisa do FMI, Finance and Development, IMF,
September 2005, p. 54, sob o título “Risky Business”. – No original: “While it is hard to be categorical
about anything as complex as the modern financial system, it’s possible that these developments are
creating more financial-sector induced procyclicality than in the past. They may also create a greater (albeit
still small) probablility of a catastrophic meltdown”. Procyclicality no jargão do FMI se refere ao
fenômeno apontado por Stiglitz, dos capitais fugirem justamente quando uma economia está em
dificuldades, portanto justamente no momento em que precisa de aportes, aprofundando os desequilíbrios. 29 Celso Furtado, O capitalismo global, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro 1998, p. 7; o sistema de
movimentações eletrônicas como o algorithmic trading exige investimentos impressionantes em tecnologia
da informação, avaliada em 26,4 bilhões de dólares só em 2005 nos grupos americanos de especulação. Os
países menores ou mais fracos têm toda a liberdade de tentar acompanhar. Na realidade, trata-se de um
sistema global de expropriação de poupanças por quem tem meios para dominar os mecanismos. Ver The
Economist, 4 de fevereiro de 2006, p. 68 sobre “Technology and Exchanges”; ver também a explicitação do
impacto econômico do sistema no plano mundial no Trade and Development Report 1998, da UNCTAD,
uma das raras instituições internacionais a abordar o problema com realismo, na época sob orientação de
Rubens Ricupero.
16
poupança, ou “aplica” o dinheiro com investidores institucionais que vão jogar por nós),
mas saber como as mesas são geridas, quais são as chances e quem ganha quanto com
isto está fora do nosso alcance. É uma área impressionante da economia que precisa de
luz. Inúmeros nóbeis (alguns preferem ignóbeis) de economia elaboram fórmulas para
melhorar o nosso desempenho na roleta, mas raros são os que, como Stiglitz por
exemplo, que levantou um cantinho do véu, se debruçam sobre o processo de poder
político-financeiro assim gerado. Um pouco de democracia, senão no controle, pelo
menos na informação, não seria bem-vindo?
5 - Da especulação ao investimento socialmente útil
A realidade patológica da área financeira vai curiosamente
criando os seus antídotos. Enquanto a corrente teórica
dominante – e o grosso dos recursos – reforçam as atividades
especulativas e o financiamento das corporações, vai se
construindo uma outra corrente, que vem responder às
prosaicas necessidades de financiamento da pequena e média
empresa, da agricultura familiar, das organizações da
sociedade civil. Todos conhecem os trabalhos de Yunus no
Bangladesh, mas vale a pena realçar que muito dinheiro na
mão de poucos gera o caos, enquanto pouco dinheiro na mão de
muitos gera resultados impressionantes em termos de
progresso econômico e social.
30
Numa visão estritamente
econômica, para quem não tem quase nada, um pouco de
dinheiro faz uma imensa diferença, em termos de saúde, de
condições de estudo das crianças, de melhores condições de
produção.
A reorientação que se busca, é de que os recursos
financeiros possam prosaicamente servir ao nosso
desenvolvimento. Stiglitz enfatiza corretamente o Community
Reinvestment Act – CRA - de 1977, nos Estados Unidos, que
obriga as instituições de intermediação financeira a
aplicarem parte pelo menos dos recursos no desenvolvimento
das comunidades que afinal são proprietárias destes
recursos. O Federal Register de 19 de julho de 2001
explicita o objetivo de se assegurar que as agências
financeiras “cumpram obrigações continuadas e afirmativas
para ajudar a satisfazer as necessidades de crédito das
comunidades locais onde estão autorizadas. Além disso, o
Congresso instruiu as agências a avaliar o desempenho das
instituições (financeiras) em responder às necessidades de
crédito de toda a sua comunidade ” .

Com esse tipo de
“ obrigações ” e ações “afirmativas” , estamos longe da
liberdade dos intermediários financeiros de apenas especular
com recursos de terceiros. Trata-se de colocar os recursos
da comunidade a serviço da própria comunidade. Estamos
30 Mohammad Yunus, Banqueiro dos pobres, Ática, São Paulo, 2000; Yunus foi agraciado com o Nobel da
Paz de 2006 31 Federal Register, Proposed Rules, vol. 66 No 139, July 19, 2001, p. 37603 -
http://www.ffiec.gov/cra/about.htm
17
falando de uma lei em vigor nos Estados Unidos, capital do
liberalismo.
Stiglitz apresenta também a importância do sistema da China:
“ As cidades e vilas canalizaram os seus preciosos recursos
para a geração de riqueza, e havia forte competição pelo
sucesso. Os habitantes das cidades e vilas podiam ver o que
acontecia com os seus fundos. Sabiam se havia empregos sendo
criados e se a renda aumentava. Apesar de talvez não haver
democracia, havia responsabilização. Novas indústrias na
China foram localizadas em áreas rurais. Isto ajudou a
reduzir a tensão social que inevitavelmente acompanha a
industrialização. Esta é a China que lançou as fundações de
uma Nova Economia em cima das instituições existentes,
mantendo e fortalecendo o seu capital social, enquanto na
Russia era erodido ”.
32
A Alemanha oferece outro exemplo interessante, visto
rapidamente acima. A gigantesca massa de poupanças
familiares do país não é confiada aos chamados
“ investidores institucionais ” para especularem. É gerida
por pequenas caixas de poupança que existem em cada cidade
ou vila. O Economist informa que mais da metade da poupança
alemã é gerida desta forma. A revista considera,
naturalmente, que isto é um fator de atrazo, pois o dinheiro
seria aplicado de maneira mais dinâmica se a poupança fosse
administrada por alguns grupos financeiros internacionais.
33
É não ver a imensa gama de pequenas iniciativas que
localidades bem capitalizadas podem tomar, gerando pequenas
empresas, restaurantes típicos, transformação dos produtos
agrícolas locais – nem tudo deve ir para o McDonald ou a
rede de hipermercados – num processo que não é apenas
econômico, é cultural e associativo. Faz uma região ser
“ dona ” do seu território, com iniciativas próprias,
criatividade. Nunca é demais lembrar que 54% das empresas
32 J. Stiglitz – Globalization… - O CRA está detalhado na página 70, como reação ao desgarramento entre a
poupança e as necessidades de desenvolvimento. A opção Chinesa nas páginas 174 e 175. Stiglitz
menciona também o caso da República Checa: “It had created a capital market which did not raise money
for new investment, but allowed a few smart money managers (more accurately,white-collar criminals – if
they did what they did in the Czech Republic in the United States, they would be behind bars) to walk off
with millions of dollars of others’ money”. A visão de Stiglitz sobre os poucos casos de sucesso de políticas
financeiras é interessante: “One attribute of the success cases is that they are “homegrown”, designed by
people within each country, sensitive to the needs and concerns of their country”.(p. 186) 33 The Economist, October 15th, 2004 – « The public sector banks – 11 regional wholesale Landesbanken,
a few development banks and nearly 500 savings banks – account for 36% of German banking assets and
more than half of savings deposits. For years they have been protected by laws and state guarantees from
the full force of the market.” (p. 73) . The Economist é fortemente partidário e faz campanha. No seu
número de 13 de dezembro de 2003, já vinha esta nota indignada: “Consider the 500-odd municipal
savings banks that hold half of the money in Germans’ savings accounts. None of these banks has ever
been privatised, even though private-sector banks, which have only 15% of the savings deposits, would like
the chance to buy some.” O artigo lamenta a existência na Alemanha “of the three-pillar structure of
private, public and co-operative banks that stultifies the banking system” (p. 69).
18
nos Estados Unidos empregam até 5 pessoas, e que o país tem
26 milhões de micro e pequenas empresas. Trata-se aqui de um
grande hiato na teoria econômica, que considera produtiva a
pequena empresa apenas quando é reduzida ao papel de
subcontratada de um gigante corporativo.
Se a teoria deixa em branco o esmagamento da iniciativa
econômica individual e associativa no capitalismo
globalizado, no plano da economia aplicada surgem coisas
muito interessantes. O livro Les placements éthiques,
constitui um tipo de pequeno manual para quem quer fazer
coisas úteis com o seu dinheiro, em vez de colocá-lo no
banco.
34
Sem teorizar muito, o livro parte do princípio que
as pessoas realmente existentes querem equilibrar vários
interesses, como ter uma razoável remuneração pelo seu
dinheiro, mas também segurança, liquidez para o caso dele
precisar inesperadamente, e o sentimento do seu dinheiro
estar sendo útil. As aplicações financeiras úteis
apresentadas no livro se referem concretamente à França, mas
abrem perspectivas gerais.
Em termos práticos, trata-se de um pequeno manual onde em cada página aparece um
fundo ético, com indicações da taxa média de remuneração da aplicação, a liquidez
(alguns fundos exigem um determinado tempo de aplicação), a segurança (há desde
aplicações garantidas pelo Estado até aplicações de risco como no mercado de ações) e a
“mais-valia ética” que descreve em detalhe que tipo de atividade socialmente ou
ambientalmente útil está envolvida. O processo também se firmou na França porque além
do interesse da população os bancos locais, – comunitários ou do Estado – passaram a
garantir as aplicações feitas em iniciativas de economia solidária, gerando um processo
perfeitamente seguro em termos financeiros e de elevada produtividade sistêmica.
As aplicações envolvem tipicamente empresas de economia solidária – por exemplo o seu
dinheiro será aplicado numa pequena empresa que organizou o transporte para pessoas
deficientes na cidade, iniciativa demasiado pontual para interessar grupos empresariais
tradicionais – ou empresas tradicionais que passam pelo crivo de uma série de critérios
como o respeito às normas trabalhistas, respeito ao consumidor e assim por diante. Há
fundos que além disso excluem um conjunto de empresas notoriamente anti-sociais como
as que produzem armas, fumo ou bebidas alcóolicas.
Isto implica por sua vez um conjunto de critérios de avaliação de atividades empresariais
que vão muito além do lucro, e com isto surgiram diversas instituições que fazem um
seguimento sistemático de diversos setores de atividades e de empresas, de maneira que a
pessoa que aplica num fundo possa saber efetivamente o uso final do seu dinheiro.
Estamos todos acostumados ao indicador de “risco Brasil”, que apresenta o risco que um
determinado país ou empresa representa para os aplicadores financeiros, mas quase não
34 Alternatives Economiques – Les placements éthiques : comment placer son argent – www.alternatives-economiques.
fr , Paris, 2003, 176 p. ; além disto, na França os diversos sistemas locais de gestão pública
das poupanças (La Poste, Caisse d’Épargne, Crédit Mutuel) administram 40% das poupanças francesas,
conforme The Economist, December 24 th 2005-January 6th 2006 double-issue, p. 99.
19
aparecem os indicadores de utilidade social das empresas, e nunca do risco para o Brasil,
por exemplo, das atividades especulativas. Para nós, este conceito é de grande
importância, pois contrariamente aos Estados Unidos ou à Alemanha, onde predominam
pequenos bancos municipais e a população pode razoavelmente seguir o que se faz com o
seu dinheiro, nós normalmente não temos a mínima idéia do que acontece, no privado
menos ainda que no público. 35
O sistema montado na França é maduro e bastante sofisticado. Envolve legislação que
permite que certas aplicações financeiras sejam tratadas de maneira diferenciada pelo
fisco, um sistema de notação das empresas pelas instituições de avaliação, uma forte
participação de organizações da sociedade civil, de sindicatos e de poderes locais, e
envolve um sistema regular de informação ao acionista ou aplicador financeiro. O
sistema está se expandindo num ritmo de 20% ao ano. Há organizações da sociedade civil
que já administram mais 800 milhões de euros, cerca de 2 bilhões de reais.
Em termos teóricos, o sucesso das experiências deste tipo é sumamente importante, pois
implica que afinal as pessoas não querem apenas maximização de retorno e segurança do
dinheiro. As pessoas querem sim fazer coisas socialmente úteis se tiverem a
oportunidade, e esta oportunidade se organiza. Uma nota introdutória de Henri Rouillé
d’Orfeuil, dá o tom: “Os objetivos são claros. Trata-se de introduzir solidariedade, ou seja
uma preocupação com o bem comum, no coração mesmo da economia, para que o
crescimento leve ao progresso social e ao desenvolvimento sustentável, para que as
empresas se tornem socialmente e ecologicamente responsáveis”.36
Este eixo alternativo da intermediação financeira está sendo alvo de ataques dos grandes
grupos especulativos, e se vê ridicularizado pelo “mainstream” da ciência econômica. No
entanto, quando Hazel Henderson e outros criaram o “ethical market place”, literalmente
“mercado de aplicações éticas”, descobriram imenso interesse social, que está se
materializando num fluxo impressionante de recursos. Hoje os próprios grupos
financeiros especulativos e grandes bancos estão abrindo nichos de atividades
socialmente responsáveis, nem que seja para melhorar a imagem.37
É interessante, para todos nós, ver que enquanto os mecanismos de mercado estão sendo
engessados pelos gigantes transnacionais ou nacionais que monopolizam amplos setores
econômicos, manipulam os fluxos e restringem o acesso às informações, estão surgindo
formas alternativas de regulação econômica baseadas em valores e participação direta do
cidadão.
35 No plano das empresas, vale a pena acompanhar o progresso das iniciativas do Instituto Ethos e dos seus
indicadores de responsabilidade empresarial. www.ethos.org.br 36 Rouillé D’Orfeuil, Henri – Finances solidaires: changer d’échelle – in Les Placements éthiques,
Alternatives Economiques, Paris, 2003, p. 18 – www.alternatives-economiques.fr
37 veja em www.hazelhenderson.com . A revista Scientific American de dezembro de 2002 traz um artigo
interessante sobre Joan Bavaria, chefe da Trillium Asset Management, e avalia que “a comunidade mundial
de investidores sociais controla mais de $2 trilhões em aplicações” – p. 40
20
Fazer política sempre foi visto por nós como atividade muito centrada no voto, no
partido, no governo. Mais recentemente, surgiram atividades em que a sociedade civil
organizada arregaça as mangas e assume ela mesma uma série de atividades. Está
tomando forma cada vez mais clara e significativa a atividade econômica guiada por
valores, por visões políticas no sentido mais amplo. As pessoas estão descobrindo que
podem “votar com o seu dinheiro”. Outras atividades surgiram no Brasil, com a ajuda
entre outros de Paul Singer, na linha da Economia Solidária. Já não se contam as
iniciativas de microcrédito, de crédito solidário, de ONGs de garantia de crédito.38
Tata-se de uma área onde surgiram excelentes estudos descritivos na linha do “como
funciona”, sem que haja muita teorização econômica. Surge igualmente nesta área uma
prática generalizada de seminários e conferências, onde as pessoas que administram estas
novas formas de gestão das nossas poupanças cruzam com cientístas sociais, e constroem
novas visões.39
Uma pequena digressão é importante aqui. A nossa visão da
economia ainda está centrada na visão fabril do século XX.
Mas os setores emergentes da economia não são fábricas, são
redes de saúde, sistemas articulados de educação, pesquisa e
organização do conhecimento, atividades culturais e assim
por diante. As pessoas se espantam com o fato das atividades
industriais representarem nos Estados Unidos 14% do PIB e
10% do emprego, e declinando rapidamente, enquanto a saúde
já representa 15% do PIB. Se somarmos a educação, a cultura,
a segurança, vamos para mais de 40% do PIB. A economia está
cada vez menos baseada em capital fixo (máquinas,
equipamentos, construções) e cada vez mais em organização e
conhecimento. Ou seja, a economia que surge não necessita do
gigantismo para ser eficiente, pelo contrário. Na realidade,
o gigantismo nestas área gera deseconomias de escala, pela
burocratização e monopolização do controle de acesso a
serviços essenciais.
40
Ou seja, há uma convergência a se construir entre o
surgimento de novos setores de atividades, e as formas de
financiamento que exigem. Quando as atividades econômicas de
área social, como saúde, educação, cultura e outros, tornam-se
dominantes no nosso modo de produção, o conceito de
financiamento também muda. O sistema concentrador de
financiamento pode trabalhar bem com gigantescas empresas de
planos de saúde: neste caso temos uma absurda aliança de
interesses especulativos com a indústria da doença. Mas se é
para fazer uma política social que tenha resultados em
termos de qualidade de vida, as inovações da gestão
38 Em termos de escala e de inovação metodológica, ver em particular as experiências do Banco do
Nordeste, e as novas “Agências de Garantia de Crédito” que apoiam pequenos produtores.. 39 Para uma sistematização de algumas tendências no Brasil, ver o trabalho de Sérgio Roschel,
Microcrédito no Brasil, no site http://dowbor.org sob “Pesquisas Conexas”. Ver também informações da
associação brasileira de empresas de microcrédito, lavorato@abcred.org.br 40 Tatamos este assunto com mais detalhe no artigo Gestão Social e Transformação da Sociedade, veja em
http://dowbor.org sob “Artigos Online”, 2000, 18 p.
21
financeira, na linha das diversas formas de crédito que
surgem, mostram-se perfeitamente coerentes e economicamente
muito mais produtivas. São atividades capilares que se
ajustam bem a sistemas de financiamento em rede.
O que estamos sugerindo aqui, é que há uma nova teoria
econômica em construção, sem que talvez nos apercebamos
disto, de tanto estarmos ocupados em refutar os
marginalistas ou a lei das vantagens comparadas de Ricardo.
Não se trata de uma dinâmica socialmente caridosa e
economicamente marginal. É um espaço importante a ser
ocupado. Não precisamos esperar um governo que nos agrade
para tirar o nosso dinheiro do banco e aplicar as nossas
poupanças em coisas úteis. O resgate do controle das nossas
poupanças emerge como eixo estruturador das dinâmicas
sociais, e o direito a controlarmos o nosso próprio
dinheiro, e de exigir prestação de contas na área, é
perfeitamente democrático.
6 - Poder econômico e poder político
Vai-se assim construindo uma visão. A economia não é uma
ciência que deve fornecer instrumentos mais sofisticados de
análise de conjuntura para orientar especuladores: tem de
voltar a se concentrar nos resultados – os “ fins
substantivos ” – que queremos construir, em particular de
uma sociedade viável não só em termos econômicos, como
sociais e ambientais; o “norte ” definido por estes
objetivos deve por sua vez refundar a contabilidade
econômica, a forma como calculamos os resultados; é para
estes resultados, por sua vez, que devem voltar a ser
canalizados os recursos gerados pelas poupanças das
populações, proprietárias destas poupanças, mas cuja
utilização lhes foi expropriada. Esta expropriação, sobra
dizer, resulta de estruturas de poder econômico que também
estão mudando.
Voltemos ao texto de Celso Furtado: “Impõe-se formular a política de
desenvolvimento com base numa explicitação dos fins substantivos que almejamos
alcançar, e não com base na lógica dos meios imposta pelo processo de acumulação
comandado pelas empresas transnacionais”. Mais longe, Furtado comenta que “a atuação
da empresa de âmbito planetário constitui mutação maior na evolução do sistema
capitalista, pois desloca para posição subalterna as forças sociais que estavam em
ascenção e modifica substanciamente o papel do Estado nacional”. 41
Ou seja, a empresa transnacional define os seus próprios
fins, - o maior lucro no prazo mais curto, mas também
estruturas de poder que o consolidem – e torna-se o
instrumento, junto com os processos de especulação
41 C. Furtado, Em busca de novo modelo, op. cit. páginas 36 e 50
22
financeira, do desvio relativamente aos “ fins
substantivos ”.
David Korten é provavelmente hoje quem melhor fez a “lição
de casa” em termos de explicitar como se organiza e
articula o poder das grandes corporações. No livro Quando as
corporações regem o mundo, este pacato servidor da Usaid,
depois de anos de trabalho social na Ásia, decidiu que o
conflito entre os objetivos declarados – promover o bem-estar
das populações – e as práticas das empresas, tinha
chegado ao limite, tornando inclusive pouco significativo o
esforço de promoção social que realizava. E decidiu
explicitar como este poder funciona.
42
O livro tornou-se um clássico. Em parte pelo excelente
trabalho de sistematização de informações e capacidade de
análise, em parte por evidenciar o impressionante hiato que
se criou entre a importância que as empresas transnacionais
assumiram na gestão econômica – e crescentemente política –
da sociedade, e o pouco que temos de informações sobre como
funcionam. O único núcleo efetivo de pesquisa sobre as
empresas transnacionais, que funcionava nas Nações Unidas
sob o nome de United Nations Center for Transnational
Corporations – UNCTC, foi desmantelado nos anos 1990.
Esta opacidade programada foi reforçada pelo mecanismo que sustenta a mídia no
mundo. Hoje, a conta publicitária faz parte do preço que pagamos pelos produtos. Este
imposto privado nos custa, na avaliação do PNUD de 1998, cerca de 430 bilhões de
dólares, e na avaliação de Lawrence Lessig de 2001 cerca de 1 trilhão de dólares. Como
esta publicidade é financiada essencialmente por grandes corporações, e constitui a base
da sobrevivência econômica dos meios de informação de que dispomos, estes tendem a
apresentar apenas imagens simpáticas de quem compra o seu espaço publicitário. O
resultado é que quando estouram escândalos como da Enron, da WorldCom, da Parmalat
ou outros, ficamos espantados.
Trata-se, no entanto, de procedimentos correntes, em que
grandes executivos, quando flagrados em algum descuido que
se torna público, apenas dão de ombros e comentam que “ todo
mundo faz ”. John Perkins mostra, no seu Confessions of an
Economic Hitman, como se monta literalmente o endividamento
de países politicamente frágeis. Economista principal na
empresa Main (Chas. T. Main Inc., empresa de consultoria que
trabalha na linha de infraestruturas como a Enron, a
Bechtel, a Halliburton e outras famosas), ele assina uma
previsão sabidamente exagerada de crescimento econômico caso
um país – o mecanismo foi aplicado na Arabia Saudita,
Equador e muitos outros – invista grandes somas em
infraestruturas. Com este relatório, e frente às previsões
fraudulentas de crescimento que tornam plausível o pagamento
42 David Korten – When Corporations Rule the World – publicado no Brasil pela editora Futura, com o
título Quando as corporações regem o mundo.
23
posterior dos empréstimos, as empresas negociam com o Banco
Mundial e outros financiadores os empréstimos
correspondentes, e os contratos de execução vão naturalmente
para as empresas que ajudam a pressionar pelo empréstimo,
como as mencionadas acima. As empresas enriquecem com os
contratos, o crescimento não ocorre (não há milagre), e o
país ultrapassa a sua capacidade de endividamento. Entra
então o segundo mecanismo, que é a renegociação de contratos
de exploração de petróleo e outras riquezas, aproveitando a
fragilidade financeira gerada. O mecanismo é normalmente
apresentado como ajuda aos países pobres, e estes em geral
não têm a liberdade de recusar o abraço amigo.
43
Outro estudo muito interessante nos vem de Joel Bakan, The
Corporation: the pathological pursuit of profit and power.
44
O autor parte de uma coisa evidente mas esquecida: a lei que
cria a “ pessoa jurídica ” se destinava a proteger pessoas,
mas foi ampliada para empresas, que passaram a gozar de
direitos como se fossem seres humanos. Naturalmente, como
diz o autor, enquanto uma pessoa física pode ser colocada
atrás das grades, isto não acontece com uma pessoa jurídica.
E uma pessoa jurídica, com muito dinheiro, inúmeros
advogados, controle de mídia e o autofinanciamento
permanente do exercício do poder – através do que pagamos ao
comprar os seus produtos, pagar os seus juros ou utilizar os
seus softwares – adquire gradualmente um grande poder. Mas
enquanto uma pessoa física tem diversas facetas, interesses
diversificados, preocupações éticas, por lei a corporação
tem uma obrigação de maximizar lucros, satisfazendo assim os
seus acionistas.
Gera-se assim uma pseudo-pessoa, com zero de escrúpulos, e
imenso poder. As formas como as corporações passam as nos
dominar são examinadas com os mesmos critérios que a saúde
utiliza para classificar psicopatas: desinteresse pela
sociedade, ausência de sentimentos éticos e assim por
diante. Um grupo de pessoas teve a idéia de fazer deste
livro um filme, que constitui uma inovação metodológica
interessante: em vez de lermos no livro, em parágrafos entre
aspas, o que Peter Drucker tem a dizer sobre determinado
problema, a citação passa a ser audiovisual: vemos Peter
Drucker explicar a sua opinião na tela. O conjunto de
opiniões, agrupado por “capítulos” cinematográficos,
termina por constituir um excelente documento científico
sobre o comportamento das corporações, só que os argumentos
se contam por imagens e falas, e não por páginas. O
43 John Perkins – Confessions of an Economic Hit Man – Berrett-Koehler, San Francisco 2004 – A edição
brasileira é da Cultrix, e o título lamentavelmente traduzido como “Confissões de um assassino econômico”
faz pensar num 007 irresponsável, quando se trata de uma obra séria. Tornou-se um best-seller nos EUA;
uma resenha de página inteira pode ser encontrada na Folha de são Paulo de 2 de abril 2006. Prudente ou
imprudente, Perkins levou quase duas décadas a se decidir a publicar o seu relato. 44 Joel Bakan – The Corporation: The Pathological Pursuit of Profit and Power – Ree Press, New York,
2004
24
resultado é extremamente convincente, são as pessoas que
estão alí falando, e aponta para uma forma mais dinâmica e
viva de escrevermos as nossas pesadas obras de ciência
econômica.
45
Apesar do permanente assédio publicitário das grandes
corporações, a dimensão ilegal das atividades corporativas
está gradualmente vindo à tona. Uma leitura interessante
nesta linha é A economia cidadã, de Henri Rouillé
D’Orfeuil: “Paraísos fiscais que desmpenham o duplo papel
de econderijo legal para os capitais que procuram se
subtrair às obrigações fiscais e sociais e de interface com
a economia do crime, cujo ‘produto anual bruto’ é avaliado
em 1 trilhão de dólares pelo FMI, de 2 a 5% do PIB do
planeta – as avaliações são difíceis – passam assim pelos
lavadores, que limpam o dinheiro sujo. François-Xavier
Vershave, que estudou alguns desses circuitos, gosta de
declarar que ‘logo apenas os pobres e os imbecis pagarão
impostos’...O magistrado Jean de Maillard faz também um
julgamento claro e límpido: ‘Esta mundialização da economia
criminosa acompanha-se de uma criminalização da economia
mundial, e as duas tendências tendem agora a uma lógica
comun. A fusão entre a economia legal e a economia criminosa
parece, portanto, atualmente realizada’” .
46
David Korten, Joel Bakan, John Perkins – entre tantos outros – são autores que estudam o
poder das empresas transnacionais mas não elaboram teorias gerais: antes estudam o que
acontece, e de que forma. Gradualmente, no entanto, aparecem regularidades,
contradições e tendências. Desenham-se assim esboços de teorias, que terão de ser
confrontadas com outros estudos empíricos, outras análises setoriais.
As visões, uma vez mais, serão contraditórias: capitães da corporação apontarão para as
tecnologias, a eficiência, o poder criativo. Outros apontarão para os desastres ambientais,
a concentração de renda, o desemprego, a manipulação informativa, o poder destrutivo. A
45 O filme científico The Corporation está disponível em www.thecorporation.com no original e em
português nos sites de livrarias, ou ainda na locadora 2001– Tem duração de duas horas e 20 minutos. É
uma obra prima, excelente material para aulas.. Não há Oscar para este tipo de produção, Peter Drucker não
ganhará o prêmio de melhor ator coadjuvante. 46 Henri Rouillé D’Orfeuil – Economia Cidadã: alternativas ao neoliberalismo – Editora Vozes, Petrópolis,
2002, p. 38 – Note-se que os nossos banqueiros não são nem pobres nem imbecis. Jean de Maillard, citado
acima, é um juiz francês que investiga os fluxos financeiros ilegais, e elaborou um interessante atlas do
dinheiro: Un Monde Sans Loi: la criminalité financière en images, Ed. Stock, Paris, 1998, 140 p. O livro é
dedicado a 26 magistrados assassinados ao pesquisar este tipo de fluxos financeiros. Decididamente, não é
um mundo de Alice no País das Maravilhas. Em reunião que tivemos com de Maillard na França, ele
explicava que um dos principais problemas da repressão à criminalidade econômica, é que nunca há uma
fronteira límpida entre um criminoso e um empresário, e sim uma gradual variação de densidade criminosa,
desde o grande empresário que “poderia não saber” até a linha de frente da corrupção, passando pelo
advogado que monta as aparencias de legalidade das fraudes. Joel Bakan, no livro mencionado, elaborou
uma lista dos processos criminais da General Electric. Jack Welch, ex-presidente da empresa, no seu
clássico chapa-branca Straight from the Gut, que se encontra em qualquer livraria de aeroporto no Brasil,
menciona a palavra ética a cada três páginas. Não menciona nenhuma fraude.
25
contradição não se resolve de dentro da esfera econômica, mas introduzindo a visão mais
ampla: qualquer poder sem controle tende a degenerar. A ciência econômica tem de se
ver como uma pedra a mais de um mosaico que só se torna compreensível na sua
dimensão mais ampla. O argumento básico, no conjunto, é claro: surge um amplo poder
político, mas com cara econômica, e portanto não submetido a controles políticos.
7 - A teoria do consumo
Voltemas ao eixo metodológico que estamos seguindo neste pequeno ensaio. Não se trata
de uma revisão teórica no sentido de analisar as grandes escolas de pensamento, e de ver
como a realidade nelas ainda encontra potencial explicativo. Trata-se de partir dos eixos
de maior impacto estrutural, como o poder das empresas transnacionais, ou a
financeirização das economias e assim por diante para, seguindo de forma solta idéias
que nos sugeriram leituras de Celso Furtado, e particularmente o seu ensaio “Em busca
de novo modelo”, identificar os eixos de análise que correspondem às tendências que se
desenham na literatura econômica.
Não se trata de subestimar os clássicos. Estes merecem ser estudados, mas no quadro de
referência que viveram, o que exige um bom conhecimento histórico da realidade que
buscaram explicar. Puxar citações de grandes mestres, sem se dar ao trabalho de
demonstrar a que ponto uma idéia continua válida no contexto atual, constitui apenas um
empréstimo de autoridade. “Como o comportamento das variáveis econômicas depende
em grande medida desses parâmetros (não-econômicos), que se definem e evoluem num
contexto histórico, não é possível isolar o estudo dos fenômenos econômicos de seu
quadro histórico”.47
A ciência econômica, num contexto que se transforma, tem de se transformar. “O valor
do trabalho de um economista, como de resto de qualquer pesquisador”, escreve Celso
Furtado, “resulta da combinação de dois ingredientes: imaginação e coragem para arriscar
na busca do incerto”. Afastando-se assim do consenso, o economista “perceberá que os
caminhos já trilhados por outros são de pouca valia”, e “perderá em pouco tempo a
reverência diante do que está estabelecido e compendiado”.48
Este ponto clarificado, queremos aqui abordar outro “eixo da realidade”, que é o
consumo. “Ao consumidor, nos diz Furtado, cabe um papel essencialmente passivo. Sua
racionalidade consiste em responder ‘corretamente’ a cada estímulo a que é
submetido...O indivíduo pode reunir em torno de si uma miríade de objetos sem ter em
nada contribuído para a criação dos mesmos. A invenção de tais objetos está subordinada
ao processo de acumulação, que encontra na homogeneização dos padrões de consumo
uma poderosa alavanca”. O resultado é que o homem deixa de ser sujeito do processo; no
quadro da “racionalidade instrumental”, “o homem é aí identificado como objeto
susceptível de ser analisado e programado”.49
47 C Furtado – Em busca…op. cit. p. 72 48 C. Furtado – Capitalismo Global, p. 10 49 C. Furtado – Em busca...op. cit. p. 60 e 61
26
O anti-texto ideal neste ponto é evidentemente o trabalho de Milton Friedman, da escola
de Chicago, que com a ousadia de quem não tem contas a prestar à realidade, mas à
corporação, escreveu, com a amável colaboração da esposa Rose, o clássico Free to
Chose, um tributo à liberdade de escolher do sistema. Sempre achei que Friedman deve a
sua fama e o seu pseudo-nobel muito pouco à coerência do seu pensamento, e muito mais
ao fato de divulgar idéias que defendem o sistema. O sistema pode ser generoso. 50
John K. Galbraith, seguramente, não é do “sistema”. Além disto, escreve magistralmente.
Antigamente, este magistralmente implicaria em frases complexas e expressões
rebuscadas. No deserto estilístico da ciência econômica contemporênea, implica
sobretudo escrever de maneira simples e direta. Ao ler A Economia das Fraudes
Inocentes, sentimos na leitura o prazer que Galbraith claramente teve ao escrever. É o
prazer de deixar as idéias bem arrumadas, como contemplamos com gosto um trabalho
bem feito.
O poder corporativo se veste de maneira respeitável. A corporação deixa de ser um
monopólio ou oligopólio capitalista, passa a chamar-se “mercado”.51 A versão oficial
que se contruiu em torno deste mercado, segundo Galbraith, cabe em um parágrafo: “No
sistema de mercado, sustenta-se que o poder de últma instância, repetimos, está na mão
daqueles que compram ou decidem não comprar; assim, com algumas qualificações, o
poder de última instância é o do consumidor. A escolha do consumidor dá forma à curva
da demanda. Tal como o voto dá autoridade ao cidadão, assim na vida econômica a curva
da demanda confere autoridade ao consumidor”. O mecanismo fica bem claro, mas tem o
defeito de não corresponder à realidade.52
A realidade é o que Galbraith chama de “sistema corporativo”, que se apoia no
monopólio ou no oligopólio, e centraliza drasticamente o poder econômico no mundo da
grande empresa, corroendo o espaço da concorrência, deixando o consumidor sem
opções. Por outro lado, o gigantesco sistema de manipulação do consumidor através da
publicidade leva a que seja o próprio sistema corporativo que define o perfil da demanda.
Dentro da corporação, por sua vez, o poder não é mais diluido entre um grande número
50 Milton and Rose Friedman, Free to Chose, Harvest Books, New York, 1990 – Existe tradução em
português de Portugal. 51 É importante introduzir aqui uma distinção. Originalmente, quando falamos em mercado na ciência
econômica, nos referimos aos mecanismos de concorrência que permitem que milhares de agentes
econômicos compitam em pé de igualdade no espaço de trocas comerciais. Como esta visão é simpática,
por implicar mecanismos democráticos, os grandes grupos econômicos passaram a apropriar-se do termo, e
hoje “mercado” se refere cada vez mais ao grupo de poderosas corporações que dominam o mercado,
substituindo a concorrência impessoal por mecanismos de controle, o chamado “managed market”. Mais
recentemente ainda, com a força dos grupos de especulação financeira, “mercado” passou a designar o
núcleo de grandes investidores institucionais. É o que hoje entende a imprensa especializada, quando
informa por exemplo, frente a uma volatilidade maior do câmbio, que “o mercado está nervoso”. Trata-se
em geral do nervosismo de meia duzia de grupos financeiros. 52 John Kenneth Galbraith – The Economics of Innocent Fraud: truth for our time -Houghton Mifflin Cy.,
New York, 2004, 62 p. – No Brasil, editado pela Companhia das Letras, São Paulo, 2004. Utilizamos o
original inglês, com tradução livre de L.D. - “In the market system the ultimate power, to repeat, is held to
be with those who buy or choose not to buy; thus, with some qualifications, the ultimate power is that of
the consumer. Consumer choice shapes to the demand curve. As the ballot gives authority to the citizen, so
in economic life the demand curve accords authority to the consumer… Economics as taught and believed
lags well behind the reality in all but the business schools”. (p. 12 e 13)
27
de acionistas, mas concentrado na burocracia corporativa, evidenciada entre outros pelas
remunerações astronômicas que atribuem uns aos outros. Como a oligopolização permite
manipular os preços, incorpora-se neles os custos de construção de marca e de imagem
corporativa, fechando o círculo. O mecanismo de mercado foi substituido por um
mecanismo de poder.
Em outro estudo, Galbraith é ainda mais explícito, comentando que o conceito de
capitalismo saiu de moda: “A referência aprovada agora é o sistema de mercado”. Em
vez de proprietários de capital, “temos o personagem admiravelmente impessoal
chamado de ‘forças do mercado’. Seria difícil pensar numa mudança de terminologia
mais coincidente com os interesses daqueles a quem o dinheiro dá poder. Eles agora
passam a dispor de um anonimato funcional”.53
Outro eixo de raciocínio de Galbraith, ou outra fraude, se dá na interpretação da
conjuntura macro-econômica. “A falsa e favorável reputação do FED (banco central
americano) tem sólidos fundamentos: há o poder e o prestígio dos bancos e dos
banqueiros, e o poder mágico que se atribui à moeda. Estes estão juntos e apoiam o
Federal Reserve e os seus membros – ou seja, os bancos que lhe pertencem. No caso de
recessão a taxa de juros é reduzida pelo banco central, os bancos que são membros devem
repassar a taxa reduzida para os seus clientes, encorajando-os assim a pedir empréstimos.
Os produtores então produzirão bens e serviços, vão poder agora comprar plantas
industriais e maquinaria, com os quais ganharão dinheiro, e o consumo financiado por
empréstimos mais baratos aumentará. A economia responderá, a recessão acabará. Se
então se produz um “boom” com ameaça de inflação, um custo maior do crédito também
promovido pelo Federal Reserve e imposto aos bancos membros elevará as taxas de juro.
Isso restringirá o investimento empresarial e o empréstimo para consumo, reduzirá o
otimismo excessivo, equilibrará os prêços, protegendo-nos da inflação”.54 A dificuldade,
nos diz Galbraith, “é que este processo altamente plausível, e com o qual se concorda
amplamente, existe apenas na crença econômica bem estabelecida, e não na vida real”.
“Na realidade, nos diz o autor, as taxas de juros são um detalhe quando as vendas são
más. Empresas não pedem empréstimos nem expandem uma produção que não tem como
ser vendida...O que fica é um fato: quando os tempos são bons, taxas mais elevadas de
juros não reduzem o investimento empresarial. Não importam muito; a perspectiva de um
lucro maior é o que conta. E na recessão ou na depressão, o fator de controle é uma
perspectiva de lucros baixos.”55 Segundo Galbraith, “o único remédio totalmente
confiável para a recessão é um sólido fluxo de demanda de consumidor.”56 E a melhor
53 J. K. Galbraith – Free Market Fraud – The Progressive, Jan. 1999, 63 (1); in Marjorie Kelly, The Divine
Rights of Capital, Berrett-Koehler, New York, 2001, p. 76 – No original: “The approved reference now is
to the market system…Instead of capital owners in control, we have the admirably impersonal role of
market forces. It would be hard to think of o change in terminology more in the interest of those to whom
money accords power. They have now a functional anonymity”. 54 Galbraith, op. cit. p. 44 55 Idem, p. 45 e 47 56 id.em, p. 61 – “The one wholly reliable remedy for recession is a solid flow of consumer
demand”…”The needful are denied the money they will surely spend. The affluent are accorded the income
they will almost certainly save”.
28
maneira de assegurar este fluxo, não é reduzir os impostos dos ricos, que poupam e
especulam, mas é aumentar a renda dos mais pobres, que consomem.
Vivemos assim no reino da fantasia científica: “A ciência econômica e os sistemas
econômicos e políticos mais amplos cultivam a sua própria versão da verdade. Esta
última não tem necessariamente relação com a realidade”.57
O que resta da teoria do consumo, central na visão tradicional da ciência econômica, se as
empresas não precisam competir por preços cada vez mais administrados por oligopólios,
se o consumidor não tem informação ou é demasiado bombardeado por mensagens
publicitárias para ter uma opção de consumo racional, e se a capacidade reguladora do
Estado se torna irrelevante frente ao processo de globalização? Pouca coisa,
naturalmente, e o fato vai se refletir na deformação absurda das prioridades do
desenvolvimento econômico.
O Relatório sobre o Desenvolvimento Humano 1998 examina os problemas do consumo
sob a ótica das necessidades das pessoas, o que constitui uma inovação ousada. A visão é
essencialmente uma chamada para a realidade: “O mundo tem recursos mais do que
suficientes para acelerar o desenvolvimento humano para todos e para erradicar as piores
formas de pobreza do planeta. Fazer avançar o desenvolvimento humano não é uma
tarefa exorbitante. Por exemplo, estimou-se que o total adicional de investimento anual
necessário para atingir acesso universal aos serviços sociais básicos seria de
aproximadamente $40 bilhões, 0,1% da renda mundial, pouco mais do que um
arredondamento estatístico. Isto cobre a conta da educação básica, saúde, nutrição, saúde
reprodutiva, planejamento familiar e acesso a água e saneamento para todos”.58
Sob o título de “As prioridades do mundo?”, e a título ilustrativo, o Relatório compara
necessidades não cobertas por falta de recursos, e recursos de prioridade duvidosa. Por
exemplo, o investimento anual suplementar para assegurar educação básica para todos
seria de $6 bilhões, que não se conseguem, enquanto se gastam $8 bilhões em cosméticos
nos EUA; para assegurar água segura e saneamento para todos, seriam necessários $9
bilhões, e se gastam na Europa $11 bilhões em sorvete; saúde reprodutiva universalizada
exigiria 12 bilhões suplementares por ano, o mesmo que se gasta em pefumes na Europa
e nos EUA; saúde e nutrição básicas para todos exigiria $13 bilhões suplementares por
ano, e se gastam $17 em ração para animais de estimação na Europa e EstadosUnidos.
Além disso, gasta-se $35 bilhões em entretenimento para executivos no Japão, $50
bilhões em cigarros na Europa, $105 bilhões em bebida alcóolica na Europa, $400
bilhões em narcóticos no mundo, e $780 bilhões em despesas militares no mundo.59
Assim a simultânea degradação da capacidade reguladora do mercado e redução do papel
do Estado, levam a uma deformação do consumo. E quando o consumo, ou seja, o
interesse final do consumidor, não é mais determinante, os processos produtivos se
deformam. O mundo que herdamos deste processo é cada vez mais surrealista. O que está
acontecendo, na realidade, é que estamos aplicando a uma realidade nova sistemas de
regulação ultrapassados. Explica-se por mecanismos de mercado, teoricamente objetivos
57 Idem, p. x - “Economics and larger economic and political systems cultivate their own version of truth.
This last has no necessary relation to reality”. 58 - UNDP – Human Development Report 1998, New York, 1998, p. 37 59 - id. ibid., p. 37, tabela 1.12
29
e democráticos, dinâmicas que pertencem a mecanismos articulados de poder, que geram
por sua vez uma cultura surrealista de comportamento econômico que tem muito pouco a
ver com o que queremos da nossa vida.
Os nossos gastos são cada vez menos de compra de um produto e cada vez mais de
adesão a um direito de acesso, como no plano de saúde, na telefonia, na TV a cabo, no
condomínio e tantos outros sistemas de consumo onde a nossa escolha é extremamente
limitada.60 A urbanização levou a uma expansão do consumo coletivo que também
envolve poucas opções. Somos clientes de um banco porque a nossa empresa fez um
acordo de lhe “fornecer” determinado número de contas de funcionários, e não porque o
escolhemos, e a cartelização torna inclusive as opções pouco diferenciadas. O
conhecimento constitui uma mercadoria entre aspas, pois só se torna fonte de lucro se
uma empresa puder limitar o acesso e cobrar pedágio sobre o seu uso. São novas
realidades. E o que é o capitalismo quando o elemento regulador principal que seria a
demanda final deixou de exercer este papel?
À medida que os mercados – no sentido original de mecanismo regulador democrático de
inúmeros agentes econômicos – deixam de operar, o sistema evolui para subsistemas
diferenciados de articulação organizada de interesses, variando segundo os setores, as
regiões e culturas econômicas herdadas. E para entender estes subsistemas, precisamos de
estudos empíricos inovadores. O mercado apropriado pelos grandes grupos é cada vez
menos democrático, e na realidade cada vez menos mercado.
Na era das corporações, quando a economia deixa de ser regida por leis de concorrência
de mercado, e tampouco é regida pelas leis da política, gera-se um espaço desgovernado.
A democracia econômica torna-se uma necessidade.
8 - O assédio comercial
Na ausência de sistemas adequados de regulação, e em particular com a erosão da
capacidade reguladora do mercado, passa a imperar o vale tudo onde quem ganha é quem
tem simplesmente maior tamanho, maior capacidade de compra de tempo de publicidade,
um bolso mais fundo para enfrentar a guerra. Sempre nos ensinaram que a competição é
boa. Há uma condição tácita, por trás do argumento, segundo a qual as empresas estariam
competindo para nos servir melhor. Pensar que as empresas competem para melhor se
servir não seria correto?
A simples guerra entre empresas não é necessariamente feita para o nosso bem. Cada vez
mais nos perguntamos qual o papel real que desempenhamos no processo. Quando depois
de meia hora gasta no telefone tentando chegar a um ser humano que nos atenda e resolva
o nosso problema, o telefone de repente dá ocupado, ficamos apenas com uma frase
decorada, de tanto ouvida: “A sua ligação é muito importante para nós”. E como as
pessoas são levadas frequentemente a abusos escabrosos de linguagem quando uma
empresa terceirizada finalmente nos atende, um aviso antecede o atendimento
personalizado: “Para a sua segurança, esta ligação está sendo gravada”. Para a nossa
segurança, naturalmente.
60 Ver em particular o excelente A Era do Acesso, de Jeremy Rifkin, que detalha a mudança em curso..
30
O nosso relacionamento diário envolve contatos com empresas ou pessoas com quem não
temos interesses pessoais, mas interesses econômicos. Trata-se das pequenas negociações
do nosso cotidiano. Mas crescentemente, nos sentimos como guerrilheiros de estilingue
na mão, enfrentando os canhões de gigantes empresariais que têm frotas de atendentes
terceirizados e poderosas empresas de advocacia.
As novas tecnologias permitem que façamos coisas à distância: a comunicação traz e leva
os problemas instantaneamente, quando antigamente tinhamos que nos deslocar junto
com os papéis e as informações. Esta nova cultura é extremamente positiva, e está
penetrando rapidamente nos procedimentos burocráticos, No entanto, quando sistemas
oligopolizados como bancos, telefonia ou outros se apropriam do processo, é o próprio
consumidor que passa a ser terceirizado. Em artigo divertido, o muito conservador The
Economist comenta: “Muitas pessoas se queixam de empresas que terceirizam o trabalho
para paises de baixos salários: mas quantos notam que as empresas estão crescentemente
terceirizando o trabalho para os seus próprios consumidores?...Quem já não se viu pego
em séries intermináveis de menus numéricos? – isto pode deixar clientes furiosos e
aliená-los. No seu desejo de cortar custos, muitas empresas dificultam deliberadamente o
acesso a um operador humano”.61 A linha cai quando você está quase chegando até quem
poderia resolver o seu problema.
Temos escolha? O artigo do The Economist constata que à medida que todos os bancos
adotam o sistema, o consumidor não tem como “votar com os pés” indo para outro banco.
E as diversas instituições estão crescentemente penalizando o acesso personalizado,
mesmo via telefone. Não há notícias de bancos reduzirem as tarifas. Passamos a pagar
por um serviço que nós mesmos fazemos. Segundo a revista, “você talvez não o tenha
notado, mas você agora está trabalhando também para o seu banco ou companhia
telefônica”. No exemplo apresentado, “o auto-serviço online pode reduzir o custo de uma
transação até um mínimo $0,10, comparado com $7 para fazer a mesma transação num
call centre”.62
As fúrias com a publicidade não solicitada nos nossos computadores refletem igualmente
o sentimento de impotência crescente que sentimos. Nos Estados Unidos, estão
introduzindo leis para limitar o “junk faxing”, publicidade enviada para os nossos
aparelhos de fax, e impressas no papel e com o toner que compramos.63 As empresas de
publicidade acham que sai mais barato. As ruas da nossa cidade vão gradualmente sendo
cobertas de out-doors, massacrando-nos com imagens não solicitadas. Há algum limite
ético? Outro artigo de The Economist relata a guerra da Coca-Cola, Pepsi e outros contra
a água e o leite nas escolas: em troca da instalação de máquinas de venda de
refrigerantes, as escolas ganham bolsas, software, equipamento de esporte e mais.64
61 The Economist, september 18th 2004, p. 16 62 The Economist – página 16 do encarte sobre tecnologia no mesmo número: Technology Quarterly. 63 Id., ibid., p. 11 64 The Economist, December 13 2003, p. 15 “Survey of Food”. É interessante constatar que a indignação
crescente está começando a dar frutos. A Coca-Cola deixou recentemente de vender refigerantes em escolas
primárias da Bélgica. O diretor local de comunicação da Coca-Cola, Tom Delforge, explicou que “há dois
anos, a empresa introduziu um novo código de conduta no qual se estabelece que uma escola não é um
ambiente comercial”. Isto vale apenas para a parte francófona da Bélgica, e apenas para escolas primárias.
Folha de São Paulo, 5 de janeiro de 2005. Nos Estados Unidos, a American Beverage Association decidiu
31
É interessante ver outra dimensão deste cruzamento do poder econômico centralizado da
corporação com a capilaridade das novas tecnologias. Quando o computador de uma
empresa pode enviar, praticamente sem custos, 10 milhões de mensagens que chegam ao
nosso domicílio ou escritório, as relações econômicas mudam. Inclusive, o mesmo
mecanismo permite, por exemplo, acrescentar uma pequena taxa ao que estamos
pagando, sem que o notemos. A revista americana Business Week, ao fazer um relatório
especial sobre o assunto, concluiu que os Estados Unidos, que eram Land of the Free,
estão se tornando rapidamente Land of the Fee, terra das cobranças enrustidas (“hidden
charges”). 65
O artigo mostra por exemplo como a empresa AT&T, ao acrescentar uma módica “taxa
de avaliação regulatória” de 99 centávos por mês na conta dos seus clientes de chamadas
à distância, levantou algo como 475 mihões de dólares. Cobranças discretas aos
consumidores que pagam as suas contas online trazem aos bancos lucros estimados em
US$2 bilhões. Segundo o artigo, “as empresas não podem elevar os preços sem perder
negócios, então elas estão enterrando taxas mais elevadas nas ‘letrinhas’ (fine print)”.
Segundo Stephen Brobeck, diretor da Consumer Federation of America, “é muito mais
fácil elevar os preços através de taxas obscuras e de sobrecargas do que elevar os preços
de venda”. Um juiz da Corte Superior da California obrigou MasterCard e Visa a restituir
$800 milhões pela cobrança de taxas escondidas sobre compras feitas em moeda
estrangeira. O artigo considera que “a cobrança de taxas está descontrolada. Um dos
piores violadores é a indústria de telecomunicações, que faz publicidade de planos
baratos de chamadas à distância, e joga encargos extra que acrescentam 20%, em média,
na conta do celular dos clientes.”
A ética dominante do “todo mundo faz” predomina: o porta-voz da AT&T explica que
“se você publica tarifas mais altas baseadas em suas despesas, e os seus competidores
publicam tarifas mais baixas, mas acrescentam várias taxas em baixo da página, o que
você vai fazer?” O relatório da Business Week constata ainda que “ninguém consegue
vencer a indústria do cartão de crédito em sua capacidade de inventar taxas”. A lista da
bandidagem é ampla, envolvendo inúmeras grandes coporações. Estes pequenos roubos
legais envolvem por exemplo os momentos de relaxamento descuidado como no aluguel
de um filme na Blockbuster. As empresas aéreas descobriram que podem inventar multas
porque o passageiro tem de mudar o horário do vôo, além de atrair passageiros
prometendo milhas para as quais nem sempre há lugar. Trata-se quase sempre de
pequenos achaques sobre gastos maiores, e o consumidor suspira mas paga.66 O
sentimento de raiva e indignação (outrage) levou nos Estados Unidos ao surgimento de
em maio de 2006 a progressiva retirada da Coca-cola, Pepsi e Schweppes das escolas, segundo New
Scientist de 13 de maio de 2006. Para uma avaliação mais ampla do processo, ver o artigo Resgatando a
Importância da Informação Publicitária, de Helio Silva e Ladislau Dowbor, Meio& Mensagem, 9 de maio
de 2005, p. 49 www.meioemensagem.com.br 65 Business Week, September 29, 2003, Cover Story – Fees! Fees! Fees! Unable to raise prices, companies
are hitting consumers with hundreds of hidden charges. That’s creating stealth inflation and fueling a
popular backlash. 66 A escala de ação que as novas tecnologias permitem tornou-se aqui essencial. Uma corporação, com
dezenas de milhões de clientes, pode diluir pequenas taxas de forma extremamente barata – uma inserção
no sistema – e os clientes normalmente não irão reparar, ou não têm como perder tempo com cada variação
nas inúmeras contas..
32
inúmeras instituições da sociedade civil. Mas a briga é difícil, pois o cidadão comum não
tem tempo ou recursos para enfrentar empresas terceirizadas de uma grande corporação,
que dispõe de serviços de advocacia permanentes para se defender, de empresas de
cobrança que calculam riscos e benefícios, e de empresas de relações públicas que
amaciam o consumidor e contratam campanhas milionárias de “imagem” para desviar a
pressão.67
O resultado geral, é que quando juntamos várias transformações econômicas como a
formação de um universo de gigantes corporativos, a cartelização que permite manipular
os preços, a generalização da publicidade invasiva que modela às nossas custas o nosso
perfil de consumo, a facilidade da entrada da corporação dentro da nossa casa através do
nosso computador, cobrando pequenas taxas sobre tudo o que fazemos e inclusive se
mantendo informada sobre o que fazemos através dos “cookies” inseridos, tudo isto gera
um universo novo, onde os conceitos tradicionais se tornam pouco convincentes. A
informação sobre o processo é escassa, pois se trata de corporações que a mídia considera
como clientes, compradoras de espaço publicitário. É um sistema novo que exige da
nossa parte a reformulação de numerosas categorias tradiconais, e sobretudo o acúmulo
de estudos empíricos que nos permitam avanços teóricos mais próximos da realidade.
Celso Furtado coloca o consumo como fator central da cadeia de causalidades que
modela o sistema que nos rege, e mostra que no nosso caso, de economias menos
desenvolvidas que adotam costumes dos ricos, a deformação se torna mais grave: “A
adoção pelas classes dominantes dos padrões de consumo dos países de níveis de
acumulação muito superiores aos nosso explica a elevada concentração de renda, a
persistência da heterogeneidade social e a forma de inserção no comércio internacional.
A variável independente é, em última instância, o fluxo de inovações nos padrões de
consumo que irradia dos países de alto nível de renda. Ora, esse mimetismo cultural tem
como contrapartida o padrão de concentração de renda que conhecemos. Para liberar-se
dos efeitos desse imperativo cultural perverso, faz-se necessário modificar os padrões de
consumo no quadro de uma ampla política social, e ao mesmo tempo elevar
substancialmente a poupança, comprimindo o consumo dos grupos de elevadas rendas.”68
O círculo lógico se fecha. Se as grandes corporações podem modelar o consumo,
satisfazer o consumidor muda de sentido. Na realidade, somos nós que passamos a
satisfazer as empresas. Um “plano-executivo” de saúde oferece atendimento numa casa
luxuosa, com poltronas caras e recepcionistas cheirosas. E o serviço médico é abaixo da
crítica, não por culpa dos médicos, mas porque regulado pelo just-in-time da lógica
financeira aplicada à saúde. As pesquisas de marketing indicam que o cliente com
problemas de saúde se sente desprotegido, inseguro: vamos lhe dar a impressão de entrar
num hotel de várias estrelas. Quanto ao tratamento, que é mais caro do que as mocinhas,
não é este que traz clientes. O serviço de saúde se torna assim indústria da doença, por
simples racionalidade do lucro.
Há uma nova geração de estudos do consumo. Não se trata de um tema novo,
evidentemente. Vale sempre a pena reler o suavemente sarcástico Thorstein Veblen, que
67 O relatório do Business Week cita como exemplos www.saveonphone.com , www.ripoffreport.com ,
www.complaints.com e outros. No Brasil, o IDEC presta serviços importantes www.idec.org.br 68 Celso Furtado – O capitalismo global – Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro 1998, p. 60
33
já escrevia sobre o consumo ostensivo em 1899: “Já que o consumo destes bens de luxo é
uma prova de riqueza, torna-se honorífico. Da mesma forma, o fato de não os consumir
na devida quantidade e qualidade constitui uma marca de inferioridade e demérito”.69
Temos também os estudos de Wright Mills, Vance Packard, a escola de Frankfurt e
outros. Mas trabalhos como os de Robert Kuttner, ou de Juliet Schor, trazem uma visão
da expansão qualitativamente nova desta invasão comercial. Henrique Rattner traz no seu
recente O Resgate da Utopia, uma frase simples: “o mundo não é uma mercadoria”. A
frase traduz bem este sentimento difuso que todos temos de ruptura de limites.70
A apresentação do livro de Kuttner resume o enfoque, ao denunciar “a corrente de
argumentos circulares e de modelos matemáticos complexos que ignoram as condições
do mundo real e desconsideram valores e objetivos que não podem ser facilmente
transformados em commodities. Acontece que estes valores e objetivos constituem o que
os americanos ainda consideram parte integral da identidade nacional: justiça, liberdade,
fé, lazer, familia, caridade, amor”. Ao concentrar os nossos esforços nas “commodities”,
na visão das pessoas como consumidores e não como cidadãos, o sistema aprofunda a
eficiência na produção de coisas inúteis. Como o processo é regido não pelas
necessidades das pessoas mas pela capacidade de compra, aprofundam-se as
desigualdades. E as desigualdades geram, além de perda de qualidade de vida para todos,
uma baixa produtividade sistêmica. Assim, a eficiência micro-econômica gera
ineficiência macroeconômica: “As consequências sociais negativas da desigualdade
ultrapassam de longe os ganhos de eficiência alocativa”.71
Juliet B. Schor é uma pesquisadora bem organizada. Escreveu um livro de grande
impacto internacional, The Overworked American, em que analisou como os americanos
se relacionam com o trabalho. O fato é que os americanos realmente passaram a viver
para o trabalho, ostentando por exemplo – e com orgulho – tempos de férias e de lazer
que ficam léguas atrás do que se conhece em outros países. É uma vantagem? Afinal
vivemos para quê?
Tendo constatado que o americano se tornou literalmente escravo do seu trabalho – o
filme American Beauty vem naturalmente à memória – Schor fez outra ampla pesquisa
para ver se pelos menos o que o americano faz com o dinheiro compensa o esforço. Este
segundo livro, The Overspent American, analisa tanto o consumo obsessivo, como a
angústia das famílias americanas, permanentemente endividadas pelas compras que
69 Thorstein Veblen – The Theory of the Leisure Class - Dover Publications, New York, 1994, p. 46 70 Henrique Rattner – O resgate da utopia: cultura, política e sociedade – Palas Athenas, São Paulo, 2005,
p. 196 - The Economist apresenta um balanço da economia da fé, e a expansão do que os americanos
chamam de “passion dollars”: “A reconciliação entre a América evangélica e a Disney é o último exemplo
de uma tendência maior, – a reconciliação entre a América religiosa e a América corporativa. Muitas das
maiores empresas de midia da América estão entrando no mercado religioso.” Você pode comprar livros
dietéticos que explicam “o que Jesus comeria?”. Comentando que “as grandes corporações só recentemente
descobriram Deus”, o artigo analisa a força de Rupert Murdoch, da Random House, da Time-Warner, Sony
e outros. O “profit motive” virou “prophet motive”.é o vale-tudo geral. The Economist, December 3rd
2005, p. 61 71 Robert Kuttner – Everything for Sale: the virtues and limits of markets – Alfred A. Knopf, New York,
1998, p. 86 – No Brasil, Tudo à Venda – Cia. Das Letras, São Paulo, 1998
34
fazem, e que gastam 18% da sua renda com o serviço das dívidas contraídas.72 O
processo está naturalmente muito centrado no lifestyle marketing, na criação de clusters
de comportamento de consumo.
O que nos interessa é o mecanismo. Vale a pena pegar uma citação mais longa que o
explicita. “A intensificação do gasto competitivo afetou mais do que as finanças da
familia. Há igualmente o efeito boomerang sobre os recursos públicos e o consumo
coletivo. Conforme as pressões sobre o gasto privado foram subindo, o apoio aos bens
públicos, e o pagamento de impostos, sofreram erosão. Educação, serviços sociais,
segurança pública, recreação e cultura estão sendo comprimidas. A deterioração dos bens
públicos leva então a uma pressão maior ainda para gastar privadamente. As pessoas
respondem a serviços públicos inadequados matriculando as suas crianças em escolas
privadas, comprando sistemas de segurança, e gastando mais tempo no Discovery Zone
do que no espaço local de lazer. As pressões financeiras pessoais também reduziram a
boa vontade dos americanos em apoiar programas de transferência de recursos para os
pobres ou quase pobres. Com o declínio dramático dos recursos, constata-se um aumento
significativo da pobreza, deterioração de bairros pobres, e níveis alarmantes de
criminalidade e de uso de drogas. As pessoas com dinheiro tentam “comprar” o seu
espaço em volta destes problema. Mas isto não é uma solução para estes males sociais”.
“Um problema com o discurso nacional é o foco em trocas comerciais, em vez da
qualidade da vida, ou saúde social. O produto interno bruto é o deus para quem rezamos.
Mas o PIB é uma medida cada vez mais pobre do bem-estar: deixa de contabilizar a
poluição, o tempo dos pais com as crianças, a força do tecido social da nação, ou a
probabilidade de ser assaltado ao descer uma rua. O ‘indicador de progresso genuíno’,
medida que se admite ser ainda crua mas compreensiva da qualidade de vida, tem
divergido crescentemente do PIB desde 1973, e negativamente. O ‘índice de saúde
social’, outra medida alternativa, declinou também dramaticamente desde 1976, ficando
num nível baixo recorde durante os anos 1990. Quando contabilizamos não só a nossa
renda mas também as tendências em tempo livre, segurança pública, qualidade ambiental,
distribuição de renda, suicídios adolescentes e abuso de crianças, descobrimos que as
coisas tem se tornado piores durante mais de vinte anos, ainda que o consumo tenha
crescido”.73
É bastante evidente que se matar de trabalho para comprar coisas inúteis, e depois
trabalhar mais pelo endividamento gerado por esssas compras é de uma racionalidade
corporativa perfeitamente compreensível, mas de uma idiotice lamentável do ponto de
vista do cidadão, dos resultados que a economia visa, como vimos na começo deste
ensaio.
Uma terceira pesquisa de Juliet Schor merece ser mencionada: ela resolveu estudar como
o processo impacta as crianças, num livro extremamente forte, Born to Buy.74 A análise
sistemática do universo da publicidade centrada no público infantil mostra que o grosso
72 Juliet B. Schor - The Overspent American: why we want what we don’t need – Harper Perennial, New
York 1998, p. 19: “Debt service as a percentage of disposable income now stands at 18%, even higher that
during the early 1990s recession”. 73 Id., ibid., p. 21 74 Juliet B. Schor – Born to Buy: the Commercialized Child and the New Consumer Culture – Scribner,
New York, 2004
35
da publicidade tem origem num número reduzido de corporações, que trabalham um
leque relativamente reduzido de produtos que também pertencem a grandes corporações.
Na mídia, trata-se da Disney, Viacom, Murdoch e AOL Time Warner. Os produtos são de
Mattel e Hasbro na área de brinquedos (American Girl etc.); Nintendo, Sony e Microsoft
na área de jogos eletrônicos; Coca-Cola e Pepsi na área dos refrigerantes; McDonald e
Burger King na área de fast-food e assim por diante. “No mundo de produtos para
crianças, os mercados são dominados por algumas empresas poderosas. Isto é importante
por várias razões. Uma é que com o monopólio vem a uniformidade. A teoria econômica
prevê que quando dois oponentes se enfrentam, a estratégia ganhadora para ambos os
leva a serem quase idênticos...O que isto significa para os consumidores é que a
verdadeira variedade e diversidade de produtos se torna difícil de achar. Se você estiver
interessado numa pizza gordurosa, bebidas doces, brinquedos de plástico e programação
violenta para as suas crianças, não há problema. São as outras coisas que faltam.”75
Para a criança, submetida em média a 38 horas semanais de exposição à mídia, o impacto
é poderoso. Além do impacto indireto da publicidade dirigida ao mundo adulto,
desenvolveu-se uma indústria impressionante da publicidade dirigida a crianças até os
três anos de idade, a crianças um pouco maiores chamadas de “tweens” porque estão
“between” os pequenos e os “teens” adolescentes, e evidentemente aos próprios
adolescentes. O conteúdo está centrado em relativamente poucos produtos,
essencialmente as “fast foods”, refrigerantes, brinquedos e roupas.
A filosofia transmitida é de que a criança precisa sentir que sem um determinado produto
estará “por fora”: Nas palavras de Nancy Shalek, presidente da agência Shalek Agency,
“a publicidade atinge o ideal quando está fazendo as pessoas sentir que sem o seu
produto, você é um perdedor. As crianças são muito sensíveis a isso. Se você lhes diz que
têm de comprar algo, elas resistem. Mas se você lhes diz que se não o fizerem serão uns
“babacas” (dork, no original inglês, é bem mais pesado que “babaca”), elas prestam
atenção. Você abre a vulnerabilidade emocional delas, e isto é fácil de fazer com crianças
porque elas são as mais vulneráveis emocionalmente”. 76
Juliet Schor analisa este universo setor por setor, de maneira bem documentada. Há a
indústria da chamada “Big Food”, grandes empresas da alimentação caracterizadas por
“high-fat, high-sodium, high-sugar” que geraram uma epidemia de crianças obesas, a
quem se oferece por sua vez cirurgias estéticas que lhes permitirão comer mais comida.
Esta batalha inclui a luta contra o leite e a água, a serem substituidos por refrigerantes
com altas doses de açucar. Há os batalhões de psicólogos que fazem pesquisas com
crianças para definir como conseguir uma ponte de cumplicidade entre as corporações e
as crianças: o ideal é inserir uma cunha entre os pais (velhos, chatos, cheios de suco
natural, leite, legumes, frutas e outras idiotices ultrapassadas) e a garotada “cool” que é
mais esperta, que “não engole qualquer coisa” (a não ser sabores químicos misturados
com muito açucar).
75 Id., ibid, p. 28 76 Id., ibid., p. 65 – É importante lembrar que nos nossos cursos de marketing nos ensinamos jovens a
dominar estas técnicas.
36
E há evidentemente a ofensiva pela inserção da publicidade (e dos produtos) nas escolas,
utilizando inclusive os horários de aula. Muitos dos impactos resultam da visão das
crianças de que se estas coisas são legais, autorizadas pelos pais, e veiculadas nas escolas,
devem ser legítimas. A penetração nas escolas se dá pela via mais óbvia, pois as escolas
estão sempre desesperadas por recursos, por computadores, e as empresas trocam a ajuda
por direito de entrada na escola, na sala de aula, até nos conteúdos dos livros escolares.
A autora trabalha os grandes argumentos, e aparece o enfoque da economista. Primeiro, a
afirmação de que a televisão é gratuita: “A população paga a publicidade e os programas
ao pagar preços mais elevados pelos produtos apresentados. O fato é que se você é um
consumidor, você paga pela TV, quer você assista ou não.” A idéia de que a publicidade
promove a competição, e portanto leva a melhores produtos, é outra bobagem: ”Com as
indústrias monopolizadas de hoje, o alto custo das campanhas publicitárias mantém os
gigantes no controle e exclui novas empresas. Se realmente quiséssemos maximizar a
inovação e melhoria dos produtos, organizaríamos o sistema da maneira que a
publicidade fosse menos cara e essencialmente informativa”.
Outro argumento é de que a publicidade aumenta a demanda, e com isto a produção e o
emprego. “Mas a maioria dos economistas discorda desta lógica. Eles vêm a publicidade
como afetando a escolha da marca e não o volume global de compras”. Há igualmente o
argumento de que as empresas de publicidade geram empregos, argumento levantado
pelo presidente de uma das maiores empresas de publicidade frustrado com o seu
sentimento de ter dedicado a sua vida a promover alimentos ruins e a liquidar a cultura e
tradições locais. Na visão de Juliet Schor, “quando envolve crianças, esta
instrumentalidade é muito mais questionável. Com efeito, há muito pouca justificação em
fazer publicidade para crianças meramente para assegurar o lucro das agências”. 77
Igualmente poderoso, é o argumento de que “todos fazem”, e se eu não fizer...Schor
entrevista uma publicitária que declara abertamente que empurra produtos que não
deixaria as suas próprias crianças usar. A chave do problema, é que “nas agências, as
pessoas têm medo de confrontar os clientes. Nas empresas, há uma ausência semelhante
de responsabilização (accountability). E no conjunto, a pressão para fazer dinheiro supera
a necessidade de fazer coisas boas para as crianças”. As empresas, segundo Schor, estão
presas ao sistema: “À medida que baixa o nível, individualmente as empresas se vêm
amarradas na dinâmica. Se os seus competidores o fazem, a pressão para acompanhar é
forte”.78
A autora é particularmente feliz quando descreve as alternativas: assegurar que uma
parcela dos fundos publicitários seja destinada a programas culturais de informação sobre
as própria publicidade e sobre os produtos; facilitar a criação de rádios e TVs locais e
comunitárias com programas gerados por crianças e adolescentes (há muitos exemplos de
bom funcionamento); resgatar o direito das crianças brincarem fora de casa, em vez de
ficarem confinadas frente a um televisor (a Suécia rediziu pela metade acidentes com
77 As várias citações acima estão nas páginas 181 e 182 do livro citado. 78 Id., Ibid., p. 188 e 193
37
crianças nas ruas através de algumas medidas simples); gerar dinâmicas culturais com
protagonismo das próprias crianças e assim por diante.
Nos Estados Unidos, já se gerou uma onda de protestos que cresce a cada ano, e a leitura
das formas como os pais estão se organizando – por exemplo proibindo no Estado da
California os manuais escolares, doados por empresas, onde as palavras a aprender eram
os nomes das próprias empresas – é particularmente útil. É interessante aparecer uma área
da ciência econômica que por exemplo os educadores não podem mais ignorar, e que
deveria ser ensinada inclusive às próprias crianças. 79
Na realidade, pela intensidade de trabalho que desenvolvemos para produzir coisas
inúteis, pelo volume de coisas descartadas que desperdiçamos, pelo impacto ambiental de
um consumo que não se sustenta e nos leva a impassses generalizados, pelos custos
adicionais para nos curar da obesidade e outras doenças geradas por consumo irracional,
pelo isolamento social que gera a acumulação individual de bens, pelos gastos em
segurança e desconforto geral que resulta da desigualdade e da elitização social – fica
cada vez mais evidente a inadequação do instrumental teórico herdado, que nos fala de
valor de uso e de valor de troca sem se referir ao valor artificialmente construído, que
aponta para a liberdade de escolher sem se referir às escolhas idiotas a que somos
reduzidos, que soma no PIB os valores comercializados sem se referir a o quê e para
quem produzimos, que faz cálculos de rentabilidade empresarial sem se referir aos
resultados práticos em termos de qualidade de vida da sociedade, que aponta para a curva
crescente de consumo sem fazer o paralelo com a descapitalização dos recursos não
renováveis.
A realidade é que estamos trabalhando cada vez mais para produzir coisas que fazem
cada vez menos sentido. E formar profissionais para tornar mais “eficiente” este processo
não faz nenhum sentido. A democracia econômica, nesta área essencial do consumo,
consiste em respeitar o direito de cada um buscar a informação que lhe interessa (lógica
da demanda), em vez de invadir o seu tempo e espaço de privacidade com produtos que
interessa empurrar.
9 - A infra-estrutura econômica e as economias externas
É impressionante a que ponto a questão das infraestruturas econômicas está pouco
presente nas ciências econômicas. Há gente, sem dúvida, que pesquisa energia, outros
que estudam soluções para os transportes, outros ainda a problemática das comunicações,
ou da água. Mas se trata de forma geral de engenheiros voltados à problemática
específica. O mercado de ações é mais importante, para efeitos de desenvolvimento
econômico, do que boas soluções de transportes?
Uma coisa é o funcionamento da máquina econômica, o seu dia a dia, o seu ritmo maior
ou menor segundo a conjuntura. Outra coisa é a estrutura da própria máquina: neste
79 O livro vale também pela excelente bibliografia, e pelos sites de internet onde pode ser adquirida
documentação sobre os mais variados aspectos do problema (nas páginas 215 e seg.).
38
plano, a economia funcionará bem ou mal em grande parte em função das infraestruturas
serem mais ou menos adequadas. Um navio que chega a Rotterdam é descarregado em
horas em terminais especializados por tipo de carga; esta passa diretamente do navio para
o vagão de trem, com etiquetas eletrônicas que permitem ao empresário acompanhar a
carga esperada.
Desenvolvemos em outro trabalho o estudo de como se articulam as grandes redes de
infraestruturas que permitem que as atividades produtivas se desenvolvam de maneira
eficiente, e que as pessoas tenham melhor qualidade de vida.80 Interessam-nos aqui não
as eventuais soluções para os transportes ou a energia, mas a necessária intensificação
dos estudos das infraestruturas na ciência econômica, e o estudo econômico das formas
como se articulam e geram sinergias.
A tradição quer que na economia nos concentremos nos processos produtivos, nos fluxos
financeiros e comerciais correspondentes, mas menos nas infraestruturas físicas que
tornam a produção viável. O Banco Mundial utiliza a imagem simpática de que as
infraestruturas representam “senão o motor, então as rodas da atividade econômica”.
Podemos também utilizar a imagem do corpo: para funcionar, o corpo tem órgãos, como
fígado, coração, cérebro. Mas a qualidade sistêmica do corpo se dá graças ao sistema
nervoso que transmite informações, à corrente sanguinea que assegura o transporte
interno, ao esqueleto que assegura estrutura e articulações. Na realidade, ter boas
empresas e infraestruturas inadequadas reduz a produtividade sistêmica. 81
As grandes infraestruturas exigem forte presença do Estado, pois se trata de
investimentos muito elevados, e de rentabilização de longo prazo, que não interessam
muito ao investidor privado. O setor privado, de forma geral, prefere que o Estado arque
com as grandes despesas, e que energia, transportes e água mais baratos resultem em
economias externas para a sua produção. O relatório mencionado do Banco Mundial,
analisando 200 bilhões de dólares de investimentos em infraestruturas nos países em
desenvolvimento, constatou a presença de apenas 14 bilhões de dólares de dinheiro
privado, ou seja, 7%.82
Mas há uma razão maior para a forte presença do Estado na área: enquanto a indústria,
por exemplo, desenvolve as suas atividades em unidades empresariais geograficamente
localizadas, as infraestruturas, pela sua própria natureza, constituem redes que articulam
o conjunto, e devem portanto obedecer a uma visão sistêmica do desenvolvimento do
território, e a uma visão de longo prazo. Ambas exigem capacidade de planejamento,
atividade que praticamente desapareceu do horizonte de trabalho dos economistas,
enterrada sob as bobagens da escola de Chicago e sob os desmandos dos economistas da
ditadura. Isto, naturalmente, para não falar dos tempos mais recentes.
80 Ladislau Dowbor – A Reprodução Social: propostas para uma gestão descentralizada – Editora Vozes,
Petrópolis 2003, 3ª Edição revista, ver em particular o vol. II. 81 The World Bank – World Develolpment report 1994: Infrastructure for Development - Washington,
Oxford University Press, 1994 – “Recent studies in the United States suggests that the impact of
infrastructure on economic growth represents startingly high rates of return (up to 60 percent)”., p. 15. 82 Op. Cit., p. 10
39
O resultado prático, para o país, é que se restringiu drasticamente a capacidade de ação
do principal ator desta área, que é o Estado, sem que o setor privado tivesse capacidade
de intervenção significativa. Ficou um vazio, com prejuízos seguramente impressionantes
– mas pouco estudados –, mal preenchido por remendos do tipo PPP (Parcerias Público
Privadas) e outras iniciativas.
Quando o setor privado se interessa, o faz buscando respostas pontuais que reduzam os
seus custos, e não a constituição de uma rede integrada capaz de dinamizar uma região.
Às fazendas de soja da região Oeste interessa fazer uma ferrovia que una as suas
plantações ao porto de Paranaguá ou de Santos; aos japoneses interessa uma ferrovia que
una Carajás ao porto mais próximo em São Luis, e assim por diante. É o que aconteceu
na África, onde as ferrovias constituem canais de escoamento de grandes grupos
(mineração ou monocultura), sempre unindo o porto e uma região particular do interior,
em vez de articular as diversas regiões entre si. São infraestruturas cuja lógica é drenar
riqueza para fora, não para integrar os espaços econômicos da própria região e do
conjunto. O inverso pode ser constatado na Europa, onde uma rede em forma de teia une
todos os centros significativos entre si, e se desdobra em ramais secundários para cada
pequena região produtiva, gerando um sistema que funciona tanto nos grandes eixos
como na capilaridade de apoio à produção local. As redes de trens de grande velocidade
(TGV), por sua vez, permitem viagens cômodas e rápidas entre as capitais, reduzindo a
dependência do automóvel particular e do avião, incomparavelmente mais caros, gerando
economias para conjunto.
Trata-se aqui, em termos de estudos econômicos, não de desbravar novos territórios mas
de resgatar uma capacidade técnica que já tivemos. Celso Furtado vem de duas
influências interessantes nesta área: a Cepal, que buscou resgatar a visão
macroeconômica e criar condições para promover ativamente o desenvolvimento, e
sobretudo a França, onde os estudos de ordenamento do território (aménagement du
territoire) e das infraestruturas correspondentes sempre foram muito presentes na ciência
econômica. Resultou desta influência a visão muito presente dos desequilíbrios regionais,
e da necessidade de se gerar condições de reequilibramento.
O território está pouquíssimo presente nas análises análises do main-stream econômico,
que espera resolver os problemas econômicos através da criação de um espaço contínuo
planetário, onde o mercado resolverá os problemas através dos fluxos de otimização no
rendimento dos recursos. A importante questão do desenvolvimento local, da visão do
território nas análises, é tão insuficiente que frequentemente recorremos a Milton Santos,
um geógrafo, para entender as dinâmicas espaciais.83
Os resultados são críticos. Uma região metropolitana como São Paulo não tem nenhuma
instituição que estude e promova a racionalização territorial e ordenamento das
infraestruturas. A Emplasa, organismo de planejamento criado para este fim, sobrevive
proforma, quando deveria ter um papel essencial. Não há sequer, na maior e mais
83 Milton Santos – O Espaço Dividido: Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos
– Francisco Alves Editora, Rio de Janeiro 1979; ver também o excelente Espaço, Ciência e Técnicas
40
moderna metrópole latino-americana, un núcleo de estudos da cidade. As tentativas de se
criar uma secretaria de assuntos metropolitanos ficaram no limbo. O resultado são mais
de um milhão de pessoas vivendo em áreas de mananciais; poluição dos rios e represas da
região, enquanto bombeia-se água a 150 quilómetros na bacia do Piracicaba; sistemas de
saneamento em condições lamentáveis, gerando doenças cuja cura exige muito mais
recursos do que custaria a prevenção; diariamente milhões de paulistanos tomam
individualmente o seu carro para ficarem parados na Marginal, olhando pateticamente
para os esgotos que caem no rio Tieté: a velocidade média do automóvel em São Paulo
atingiu 14 quilómetros por hora, velocidade das carroças do início do século passado; a
rede coletiva ostenta os seus ridículos 45 quilómetros de metrô; um prefeito prehistórico
inventa “elevados” e túneis, em associação com grandes empreiteiras, imaginando
resolver o problema do transporte ao acumular vários andares de veículos particulares,
em vez de investir no transporte coletivo.84
No nível do país no seu conjunto as coisas não são mais brilhantes. Se olharmos o mapa,
vemos que quase todos os centros econômicos do país, com exceção da região de Belo
Horizonte, são cidades portuárias ou semi-portuárias, de Manaus a Belém, passando por
Fortaleza, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Santos-São Paulo, Paranaguá-Curitiba,
Florianópolis, Porto Alegre. Uma solução evidente é uma política fortemente centrada na
modernização dos portos, e no desenvolvimento do transporte de cabotagem, associados
ao desenvolvimento de uma rede ferroviária integradora, utilizando-se o caminhão apenas
para carga fracionada em distâncias curtas. Gastar asfalto, petróleo e pneu para
transportar mercadorias de grande volume por estrada – opção mais cara em termos de
custo tonelada-quilômetro – é surrealista. O transporte de uma saca de soja que sai do
Mato Grosso do Sul para ser embarcada em Santos, por exemplo, custa 40% do valor do
produto, quando em geral se trabalha com um custo abaixo de 5%.
Com isto tudo fica mais caro para todos. Numa metrópole, perde-se uma manhã para
resolver um problema simples, jovens morrem como moscas em acidentes de motos, pois
não basta entupir as ruas, agora preenchemos os espaços entre as filas de carro. Só na
cidade de São Paulo são mais de 150 mil motoqueiros que levam documentos e pequenas
encomendas através da cidade parada, criando uma nova geração de paraplégicos e
tetraplégicos. As opções econômicas não são neutras nem inocentes.
A mídia e as revistas econômicas só falam de inflação, da cotação do dólar, dos diversos
produtos de aplicações financeiras, de fusões empresariais, do volume de exportações. Os
problemas estruturais deixaram de ser analisados, ficou a análise de conjuntura. Temos
aqui uma tradição a resgatar, e uma capacidade de planejamento a reorganizar,
permitindo a construção de uma visão sistêmica e de longo prazo do nosso
desenvolvimento. Por enquanto, o que temos não são economias externas, são
deseconomias externas, sobrecustos gerados por infraestruturas irracionais. E cursos de
economia que gastam anos estudando teorias desconectadas da realidade.
84 A cidade de Boston desmanchou recentemente os seus últimos elevados, estes monumentos à burrice
técnica e ao descaso com a qualidade de vida urbana.
41
As infraestruturas têm um impacto profundo sobre o desenho espacial das atividades
econômicas. Soluções inteligentes não exigem reinventar a roda, mas exigem um
exercício sério de estudos de economia comparada, para conhecer as soluções que já
deram as suas provas em diversos países, e um estudo igualmente sério do potencial de
interação das bacias econômicas em diversos níveis territoriais. As nossas universidades
sequer estudam as regiões onde estão instaladas, quando poderiam tornar-se braços
científicos da mobilização dos recursos de cada região.
Estamos falando, na realidade, do resgate do papel estruturador do Estado, da capacidade
de planejamento, da visão de conjunto e de longo prazo, que desapareceram do horizonte
da ciência econômica. Quando há planejamento e uma visão ampla dos objetivos, estes
podem se submetidos à sociedade, que poderá se pronunciar. Sem planejamento,
aparecem fatos consumados. Não há opção democrática, apenas negócios.
10 - O Desenvolvimento local
É viável se pensar a cidade como espaço de acumulação? Podemos sem dúvida pensar
uma empresa como unidade de acumulação, e os gestores de uma empresa têm à sua
disposição um conjunto de técnicas para assegurar que os recursos disponíveis sejam
plenamente utilizados, que as diversas atividades empresariais formem um conjunto
coerente, que os processos e ritmos dos diversos departamentos sejam compatíveis. Ou
seja, a empresa proclama a mão invisível, mas apenas lá fora. Dentro da empresa, impera
a racionalidade por vezes opressiva, por vezes hipócrita, por vezes corrupta, e muitas
vezes simplesmente eficiente, mas no conjunto ninguém nega a necessidade de uma
gestão racional.
O município pode ser gerido racionalmente? A própria prefeitura é uma unidade gestora,
e presta contas. Mas uma cidade, com o seu contorno rural, pode ser vista como espaço
de processos coerentemente articulados e integrados, visando uma produtividade
sistêmica elevada? Até recentemente, o problema não aparecia como relevante, pois
havia população urbana apenas em algumas capitais, e o grosso da população constituia
população rural dispersa. O resultado era que governo era coisa da capital, onde famílias
ricas acumulavam a direção empresarial e a direção política. Hoje o Brasil tem 82% de
população urbana, em cerca de 5.600 municípios, que constituem a unidade básica de
organização política, econômica, social e cultural. A Constituição de 1988 concedeu
autonomia aos municípios. É possível se pensar a racionalidade do conjunto – o país –
sem resgatar a coerência interna das unidades básicas, os municípios?
Esta visão constitui um deslocamento de perspectiva. De certa maneira, deixamos de
olhar o município como o lugar distante onde os projetos do governo central ou as
iniciativas da grande empresa devem chegar, para considerar o município como bloco
básico de construção do conjunto. Uma economia poderia funcionar bem se as suas
empresas fossem geridas de forma caótica? Adotando o mesmo raciocínio para a nação,
podemos nos perguntar se é viável uma racionalidade nacional sem se promover a
racionalidade do conjunto das unidades que a compõem.
42
Em particular, ao se deslocar boa parte das iniciativas do desenvolvimento para o nível
local, aproxima-se a decisão do espaço onde o cidadão pode efetivamente participar,
enfrentando em particular a questão das periferias urbanas que se tornaram a forma
dominante de manifestação da nossa tragédia social.
John Friedmann coloca com clareza a mudança de foco em termos tanto de objetivos
como de mecanismo correspondente de regulação que a territorialização exige: “O
modêlo mainstream de crescimento econômico expressa o anseio do capital global por
uma economia ‘sem fronteiras’ na qual não haja nem interesses organizados nem poderes
intermediando os centros de decisão corporativa por um lado, e trabalhadores e
consumidores individuais por outro. Na ideologia do capital, este tipo de economia se
chama ‘livre’. Reduz os interesses territoriais a um mínimo de ‘lei e ordem’, como
assegurar o respeito aos contratos e a manutenção da ordem nas ruas. Esta visão traz
também a expectativa que os Estados territorias lidarão da melhor forma que puderem
com as consequências sociais do investimento privado e das decisões produtivas, tais
como o esgotamento de recursos, desemprego, pauperização, poluição, deflorestamento e
outros problemas das ‘áreas comuns’. A territorialidade chama a nossa atenção para o
ambiente físico: a base de recursos da economia, o valor estético de paisagens
tradicionais, e a qualidade de vida no ambiente construído onde têm lugar todas as nossas
ações e que afetam a nossa vida, direta e indiretamente”. 85
Friedmann coloca com força a compreensão de que além da regulação empresarial e da
regulação governamental, existe um processo de regulação crescente na base da
sociedade, a partir do local onde as pessoas vivem, na linha do que chamou de
“participatory governance”. “Um desenvolvimento alternativo é centrado nas pessoas e
no seu ambiente, mais do que na produção e nos lucros. Da mesma forma que o
paradigma dominante aborda a questão do crescimento econômico na pespectiva da
empresa, que é o fundamento da economia neoclássica, um desenvolvimento alternativo,
baseado como deve ser no espaço de vida da sociedade civil, aborda a questão da
melhoria das condições de vida e das vivências na perspectiva do domicílio”.
Estes objetivos nos levam ao conceito de articulação da regulação local com o poder do
Estado. “Apesar de apontar para uma política localmente enraizada, um desenvolvimento
alternativo requer um Estado forte para implementar as suas políticas. Um Estado forte,
no entanto, não precisa ser pesado no topo, com uma burocracia arrogante e enrijecedora.
Será mais bem um Estado ágil e que responde e presta conta aos seus cidadãos. É um
Estado que se apoia amplamente numa democracia inclusiva na qual os poderes para
administrar os problemas serão idealmente manejados localmente, restituídos às unidades
locais de governança e ao próprio povo, organizado nas suas comunidades. 86
85 John Friedmann – Empowerment: the politics of alternative development – Blackwell, Cambridge 1992 –
As citações foram retiradas das páginas 31 e 35 86 Idem - O conceito de “empowerment” tem sido traduzido de forma óbvia por empoderamento, e já foi
apropriado na nossa literatura, tal como empoderamiento na literatura hispânica. Note-se que Friedmann
trabalha com o conceito de desenvolvimento local, mas na perspectiva de territorialidades (no plural)
articuladas (ver p. 133 para as definições correspondentes). Estamos além de um “o negócio é ser pequeno”.
43
Com isto a participação comunitária, o seu envolvimento direto nos assuntos da gestão
racional dos recursos localmente disponíveis, aparece como um mecanismo regulador
complementar, acrescentando-se ao mercado que constitui o mecanismo regulador
dominante do setor empresarial, e ao direito público administrativo que rege a ação dos
órgãos do Estado. Como a qualidade de vida da comunidade representa em última
instância o resultado que se quer do desenvolvimento, a demanda organizada da
comunidade passa a constituir o “norte” orientador, para a produtividade sistêmica, da
mesma forma como a demanda do consumidor individual o era para os processos
produtivos tradicionais.
Os trabalhos de Robert Putnam trouxeram fortes avanços neste plano, pois mostram a que
ponto os mecanismos participativos não só complementam a regulação do Estado e do
mercado, mas constituem uma condição importante da eficiência destes mecanismos. O
capital social aparece como fator importante da qualidade da governança de um território
determinado. O estudo sobre a Itália já se tornou um clássico, mas é sobretudo na análise
dos Estados Unidos que Putnam mostra a importância da capacidade de organização
social da sociedade em torno aos seus interesses – a dimensão participativa da regulação
econômica e política – como um elemento chave da racionalidade do desenvolvimento
em geral.87
Do ponto de vista da teoria econômica, o processo em sí é interessante, pois fomos
gradualmente passando da visão do capital físico acumulado que ainda ocupa o papel
central em O Capital de Marx, para uma compreensão do papel maior do capital
financeiro, evoluindo para a recente tomada de consciência da importância do capital
natural que estamos esgotando no planeta, a compreensão mais ampla do capital humano
que se tornou crucial com os avanços tecnológicos, e do capital social que representa de
maneira mais ampla a maturidade e coesão do tecido social que sustenta o conjunto. A
progressão ao mesmo tempo reflete a ampliação do conceito de economia, e a articulação
da ciência econômica com as outras ciência sociais. O conceito de capital social está sem
dúvida na moda neste momento, mas na realidade o importante é compreender a
necessidade de se organizar a alocação racional de capital no sentido mais complexo 88
A visão tradicional seria de que os municípios constituem a base de uma pirâmide, e esta
“verticalidade” teórica está profundamente ancorada nas nossas convicções. Na realidade,
as novas orientações apontam para a articulação horizontal dos atores sociais dentro do
município, e para as formas inter-municipais de gestão (por exemplo consórcios
intermunicipais de saúde, comités de bacias hidrográficas, conselhos regionais de
desenvolvimento, redes de cidades-irmãs), permitindo articulações regionais complexas.
O resultado é que as próprias comunidades deixam ser ser “pequenas demais” para serem
viáveis, pois podem se articular de maneira criativa e diferenciada nas diversas
87 Robert Putnam – Bowling Alone: the collapse and revival of American community - Simon & Schuster,
New York, 2000; o seu estudo sobre a Itália, Making Democracy Work, foi traduzido no Brasil como
Comunidade e Democracia. 88 É a visão que desenvolvemos no nosso “A Reprodução Social”, partindo da compreensão de que a
reprodução do capital constitui apenas um segmento – ainda que central – do processo de
desenvolvimento. Passamos assim a ver o desenvolvimento como articulação das diversas formas de capital
em territórios diferenciados e complementares.
44
territorialidades. O ponto chave aqui, é a iniciativa, o sentimento de apropriação das
políticas, que é devolvido ao espaço local, onde as pessoas podem participar diretamente,
pois conhecem a realidade e a escala de decisão coincide com o seu horizonte de
conhecimento.
Isto muda profundamente o que poderíamos chamar de cultura do desenvolvimento. Uma
comunidade local deixa de ser um receptor passivo de decisões longínquas, seja do
Estado que vai “doar” um centro de saúde, ou de uma empresa que chegará e poderá
“dar” empregos. O desenvolvimento deixa de ser uma coisa que se espera pacientemente,
torna-se uma coisa que se faz, inclusive no aspecto da organização dos aportes externos.
A cidadania política é complementada pela cidadania econômica, e gera-se o sentimento
de apropriação e domínio da sua própria realidade.89
Uma dimensão importante deste processo é a mudança do paradigma da comunicação.
“O espaço está morto” comenta um articulista americano, ao ver a conectividade
planetária instantânea dos que trabalham com aplicações financeiras. É um exagero
evidente, as pessoas ainda moram numa cidade concreta, olham o pôr do sol na beira de
um rio concreto. Mas o fato da informação estar instantaneamente disponível em
qualquer pare do planeta muda drasticamente o nosso universo de reflexão. O município
de Piraí, no interior do Estado do Rio, criou um sistema público de acesso banda larga na
internet para todos. Foi um pequeno investimento público, mas representou um grande
fator de produtividade para as empresas e comércios locais, que passaram a se relacionar
com fornecedores e consumidores em escala muito mais ampla. A taxa um pouco mais
elevada paga pelos empresários permitiu generalizar o acesso banda larga até nos bairros
mais pobres, por 35 reais por mês. O impacto de inclusão digital foi profundo, mas o
interessante é que a generalização da conectividade permitiu melhorar a produtividade de
todos os atores sociais do município, das escolas, do sistema de saúde e assim por diante.
A experiência constitui uma forte ilustração de como podem ser articulados os espaços
global, regional e local, através das formas modernas de conectividade, num processo em
que a comunidade é dona do seu próprio processo de desenvolvimento, em vez de
aguardar que uma multinacional abra um resort e fantasie a população local com trajes
típicos. 90
O Wi-Fi é a tecnologia que permite, havendo um ponto emissor na casa, todo o
“ambiente” da casa, ou do escritório acessar a internet sem fio. Hoje a tecnologia está
sendo aplicada a espaços urbanos, permitindo que as pessoas trabalhem ou estudem em
qualquer lugar. É a versão computador do telefone celular, cobrindo todo um espaço
89 Um aporte interessante neste plano é o de Bruno Frey e Alois Stutzer, que no seu estudo sobre
felicidadade e economia, insistem na importância relativa do processo pelo qual chegamos a resultados
econômicos. O sentimento de apropriação, de ser sujeito criativo de um processo, constitui frequentemente
uma motivação mais importante do que apenas o resultado (outcome) sob forma de vantagens econômicas.
Bruno S. Frey and Alois Stutzer, Happiness and Economics, Princeton University Press, Princeton 2002 90 O projeto Piraí Digital resultou de uma parceria entre o município e a Universidade Federal Fluminense,
sob orientação do prof. Franklin Coelho. Hoje vários municípios da região estão seguindo o exemplo, e
criando um eixo digital integrado regional. Este enfoque, de se gerar com serviços públicos iniciativas que
tornam todos os atores sociais mais produtivos, generalizando economias externas, é estudado de maneira
sistemática por Carlos Trigiglia, no seu Sviluppo Locale, Ed. Laterza, 2005.
45
urbano. Gerou-se hoje uma corrida de cidades que instalam retransmissores de forma que
todo o espaço urbano esteja coberto pelo sinal. Chamam isso de “municipal mesh Wi-Fi
networking”. Segundo artigo publicado pelo New Scientist, “as redes públicas Wi-Fi
terão também impacto no Wi-Fi em residências, escolas, livrarias e cafés...Sistemas que
abrangem toda uma cidade ligam um conjunto de pontos Wi-Fi para formar uma teia
(“mesh”) onde os sinais de rádio recebidos num ponto saltam de antena para antena até
encontrarem alguém que está conectado na net”.91
Para já, a tecnologia, que permite conectividade de todo o espaço urbano, é barata. Por
exemplo, na cidadade de Philadelphia, nos EUA, “cerca de 4000 postes nos 320
quilómetros quadrados da cidade terão antenas Wi-Fi que cobrirão a cidade com sinal,
banda larga sem fio. A promessa é de um acesso internet de 1-megabit/segundo por
menos de 10 dólares por mês, comparado com 45 dólares para a conexão cabo hoje.”. A
cidade de Taipei em Taiwan, na China, está generalizando o sistema com uma taxa geral
de 12 dólares por mês.
A convergência teórica mencionada aponta assim para um conjunto de estudos centrados
nos diversos vetores que constroem a modernidade. Os trabalhos de Manuel Castells
sobre a sociedade em rede apontam para a facilidade maior desta regulação local
aproveitando a conectividade horizontal do conjunto de atores sociais que participam do
processo de desenvolvimento. Os estudos de Pierre Lévy sobre a inteligência coletiva
permitem vislumbrar uma sinergia de esforços sociais através da convergência das
informações e dos conhecimentos de uma comunidade territorial articulada com
comunidades virtuais. Os trabalhos de Ignacy Sachs, partindo da preocupação da
sustentabilidade dos processo de desenvolvimento, evidencia a importância dos recursos
subutilizados – herança das discussões sobre planejamento econômico na Polônia
socialista, tempos de Lange e Kalecki – que existem em cada localidade.92
Voltamos aqui, de certa maneira, ao nosso ponto de partida, da visão que Celso Furtado
nos trouxe de uma ciência econômica propositiva, que aponta o caminho de construção
dos resultados que queremos, em vez de nos perdermos em prognósticos sobre a
nervosidade do mercado financeiro. O resultado, evidentemente, deve ser a nossa
prosaica qualidade de vida, numa visão sustentável. A imagem da qualidade de vida nos
remete a um bairro agradável, com razoável prosperidade, saúde, riqueza cultural,
equidade e segurança: grande parte destas coisas se organiza localmente, e ter uma
economia gerida por resultados implica que estes resultados sejam em grande parte
determinados pelas comunidades criativas e diferenciadas que temos, e não
necessariamente reproduzindo um modelo padrão decidido em cima. Assim, ao
associarmos desenvolvimento local com o conceito de cultura do desenvolvimento
estamos apontando para uma reconciliação entre a democracia política e a democracia
91 Paul Marks, New Scientist, 25 March 2006 - Cities race to reap the rewards of wireless net for all 92 Manuel Castells – The Rise of the Network Society – Blackwell, Oxford 1996; Pierre Lévy –
L’intelligence collective – Ed. La Découverte, Paris, 1994; Ignacy Sachs – Inclusão Social pelo Trabalho –
Ed. Garamond/Sebrae, Rio de Janeiro, 2003
46
econômica. O possível outro mundo vai exigir também uma outra ciência econômica, que
incorpore estas dimensões.93
11 - A economia do conhecimento
De certa forma, as mesmas tecnologias que favorecem a globalização podem favorecer os
espaços locais, as dimensões participativas, uma conectividade democrática. Para as
multinacionais, as novas tecnologias implicam numa pirâmide mais alta, com o poder
central de uma mega-corporação extendendo dedos mais compridos para os lugares mais
distantes, graças ao poder da conectividade de transmitir ordens mais longe. Implicam
também uma forte presença planetária de poder repressivo visando o controle da
propriedade intelectual crescentemente apropriada pelas próprias empresas
transnacionais.
Para nós, estas tecnologias permitem uma rede mais ampla e mais horizontal, com cada
localidade recuperando a sua importância ao cruzar a especificidade dos interesses locais
com o potencial da colaboração planetária. Dedos mais longos das mesmas corporações
não descentralizam nada, apenas significam que a mesma mão tem alcance maior, que a
manipulação se dá em maior escala. A apropriação local do potencial de conectividade
representa uma dinâmica de democratização.
A mudança nas tecnologias da informação e da comunicação que abre estas novas
opções, no entanto, está articulada com mudanças tecnológicas mais amplas, que estão
elevando o conteúdo de conhecimento de todos os processos produtivos, e reduzindo o
peso relativo dos insumos materiais que outrora constituiam o fator principal de
produção.
O conhecimento é um fator de produção? Como se desenvolve a teoria do que Castells
chamou de “novo paradigma sócio-técnico”? Castells introduz a categoria interessante de
fatores informativos de produção, que nos leva a uma questão básica: o conhecimento se
regula de maneira adequada através dos mecanismos de mercado, como por exemplo os
bens e serviços no quadro de uma economia industrial? 94
93 Um dossiê extremamente rico sobre as dimensões econômicas, políticas e culturais da construção de
alternativas pode ser encontrado em Pour Changer le Monde, número 83 (Oct.-Nov. 2005) de Manière de
Voir, publicação do Le Monde Diplomatique, que reune artigos essenciais sobre um tema escolhido, a cada
dois meses. Dois artigos em particular, de Claude Julien e de José Saramago, focam as relações entre a
economia e a política, e mostram a que ponto a nossa correria para fazer funcionar a política através de
mexidas na legislação eleitoral, sem enfrentar o grande poder econômico que tudo compra e absorve,
simpesmente não resolve. Na nossa visão resgatar o potencial econômico da gestão local não envolve
apenas eficiência de gestão, envolve também colocar uma parte maior da economia na escala onde as
pessoas têm sobre ela um controle maior, resgatando assim o controle sobre as suas próprias vidas. Uma
economia que passa a pertencer ao cidadão abre mais espaço para uma cidadania política real. 94 M. Castells – The rise of the network society, vol. I, p. 75 – Castells considera que este novo fator de
produção exige intervenção do Estado: “Deregulation and privatization may be elements of states’
development strategy, but their impact on economic growth will depend on the actual content of these
measures and on their linkage to strategies of positive intervention, such as technological and educational
policies to enhance the country’s endowment in informational production factors” (id., ibid., p. 90).
47
O deslocamento do eixo principal de formação do valor das mercadorias do capital fixo
para o conhecimento nos obriga a uma revisão em profundidade do próprio conceito de
modo de produção. André Gorz coloca o dedo no ponto preciso ao considerar que “os
meios de produção se tornaram apropriáveis e suscetíveis de serem partilhados. O
computador aparece como o instrumento universal, universalmente acessível, por meio
do qual todos os saberes e todas as atividades podem, em princípio, ser partilhados”.95
A economia do conhecimento está apenas nascendo. Lawrence Lessig nos traz uma
análise sistemática e equilibrada deste desafio maior que hoje enfrentamos: a gestão da
informação e do conhecimento. O livro de Lessig, focando de maneira precisa como se
desenvolve a conectividade planetária, leva cada questão – a da apropriação dos meios
físicos de transmissão, a do controle dos códigos de acesso, a do gerenciamento dos
conteúdos – a um nível que permite uma avaliação realista e propostas práticas. O livro
anterior dele, Code, já marcou época. O The Future of Ideas é simplesmente brilhante em
termos de riqueza de fontes, de simplicidade na exposição, de ordenamento dos
argumentos em torno das questões chave.96
Andamos todos um tanto fracos na compreensão destas novas dinâmicas, oscilando entre
visões tétricas do Grande Irmão, ou uma idílica visão da multiplicação das fontes e meios
que levariam a uma democratização geral do conhecimento. A realidade, como em tantas
questões, é que as simplificações não bastam, e que devemos fazer a lição de casa,
estudar o que está acontecendo.
Tomemos como ponto de partida o fato que hoje, quando pagamos um produto, 25% do
que pagamos é para pagar o produto, e 75% para pagar a pesquisa, o design, as
estratégias de marketing, a publicidade, os advogados, os contadores, as relações
públicas, os chamados “intangíveis”, e que Gorz chama de ‘o imaterial’. É uma cifra vaga
mas razoável, e não é a precisão que nos interessa aqui. Interessa-nos o fato do valor
agregado de um produto residir cada vez mais no conhecimento incorporado. Ou seja, o
conhecimento, a informação organizada, representam um fator de produção, um capital
econômico de primeira linha. A lógica econômica do conhecimento, no entanto, é
diferente da que rege a produção física. O produto físico entregue por uma pessoa deixa
de lhe pertencer, enquanto um conhecimento passado a outra pessoa continua com ela, e
pode estimular na outra pessoa visões que irão gerar mais conhecimentos e inovações.
Em termos sociais, portanto, a sociedade do conhecimento acomoda-se mal da
apropriação privada: envolve um produto que, quando socializado, se multiplica.
Portanto, o valor agregado ao produto pelo conhecimento incorporado só se transforma
em preço, e consequentemente em lucro maior, quando este conhecimento é impedido de
se difundir. A batalha do século XX, centrada na propriedade dos meios de produção,
evolui para a batalha da propriedade intelectual do século XXI.
95 André Gorz – O Imaterial: conhecimento, valor e capital – Ed. Annablume, São Paulo, 2005, p. 21. O
original francés, L’immatériel, foi publicado em 2003 96 The Future of Ideas: the Fate of the Commons in a Connected World – Random House, New York,
2001, 340 p.
48
De certa maneira, temos aqui uma grande tensão, de uma sociedade que evolui para o
conhecimento, mas regendo-se por leis da era industrial. O essencial aqui, é que o
conhecimento é indefinidamente reproduzível, e portanto só se transforma em valor
monetário quando apropriado por alguém, e quando quem dele se apropria coloca um
pedágio, “direitos”, para se ter acesso. Para os que tentam controlar o acesso ao
conhecimento, este só tem valor ao criar artificialmente, por meio de leis e repressão e
não por mecanismos econômicos, a escassez. Por simples natureza do processo, a
aplicação à era do conhecimento das leis da reprodução da era industrial trava o acesso.
Curiosamente, impedir a livre circulação de idéias e de criação artística tornou-se um
fator, por parte das corporações, de pedidos de maior intervenção do Estado. Os mesmos
interesses que levaram a corporação a globalizar o território para facilitar a circulação de
bens, levam-na a fragmentar e a dificultar a circulação do conhecimento.
A questão central de como produzimos, utilizamos e divulgamos o conhecimento envolve
portanto um dilema: por um lado, é justo que quem se esforçou para desenvolver
conhecimento novo seja remunerado pelo seu esforço. Por outro lado, apropriar-se de
uma idéia como se fosse um produto material termina por matar o esforço de inovação.
Lessig nos traz o exemplo de diretores de cinema nos Estados Unidos que hoje filmam
com advogados na equipe: filmar uma cena de rua onde aparece por acaso um outdoor
pode levar imediatamente a que a empresa de publicidade exija compensações; filmar o
quarto de um adolescente exige uma longa análise jurídica, pois cada flâmula, poster ou
quadro pode envolver uso indevido de imagem, gerando outras contestações. A
propriedade intelectual não tem limites?
Numa universidade americana, com a compra das revistas científicas por grandes grupos
econômicos, um professor que distribuiu aos seus alunos cópias do seu próprio artigo foi
considerado culpado de pirataria. Poderia quando muito exigir dos seus alunos que
comprem a revista onde está o seu artigo. Todos conhecem o absurdo patente concedido à
Amazon, proibindo outras empresas de utilizar o “one-click” para compras. Um
raciocínio de bom senso é que se o “one-click” é bom, deve ter dado lucro à Amazon, que
é a forma normal de uma empresa se ver retribuída por uma inovação, e não impedindo
outras de utilizar um processo que já era de domínio público. Estamos na realidade
travando a difusão do progresso, em vez de facilitá-la.
Lessig parte da visão – explícita na Constituição americana – de que o esforço de
desenvolvimento do conhecimento deve ser remunerado, mas o conhecimento em sí não
constitui uma “propriedade” no sentido comum. Por exemplo, numerosos copyrights são
propriedade de empresas que por alguma razão não têm interesse em utilizar ou
desenvolver o conhecimento correspondente, ficando assim uma área congelada. Em
outros países, prevalece o princípio de “use it or lose it”, de que uma pessoa ou empresa
não pode paralisar, através de patentes ou de copyrights, uma área de conhecimento. O
conhecimento tem uma função social. O meu carro não deixa de ser meu se eu o esqueço
na garagem. Mas idéias são diferentes, não devem ser trancadas, o seu desenvolvimento
por outros não deve ser impedido.
49
Na base desta visão está o fato de que o conhecimento não nasce isolado. Toda inovação
se apoia em milhares de avanços em outros períodos, em outros países, e com o crescente
encalacramento jurídico multiplicam-se as áreas ou os casos em que realizar uma
pesquisa envolve tantas complicações jurídicas que as pessoas simplesmente desistem, ou
a deixam para mega-empresas com seus imensos departamentos jurídicos. A inovação, o
trabalho criativo, não é só um “output”, é também um “input” que parte de inúmeros
esforços de pessoas e empresas diferentes. Precisa de um ambiente aberto de colaboração.
A inovação é um processo socialmente construido, e deve haver limites à sua apropriação
individual.
O problema se agrava drásticamente quando não só as idéias, como os veículos da sua
transmissão, passam a ser controlados. Quando uma produtora de Hollywood controla
não só a produção de conteúdos (o filme), mas também os diversos canais de distribuição
e até salas de cinema, o resultado é que a liberdade de circulação de idéias se desequilibra
radicalmente. Lessig constata que filmes estrangeiros nos Estados Unidos, que
representavam há poucos anos 10% da bilheteria, hoje representam 0,5%, gerando uma
cultura perigosamente isolada do mundo. O que está acontecendo, com o controle
progressivo dos três níveis – infraestrutura física, códigos e conteúdos – é que a liberdade
de circulação das idéias, inclusive na internet, está se restringindo rapidamente. Grandes
empresas não param de vasculhar os nossos computadores, através dos “spiders” ou
“bots”, para ver se por acaso não mencionamos sem as devidas autorizações o nome ou
um grupo de idéias protegidas.
Um texto de 1813 de Thomas Jefferson, citado no livro, é neste sentido muito eloquente:
“Se há uma coisa que a natureza fez que é menos suscetível que todas as outras de
propriedade exclusiva, esta coisa é a ação do poder de pensamento que chamamos de
idéia....Que as idéias devam se expandir livremente de uma pessoa para outra, por todo o
globo, para a instrução moral e mútua do homem, e o avanço de sua condição, parece ter
sido particularmente e benevolmente desenhado pela natureza, quando ela as tornou,
como o fogo, passíveis de expansão por todo o espaço, sem reduzir a sua densidade em
nenhum ponto, e como o ar no qual respiramos, nos movemos e existimos fisicamente,
incapazes de confinamento, ou de apropriação exclusiva. Invenções não podem, por
natureza, ser objeto de propriedade.”97
Uma empresa que instala uma das infraestruturas importantes que é o cabo é proprietária
deste cabo. Mas ela pode ditar quem pode ou quem não pode ter acesso para transmitir
neste cabo? Uma empresa pode encontrar incentivo econômico em fazer acordos com
outras empresas, garantindo exclusividade, um tipo de curral de comunicação. A Disney
batalhou duramente, por exemplo, para ter este tipo de exclusividade. A crueza das
batalhas empresariais neste plano abre pouco espaço para o fim último de todo o
97 Lessig, op. cit p. 94, citando T. Jefferson : “If nature has made any one thing less susceptible than all
others of exclusive property, it is the action of the thinking power called an idea…That ideas should freely
spread from one to another over the globe, for the moral and mutual instruction of man, and improvement
of his condition, seems to have been peculiarly and benevolently designed by nature, when she made them,
like fire, expansible over all space, without lessening their density at any point, and like the air in which we
breathe, move, and have our physical being, incapable of confinement, or exclusive appropriation.
Inventions then cannot, in nature, be a subject of property”. (p.94)
50
processo, tão bem expresso por Thomas Jefferson, que é a utilidade social da circulação
das idéias. Um governo pode até privatizar a manutenção de uma estrada, e autorizar
pedágio, mas assegura o seu caráter público, nenhuma administradora pode impedir o
livre acesso de qualquer pessoa a esta estrada. E na infovia, como funciona? Em muitas
cidades americanas, como Chicago, a prefeitura está instalando cabos públicos, para
assegurar que os usuários possam receber e transmitir o que querem, reduzindo a pressão
de empresas privadas para fazer acordos de acesso exclusivo para determinado tipo de
clientes. No Canadá, o processo está se generalizando, em reação aos controles que as
empresas estão instalando. Como as estradas, as infovias devem constituir os chamados
commons, espaços comuns que permitem que os espaços privados comuniquem,
interajam com liberdade.
A análise detalhada do uso do espectro de ondas de rádio e TV é neste sentido muito
significativa. Na prática, o governo americano concede faixas do espectro a gigantes da
comunicação, como o fazemos no Brasil, eliminando virtualmente a possibilidade de
cada comunidade ter os seus meios de comunicação, coisa hoje técnicamente
perfeitamente possível e barata. O que nos repetem sempre, é que o espectro é limitado, e
portanto deve ser atribuído a alguns, e estes alguns naturalmente monopolizam o acesso.
O primeiro fato é que a emissão de curto alcance (low power radio service) é
perfeitamente possível, e não deveria ser condenada como pirataria. O segundo, mais
importante, é que a idéia do espectro ser limitado é defendida pelas empresas, mas é
verdadeira apenas porque utilizam tecnologias que desperdiçam o espectro: como têm o
monopólio, não se interessam por exemplo pelo compartilhamento de faixas (software
defined radios) que permitem utilizar as ondas da mesma forma que em outros meios,
aproveitando os “silêncios” e subutilizações de espectro para assegurar diversas
comunicações simultâneas, como hoje acontece em qualquer linha telefônica. Lessig é
duro com esse impressionante desperdicio de uma riqueza tão importante – e natural, não
foi criada por ninguém, tanto assim que é concedida por licença pública – que é o
espectro eletromagnético: “Poluição é precisamente a maneira como deveríamos
considerar estas velhas formas de uso do espectro: torres grandes e estúpidas invadem o
éter com emissões poderosas, tornando inviável o florecimento de usos em menor escala,
menos barulhentos e mais eficientes…A televisão comercial, por exemplo, é um
desperdiçador exraordinário de espectro; na maior parte dos contextos, o ideal seria
transferi-la do ar para fios.”98
Lessig é um pragmático. No caso do espectro, por exemplo, propõe que se expanda em
cada segmento do espectro uma faixa de livre acesso, equilibrando a apropriação privada.
Nas várias áreas analisadas, busca soluções que permitam a todos sobreviver. Mas a sua
preocupação é clara. Em livre tradução, “a tecnologia, com estas leis, nos promete agora
um controle quase perfeito sobre o conteúdo e a sua distribuição. E é este controle
perfeito que ameaça o potencial de inovação que a Internet promete”.99
98 Lessig, op. cit., p. p. 243 99 Idem p. 249
51
Rifkin analisa o mesmo processo de outro ponto de vista, pondo em evidência em
particular o fato da economia do conhecimento mudar a nossa relação com o processo
econômico em geral. O argumento básico é que estamos passando de uma era em que
havia produtores e compradores, para uma era em que há fornecedores e usuários. A
mudança é profunda. Na prática, não compramos mais um telefone (ou a compra é
simbólica). Mas pagamos todo mês pelo direito de usá-lo, de nos comunicarmos.
Pagamos também para ter acesso a programas de televisão um pouco mais decentes. Já
não pagamos uma consulta médica: pagamos mensalmente um plano para ter direito de
acesso a serviços de saúde. A nossa impressora custa uma bagatela, o importante é nos
prender na compra regular do “toner” exclusivo. 100
Os exemplos são inúmeros. Rifkin define esta tendência como caracterizando "a era do
acesso". No nosso "A Reprodução Social" já analisamos esta tendência, que
caracterizamos com o conceito de "capitalismo de pedágio". Basta ver o montante de
tarifas que pagamos para ter direito aos serviços de um banco, ou como os condomínios
de praia fecham o acesso a um pedaço de mar, e nas publicidades nos "oferecem", como
se as tivessem criado, as suas maravilhosas ondas. O acesso gratuito ao mar não enche os
bolsos de ninguém. Fechemos pois as praias.
Assim o capitalismo gera escassez, pois a escassez eleva os preços. Nesta lógica do
absurdo, quanto menos disponíveis os bens, mais ficam caros, e mais adquirem valor
potencial para quem os controla. Nada como poluir os rios para nos obrigar a um
"pesque-pague", ou a nos induzir a comprar água “produzida”.
Com isto, vão desaparecendo todos os espaços gratuitos, e ficamos cada vez mais presos
na corrida pelo aumento da nossa renda mensal, sem a qual nos veremos privados de uma
série de serviços essenciais, inclusive a participação na cultura que nos cerca. Viver deixa
de ser um passeio, ou uma construção que nos pertence, para se transformar numa
permanente corrida de pedágio em pedágio. Onde antes as pessoas tinham o prazer de
tocar um instrumento, hoje pagam o direito de acessar a música. Onde antes jogavam
uma pelada na rua, hoje assistem um espetáculo esportivo, enquanto mastigam
salgadinhos no sofá, tudo graças ao "pay-per-view".
O deslocamento teórico é significativo. O proprietário de meios de produção tinha a
chave da fábrica, bem físico que constituia uma propriedade concreta: hoje é dono de um
processo, e cobra pela sua utilização. E como os processos tornam-se cada vez mais
densos em informação e conhecimento, assume maior importância a propriedade
intelectual, a patente, o copyright. Como o conhecimento constitui um bem que não deixa
100 Jeremy Rifkin – The Age of Access – Penguin Books, New York, 2001; publicado no Brasil como A Era
do Acesso, Makron Books, 2001 – Esta necessidade de pagar pedágio sobre tudo o que fazemos pode ser
opressiva. Muitos investem as suas poupanças na casa própria, na segurança de um teto que não dependerá
da capacidade oscilante de pagar o aluguel. Hoje, tudo passa a depender de inúmeros “aluguéis”, e não
vemos no horizonte a perspectiva de vivermos mais tranquilos. Uma pessoa que por alguma razão perde a
sua fonte de renda, se vê assim rigorosamente excluída de um conjunto de serviços que exigem
regularidade de pagamento. A situação particularmente dramática dos aposentados de baixa renda tem hoje
também de ser vista nesta perspectiva, mas na realidade estamos todos nos sentindo cada vez mais acuados.
.52
de pertencer a alguém quando o passa a outros, – e estamos na era da tecnologia da
conectividade – a sua facilidade de disseminação torna-se imensa, e a apropriação
privada gera entraves. Vemos assim todo o peso da constatação de Gorz vista acima, de
que “os meios de produção se tornaram apropriáveis e suscetíveis de serem partilhados”.
Não é à toa que a negociação TRIPs (Trade Related Intellectual Property) constitui o
principal debate na Organização Mundial do Comércio, e está no centro das lutas por
uma sociedade livre.
“A inovação, escreve Stiglitz, está no coração do sucesso de uma economia moderna. A
questão é de como melhor promovê-la. O mundo desenvolvido arquitetou
cuidadosamente leis que dão aos inovadores um direito exclusivo às suas inovações e aos
lucros que delas fluem. Mas a que prêço? Há uma sentimento crescente de que algo está
errado com o sistema que governa a propriedade intelectual. O receio é que o foco nos
lucros para as corporações ricas represente uma sentença de morte para os muito pobres
no mundo em desenvolvimento.”101
Por exemplo, explica Stiglitz, “isto é particularmente verdadeiro quando patentes tomam
o que era previamente de domínio público e o ‘privatizam” – o que os juristas da
Propriedade Intenectual têm chamado de novo “enclosure movement”. Patentes sobre o
arroz Basmati (que os indianos pensavam conhecer havia centenas de anos), ou sobre as
propriedades curativas do turmeric (gengibre) constituem bons exemplos”.
Segundo o autor, “os países em desenvolvimento são mais pobres não só porque têm
menos recursos, mas porque há um hiato em conhecimento. Por isto o acesso ao
conhecimento é tão importante. Mas ao reforçar o controle (stranglehold) sobre a
propriedade intelectual, as regras de PI (chamadas TRIPS), do acordo de Uruguay
reduziram o acesso ao conhecimento por parte dos países em desenvolvimento. O TRIPS
impôs um sistema que não foi desenhado de maneira ótima para um país industrial
avançado, mas o foi ainda menos adequado para um país pobre. Eu era membro do
Conselho Econômico do presidente Clinton na época em que a negociação do Uruguay
Round se completava. Nós e o Office of Science and Technology Policy nos opunhamos
ao TRIPS. Achávamos que era ruim para a ciência americana, ruim para o mundo da
ciência, ruim para os países em desenvolvimento”.
É uma tomada de posição importante, nesta época em que é bom tom respeitar a
propriedade intelectual, sem que as pessoas se dêm conta que estamos essencialmente
respeitando a sua monopolização e controle por intermediários. Precisamos de regras
mais flexíveis e mais inteligentes, e sobretudo reduzir os prazos absurdos de décadas que
extrapolam radicalmente o tempo necessário para uma empresa recuperar os seus
investimentos sobre novas tecnologias. Quanto a patentear bens naturais de países pobres
para em seguir cobrar royalties sobre produções tradicionais, já é simplesmente pirataria.
E os piratas, neste caso, são os de cima.
Assim a economia do conhecimento desenha uma nova divisão internacional do trabalho,
entre os países que se concentram nos intangíveis – pesquisa e desenvolvimento, design,
101 Joseph Stiglitz - A Better Way to Crack it – New Scientist, 16 September 2006, p.
53
advocacia, contabilidade, publicidade, sistemas de controle – e os que continuam com
tarefas centradas na produção física. Onde antigamente tínhamos a produção de matérias
primas num polo, e produtos industriais no outro, hoje passamos a ter uma divisão mais
fortemente centrada na divisão entre produção material e produção imaterial.
Uma leitura particularmente interessante sobre este tema é o livro de Chang, Chutando a
Escada, que mostra como os países hoje desenvolvidos se apropriaram dos
conhecimentos gerados em qualquer parte do mundo, por meio de cópia, roubo ou
espionagem, sem se preocuparem na época com a propriedade intelectual. Utilizaram a
escada para subir, e agora a chutaram para o lado, impedindo outros de seguirem o seu
caminho. O que seria do Japão, ou da Coréia, se tivessem sido obrigados a fechar os
olhos sobre as inovações no resto do mundo, ou a pagar todos os royalties? O livro de
Chang é extremamente bem documentado, e mostra como antes dos asiáticos os Estados
Unidos já adotaram as mesmas práticas, bem como a Inglaterra. O livre acesso dos paises
pobres ao conhecimento, condição essencial do seu progresso e do reequilibramento
planetário, é hoje sistematicamente travado, quando deveria ser favorecido e
subvencionado, para reduzir as tragédias sociais e ambientais que se avolumam.102
Em outro nível, a mudança no conteúdo da produção gera novas relações de produção, e
desloca a questão da remuneração do trabalho. Medir o trabalho por horas trabalhadas
torna-se, nesta esfera de atividades, cada vez menos significativo. A contribuição criativa
com idéias inovadoras não vai depender do tempo que passamos sentados no escritório.
Gorz cita um relatório do diretor de recursos humanos da Daimler-Chrysler: a
contribuição dos “colaboradores”, como os chama gentilmente o diretor, “não será
calculada pelo número de horas de presença, mas sobre a base dos objetivos atingidos e
da qualidade dos resultados. Eles são empreendedores”.103 Os trabalhadores são assim
promovidos a empreendedores, e porque não, segundo Gorz, a empresários: “No lugar
daquele que depende do salário, deve estar o empresário da força de trabalho, que
providencia sua própria formação, aperfeiçoamento, plano de saúde etc. ‘A pessoa é uma
empresa’. No lugar da exploração entram a auto-exploração e a autocomercialização do
‘Eu S/A’, que rendem lucros às grandes empresas, que são os clientes do auto-empresário”.104
O que estamos tentando desenhar aqui, não é um conjunto de respostas, mas o leque de
questões teóricas que nos desafia como economistas, e que resulta diretamente desta
ampla tendência que chamamos de economia do conhecimento. O eixo de apropriação de
mais-valia desloca-se do controle da fábrica para o controle da propriedade intelectual,
mudam as relações de produção, altera-se o conteúdo e a remuneração nas trocas
internacionais. São eixos de reflexão que exigem novos instrumentos de análise, e os
autores citados acima estão abrindo espaços que vale a pena acompanhar.
102 - Ha-Joon Chang – Kicking Aaway the Ladder:Development Strategy in Historical Perspective, Anthem
Press, London, 2002; no Brasil, edição da Unesp, 2003 103 A. Gorz, O Imaterial, op. cit. p. 17 104 A. Gorz, op. cit., p. 10
54
O Brasil neste plano enfrenta uma situação peculiar, pois ao internalizar a relação Norte-Sul,
através da instalação do amplo polo transnacional na região Sudeste do país, enfrenta
tanto as contradições mais avançadas geradas pela economia do conhecimento, como a
precarização que o sistema gera através de terceirização, além das relações de produção
extremamente atrasadas que constituem heranças de outros ciclos econômicos.
O desafio da democratização da economia adquire aqui uma dimensão interessante, pois
o acesso ao conhecimento, como novo fator de produção, pode tornar-se um vetor
privilegiado de inclusão produtiva da massa de excluídos. Como vimos, uma vez
produzido, o conhecimento pode ser divulgado e multiplicado com custos extremamente
limitados. Contrariamente ao caso dos bens físicos, quem repassa o conhecimento não o
perde. O direito de acesso ao conhecimento torna-se assim um eixo central da
democratização econômica das nossas sociedades.105
12 - A economia das áreas sociais
Um outro eixo que está deslocando as nossas visões da teoria econômica, é a mudança
profunda na composição intersetorial dos processos produtivos. Em termos resumidos, e
se tomarmos o exemplo norte-americano, a agricultura passou a ocupar menos de 3% da
mão de obra, e a indústria manufatureira passou em 2005 a ocupar menos de 10%.106
A grande massa das nossas ocupações ganhou o nome de “serviços”, como se a etiqueta
fossa auto-explicativa. Castells se indigna com justa razão: “Sob o termo serviços foram
amontoadas atividades miscelâneas com pouco em comum exceto o fato de serem
diferentes da agricultura, das indústrias extrativas, dos serviços industriais, da construção
e da manufatura. Esta categoria de “serviços” é uma noção residual, negativa, e gera
confusão analítica”.107 Adotando a metodologia de Joachim Singlemann, o autor propõe
uma distinção de serviços de apoio à produção (informática, finanças...), serviços
distributivos (transporte, comunicações e comercialização), serviços sociais (saúde,
105 Isto pode tomar dimensões eminentemente práticas. O Fundo de Universalização das Telecomunicações,
por exemplo, poderia assegurar a generalização do acesso banda-larga a toda a população, na linha de um
“Brasil Digital”. 106 “Pela primeira vez desde a revolução industrial, menos de 10% dos trabalhadores americanos estão hoje
empregados na manufatura. E já que talvez a metade dos trabalhadores numa empresa típica de manufatura
está empregada em tarefas típicas de serviços, tais como design, distribuição e planejamento financeiro, a
parte real dos trabalhadores que fazem coisas que você pode deixar cair no seu dedão poderia ser de apenas
5%. É causa de preocupação? A nossa cifra de 10% foi obtida dividindo o número de empregos de
manufatura, por uma estimativa da força de trabalho total (inclusive os auto-empregados, empregados em
tempo parcial e forças armadas) de 147 milhões. Em 1970, cerca de 25% dos trabalhadores americanos
estavam na manufatura…A maior parte das pessoas hoje trabalha em serviços: na América, algo como
80%” - The Economist, October 1 st 2005, p. 69 É interessante lembrar que Manuel Castells, no seu The
Rise of the Network Society, projetava em 1995 que o emprego industrial nos Estados Unidos baixaria até
14% em 2005. A realidade, como sempre, vai mais rápido do que imaginamos. (página 223 do vol. I,
Blackwell, Oxford 1996). 107 “Under the term services are dumped together miscelaneous activities with little in common except
being other than agriculture, extractive industries, utilities, construction, and manufacturing. The “services”
category is a residual, negative notion, inducing analytical confusion”. – Castells, op. cit. p. 77
55
educação etc.) e serviços pessoais (restaurantes, hotelaria, domésticos...), e sugere que
com a complexidade maior da economia se abandone o velho paradigma de Colin Clark
que dividia os setores em primário, secundário e terciário. Segundo Castells, “esta
distinção se tornou um obstáculo epistemológico à compreensão das nossas
sociedades”.108
A realidade é que quanto mais avança o conteúdo de conhecimento das diversas
atividades, mais precária fica a classificação tradicional. Mas o que nos interessa
particularmente aqui é a confusão gerada pelo conceito excessivamente geral de serviços,
e que encobriu um fenômeno importante, que é o da crescente presença, nas atividades
econômicas em geral, dos serviços sociais. Mencionamos rapidamente acima este
conjunto de atividades. Não se trata aqui de aprofundar a sua análise, mas de atentar para
algumas características que impactam as relações de produção do setor, e
consequentemente a sua conceituação econômica.109
Lembremos antes de tudo que esta área de atividades é a que mais se expande. Conforme
vimos acima, a saúde nos Estados Unidos (somando a pública e a privada) representa
hoje o maior setor econômico do país, com 15% do PIB e crescendo, quando a produção
industrial representa 14% e está diminuindo. Castells se refere ao “dramático aumento
dos empregos de cuidados de saúde e, em menor escala, dos empregos na educação”. 110
Se somarmos saúde, educação, cultura, segurança local e semelhantes, teremos algo
como 40% do emprego. Há variações fortes segundo os países, e pode-se discutir as
classificações, mas o fato é que temos um gigante crescendo, e gerando novas relações de
produção.
As atividades sociais são capilares – a saúde tem de chegar a cada pessoa, a educação a
cada criança, sob forma de prestações personalizadas, o que envolve relações de
produção diferentes das que caracterizam uma fábrica, com máquinas e operários gerando
por exemplo sapatos enviados a supermercados distantes. Não se estoca saúde em
prateleiras. A qualidade da educação não depende apenas da escola, depende do clima
cultural gerado no país, entre outros pelos programas de televisão. As formas de
organização social geradas por este tipo de atividades são diferentes do que as que
surgiram com a produção fabril. E as atividades sociais são atividades fins. Uma vida
com saúde, educação, cultura, segurança – e o tempo para desfrutá-los – é o que
queremos da vida.
Não há dúvida que há uma forma capitalista de se prestar serviços sociais. O resultado,
no entanto, é que no lugar da saúde surgiu a indústria da doença, no caso da educação a
indústria do diploma, no caso da cultura a indústria do entretenimento e assim por diante.
Em termos teóricos, se há razoável aproximação entre o objetivo do lucro, por exemplo
108 Castells, op. cit. p. 206; Anita Kon apresenta as diversas tentativas de classificação dos serviços no seu
Economia de Serviços, Ed. Campus, Rio de Janeiro, 2005, páginas 28 e seguintes; a classificação que mais
nos convence é a de Singlemann, e uma tabela-resumo pode ser encontrada na p. 312 da obra de Castells. 109 Abordamos de forma sistemática este setor de atividades no vol. II do nosso A Reprodução Social, e no
artigo Gestão social e transformação da sociedade, http://dowbor.org sob Artigos Online 110 Castells, op. cit. p. 229;
56
do padeiro de Adam Smith, e a satisfação social, no caso das políticas sociais os dois
objetivos raramente coincidem.
Os resultados são geralmente desastrosos. O presidente Ricardo Lagos, do Chile, abriu o
Congresso Internacional do Centro Latinoamericano de Administração para o
Desenvolvimento (CLAD) de 2005, lamentando a ruptura que se fez entre serviços
sociais privatizados e luxuosos para minorias, e serviços sociais públicos e subequipados
para a grande massa da população. Trata-se de áreas que, para funcionar de maneira
adequada, precisam ser públicas, descentralizadas, e com controle participativo das
comunidades. São áreas de consumo coletivo, e é o nível geral de cultura científica de um
país que permite o progresso do conjunto. Pouco adianta os ricos disporem de medicina
curativa de luxo se não há sistemas sociais generalizados de vacinação, de prevenção das
doenças. Os micróbios não dão importância ao tamanho da conta bancária, e tampouco os
mosquitos.
Em termos de produtividade do uso dos recursos, há pouca dúvida quanto ao desperdício
generalizado que provoca a privatização. Há uma correlação interessante a se fazer neste
plano. A Noruega gasta com saúde 9,6% do PIB, sendo 8,0% no setor público e 1,6% no
setor privado; o Canadá gasta também 9,6% com saúde, sendo 6,7% no setor público e
2,9% no setor privado; as cifras para os Estados Unidos são rspectivamente 14,6%, 6,6%
e 8,0%. A Noruega está em primeiro lugar no IDH, o Canadá em quinto, os Estados
Unidos em décimo. Na componente saúde do IDH, os Estados Unidos estão em 33º lugar.
Os gastos em saúde nos Estados Unidos em 2002 foram de 5.274 dólares por pessoa, no
Canadá foram de 2.931. 111
Na realidade esta área depende intensamente de formas colaborativas de organização
social. Quando um país africano deixou de vacinar as crianças contra poliomelite, uma
doença quase totalmente controlada voltou a se espalhar. A educação depende de um
ambiente rico e denso em informações em todo o território, com bibliotecas, teatros, uma
televisão inteligente, vida cultural intensa. A própria cultura transformada em indústria
do entretenimento gera espectadores passivos e desinformados. A segurança
transformada em indústria de armas não leva a lugar algum: os Etados Unidos têm 2,5
milhões de pessoas vivendo nas cadeias, todo mundo tem armas, e a criminalidade é alta.
O eixo de raciocínio que desponta, é que aplicar às áreas sociais relações de produção
típicas da era industrial, simplesmente leva a desperdícios, desigualdade e violência. Esta
é uma área que exige gestão pública, descentralizada e participativa. As instituições
privadas que funcionam, são fundações sem fins lucrativos, como por exemplo as grandes
universidades americans. As privadas com fins lucrativos, como a Phoenix, resultam em
muitos diplomas e pouca ciência. É interessante contrapor às universidades cotadas em
111 UNDP – Human Development Report 2005 – páginas 219 e 236, tabela I referente ao IDH em geral e
tabela 6 referente às políticas de saúde. Na página 58 há um encarte interessante sobre a saúde nos Estados
Unidos, em que se constata que os Estados unidos lideram o mundo em gastos com saúde, mas que desde
2000 a tendência para a queda da mortalidade infantil foi revertida (“infant death rates first slowed and then
reversed”). Dos Americanos não-idosos, 45 milhões não têm seguro de saúde. Segundo o Relatório, os que
não têm seguro não têm acompanhamento regular, e apresentam maiores chances de serem hospitalizados,
gerando problemas de saúde e gastos muito superiores do que se tivessem cobertura.
57
bolsa, ou aos planos de saúde controlados por financeiras, a Pastoral da Criança, que hoje
atua em mais de 3500 municípios do país, é responsável por 50% de queda de
mortalidade infantil onde atúa, e por 80% de redução de hospitalizações. O custo mensal
por criança é de 1,37 real. Não há plano de saúde – e aliás empresa privada em geral –
que consiga este tipo de resultados de custo-benefício. Assim o empreendimento mais
competitivo do país não está baseado na competição, mas num sistema de colaboração
em rede.
O exercício teórico que se impõe é a análise sistemática dos setores que compõem a área
social, partindo das relações técnicas de produção, e reconstruindo a partir delas as
relações sociais. Da mesma forma como Marx analisava no século XIX o que as relações
técnicas da produção industrial implicavam em termos de relações sociais de produção,
vale a pena hoje pensar que tipo de organização da sociedade está sendo construído pelas
políticas sociais. Como economistas, estamos longe de responder ao desafio. No Brasil,
em particular, fez-se (com honrosas exceções) uma ruptura epistemológica entre
economistas por um lado, pessoas sérias que tratam de juros, câmbio, inflação e
semelhantes, e as pessoas de coração mole que tratam do “social” por outro. Os grandes
bancos, que travam o desenvolvimento e oneram todas as nossas atividades, cobrando
pedágios absurdos sobre o acesso ao nosso próprio dinheiro, são apresentados como
fatores de crescimento, enquanto as áreas sociais, que respondem diretamente ao que
queremos da vida – saúde, segurança, cultura etc. – são apresentadas como “custos”. É
um mundo de cabeça para baixo.112
O essencial para nós aqui, é que os mecanismos que regem as áreas sociais continuam à
margem do mainstream das análises econômicas, como co-adjuvantes do processo,
quando se trata de uma área que tipicamente ocupa o dobro ou o triplo do que ocupam as
atividades que produzem bens fisicamente mensuráveis. Onde funcionam, os serviços
sociais, pela sua capilaridade e caráter de consumo coletivo, geraram estruturas
descentralizadas e intensamente participativas, e constituem portanto um poderoso
organizador social, enriquecendo com democracia econômica e social as nossas formas
de organização da sociedade. A ausência de análises sobre os sobre-custos gerados pela
privatização das áreas sociais tirou do horizonte do debate econômico um dos principais
fatores de sermos um país de altos custos, e de baixa produtividade sistêmica.
13 - A economia do tempo
O tempo é o nosso principal recurso não renovável. O seu deperdício, por nós mesmos ou
por terceiros, é monumental. Todos sabemos que time is money, mas poucos pensam no
que estão comparando. O tempo é o tempo da nossa vida. Dinheiro perdido pode ser
recuperado. Já a vida...
Keynes tinha uma visão muito simpática do amor pelo dinheiro: “O amor do dinheiro
como posse – distintamente do amor do dinheiro como meio de obter os prazeres e
112 No livro A Economia Social no Brasil, editado em 2003 pela Editora Senac, tentamos, com Samuel
Kilsztajn e a colaboração de uma série de autores, abrir mais canais entre o econômico e o social,
absurdamente divorciados. Na própria área empresarial a compreensão desta necessidade está se tornando mais clara.
58
realidades da vida – será reconhecido pelo que é, uma morbidez um pouco repugnante,
uma destas propensões semi-criminais, semi-patológicas que entregamos com um tremor
aos especialistas em doenças mentais”.113
Não que desconheçamos o valor econômico do tempo. O empresário calcula
rigorosamente os tempos dos seus empregados, porque o tempo dos seus empregados é o
seu dinheiro. Kuttner relata a visita que fez a um centro de tele-marketing, onde as moças
têm direito a apenas dois segundos entre uma chamada e outra: passados os dois
segundos, começam os descontos. O documentário The Corporation mostra empresas
onde são registrados até centésimos de segundo das operações de costureiras para as
grandes marcas.
O desperdício do nosso tempo constitui provavelmente uma das externalidades mais
poderosas do capitalismo. Quando um banco reduz o número dos atendentes, e ficamos
na fila, está reduzindo o tempo de trabalho oferecido, que para ele representa um custo, e
aumentando o tempo perdido pelos clientes, que não lhe custa nada. Basta se assegurar
que os outros bancos se comportam de maneira semelhante, para não criar má fama. A
empresa de ônibus prefere ter o ônibus bem cheio, melhorando o seu rendimento
passageiro/quilômetro, ainda que isto signifique tempo perdido para o usuário que espera
a condução no ponto. Quando chamamos um serviço de telefonia, e passamos uma
eternidade ouvindo como a nossa ligação é importante para um misterioso “nós”, não há
dúvida que o nosso tempo de espera é um custo para nós mesmos, mas não para o “nós”.
Quando esperamos em casa a visita de um técnico ou uma entrega, fomos informados que
devemos estar em casa no horário comercial, a qualquer momento do dia. Naturalmente,
como não temos nada para fazer, ficamos esperando, porque precisamos do serviço. A
empresa não indica um horário concreto porque para ela é útil ter mais flexibilidade.
Basicamente, considera-se que o tempo de uma empresa é valioso, mas que o tempo do
consumidor é inútil.
Ter tempo para fazer as coisas que nos agradam constitui provavelmente o objetivo maior
de como nos organizamos como sociedade. Ou seja, precisamos evoluir da economia do
tempo como preocupação microeconômica, onde a empresa calcula os nossos segundos,
para uma preocupação macro, avaliando a eficiência da nossa organização social em
função da ampliação da possibilidade de escolha de como empregamos o nosso tempo.
A visão se conecta de maneira bastante evidente com os trabalhos de Amartya Sen,
envolvendo a compreensão de que pobreza não é necessariamente a privação do direito a
determinados produtos, mas também uma perda do direito às opções. E a opção de como
utilizamos o nosso escasso tempo de vida é essencial.
113 John Maynard Keynes – Economic Possibilites for our Grandchildren – (1930), in Essays in Persuasion,
W.W. Norton, New York, London, 1963, p. 358 e ss. No original, “The love of money as a possession – as
distinguished from the love of money as a means to the enjoyments and realities of life – will be recognised
for what it is, a somewhat disgusting morbidity, one of those semi-criminal, semi-pathological propensities
which one hands over with a shudder to the specialists in mental disease”. (p. 369).
59
Em trabalho desenvolvido por Marcelo Traldi, um questionário sobre o uso do tempo por
famílias de classe média levou a coisas interessantes, como o fato de um técnico
classificar como horas de lazer o tempo em que, confortavelmente sentado na sua casa,
lia um bom livro técnico. A mesma atividade no escritório seria classificada como
trabalho, ou até como sacrifício.114
Herdamos da tradição judeo-cristã a imensa carga da virtude do sacrifício. Quanto mais
sacrificada a nossa vida, mais somos merecedores de algum tipo de recompensa, nesta
vida ou na próxima. Na realidade, fazer uma coisa bem feita, utilizar a nossa capacidade
de inventar, nunca foi sacrifício. O Business Week se surpreeende, em matéria de capa
sobre o Linux, da quantidade de gente que contribui para a construção e aprimoramento
do software livre, pelo simples prazer de criar uma coisa melhor, e de ser útil.
Inversamente, uma pessoa desempregada pode sem dúvida sentir desespero por sua
dificuldade de sustentar a família. Mas também se sente desesperada – e isto é
particularmente verdadeiro do jovem – por não contribuir, não participar, não fazer parte
de um processo social.
A economia do tempo não existe como disciplina, e no entanto é essencial. E repousa
sobre uma premissa básica: o tempo como categoria econômica não se limita ao tempo da
atividade produtiva remunerada. O uso inteligente do nosso tempo, nos seus diversos
componentes, da dormida que reconstitui as nossas forças, da diversão que resgata os
nossos equilíbrios internos, do cuidado com os nossos filhos, da flor plantada no jardim,
da conversa com os amigos, do sentimento de fazer algo útil num ambiente de trabalho
que nos respeita, é o que compõe o objetivo final, a qualidade de vida.
Voltemos ao texto de Keynes. Avaliando em 1930 o que deveria ser a vida dos seus
netos, imagina que teríamos a inteligência de aproveitar as tecnologias e os avanços de
produtividade para trabalhar menos: “Turnos de três horas, ou uma semana de 15 horas
poderão resolver o problema durante um bom tempo. Pois três horas por dia são o
bastante para satisfazer o velho Adão dentro de nós”. Naturalmente, houve avanços
tecnológicos que ele não poderia prever, e que sobrepassaram o que ele poderia imaginar.
E no entanto, estamos nos matando de trabalhar. 115
Há uma dimensão surrealista nesta irracionalidade que envolve a má distribuição dos
esforços. Uma parte da sociedade está desesperada por excesso de trabalho, e outra por
não ter acesso ao emprego. Um mínimo de bom senso na distribuição de esforços
constitui, neste sentido, um dos objetivos centrais da gestão social. Em termos de
regulação da economia do tempo, chega-se à conclusão de que o mercado constitui um
mecanismo estruturalmente insuficiente de alocação des recursos do trabalho, exigindo
soluções sistêmicas articuladas. Não há nada de novo nesta constatação. Mas na visão que
114 Marcelo Traldi Fonseca – Para onde vai o nosso tempo? Estudo exploratório sobre a utilização do
tempo livre – Dissertação de Mestrado em Administração, PUC-SP, 2004; ver http://dowbor.org sob
“Pesquisas Conexas”. 115 Keynes, op. cit. – “Three-hour shifts or a fifteen-hour week may put off the problem for a great while.
For three hours a day is quite enough to satisfy the old Adam in most of us!” – O velho Adão,
naturalmente, é o que ganha o pão com o suor do seu rosto.
60
aqui sugerimos, ao darmos um valor econômico ao tempo social, o desemprego deixará
de ser visto apenas como situação de desespero lamentável, retrita aos pobres diabos que
não conseguiram diplomas e “empregabilidade”, mas um custo para a sociedade: o valor
do tempo desperdiçado pode ser muito maior do que o custo de medidas de organização
que assegurem um trabalho útil. 116
Outra dimensão envolve a irracionalidade da acumulação de riquezas. Se olharmos o
tempo como categoria econômica, e portanto o desperdício do tempo social como custo,
deveremos pensar por exemplo em como se dá a solução do nosso transporte.
Trabalhamos muito para ganhar dinheiro para comprar um carro. Na cidade de São Paulo,
por carência dramática de transporte coletivo, cada um busca ter o seu carro. O resultado
prático, como vimos acima, é que andamos numa velocidade média de 14 quilômetros
por hora. Pagamos o carro, e ficamos presos aos gastos recorrentes em gasolina, seguro,
consertos, estacionamento, hospitais, sem falar das multas, e eventualmente do analista e
dos tranquilizantes que ele nos recomenda.
Ao confundirmos os meios e os fins, confundimos o uso do nosso tempo com uma
felicidade sempre adiada. O objetivo maior, o “valor” que perseguimos, é a qualidade de
vida para o maior número, inclusive os nossos filhos e netos. Esta qualidade de vida
envolve, por exemplo, poder nadar numa piscina, ou descansar um fim de semana numa
chácara e assim por diante. Mas precisamos realmente ser proprietários exclusivos destas
infraestruturas? A realidade é que passamos longos anos trabalhando para pagá-las, e
sempre subestimamos os gastos recorrentes que resultam, sob forma de manutenção,
impostos e outros. Se calcularmos o tempo de trabalho destinado a adquiri-las, o tempo
de trabalho gasto para mantê-las, e o pouco que as utilizamos, - porque justamente não
temos tempo – veremos que é muito mais prático nos apoiarmos em soluções sociais.
Toronto, por exemplo, tem numerosas piscinas públicas, além das instalações esportivas
escolares serem abertas ao público em geral. O cidadão não precisa lembrar qual o nível
de ph da água, se o cloro foi comprado, se o homem da manutenção da piscina foi pago –
apenas pega o seu calção, a bicicleta, e vai para a piscina, onde poderá encontrar amigos,
onde as suas crianças podem nadar à vontade pois há um serviço municipal de proteção e
assim por diante.
Ao diluirmos os custos de infraestruturas de lazer entre todos os cidadãos, tornam-se
muito baixos. Mas sobretudo, não precisaremos perder constantemente o nosso dinheiro e
o nosso tempo para organizar o uso agradável do nosso tempo. Não se trata de desprezar
o consumo, mas de fazê-lo de maneira inteligente. Com a incorporação do tempo social
como elemento econômico, a lógica do investimento social muda. Quando
acompanhamos a trajetória de vida de um casal médio, e de classe média, é
impressionante como há uma fase de se matar de trabalho para adquirar todas estas
coisas, e depois uma luta para se livrar destas mesmas coisas, para recuperar o direito ao
dinheiro e ao tempo perdidos no caminho.
116 O clássico sobre o tema é o livro de Guy Aznar, Trabalhar menos para trabalharem todos - prefácio de
André Gorz. Keynes já se insurgia contra “a enorme anomalia do desemprego num mundo cheio de
necessidades”.
61
Como avaliar o valor do tempo social? Nada como ir pelo caminho mais simples. Tirando
o tempo de uso própriamente individual – como o tempo de sono, de convívio familiar
em casa e coisas do gênero, digamos que o tempo social diretamente ligado a ganhar a
vida, seja de 12 horas por dia. Isto inclui o trabalho, os deslocamentos, as compras,
enfim, as tarefas da vida necessárias para ganharmos a vida. Isso nos levaria a 60 horas
por semana, ou que multiplicado por 48 semanas (tirando 4 de férias) daria 2880 horas
“comerciais” por ano. Se usarmos o nosso PIB como referência, de 700 bilhões de
dólares, para uma população de 180 milhões, teremos um PIB per capita de 3.900
dólares. Este PIB per capita dividido pelas 2880 horas nos dá 1,35 dólares por hora, o que
seria o valor, digamos, da nossa hora “ativa”. Podemos afinar este cálculo de diversas
formas, mas o essencial é tomarmos consciência que o nosso tempo não é gratuito, e
quando alguém o desperdiça, este desperdício tem de ser levado em conta.117
As implicações disto podem ser muito práticas. Ao calcular os custos de um quilômetro
de metrô, um candidato a prefeito de São Paulo concluiu que é muito caro, algo como
100 milhões dólares o quilômetro. Digamos que uma rede ampla de metrô economizasse
meia hora do tempo médio de deslocamento do paulistano economicamente ativo, cerca
de 5 milhões de pessoas. Seriam 2,5 milhões de horas economizadas por dia, o que
multiplicado por 1,35 dólares significaria uma economia da ordem de 3,4 milhões por
dia. Isto por sua vez implica que cada 30 dias pagariam um quilómetro deste meio de
transporte.118
Temos aqui uma explosão de estudos, à medida em que a idiotice de desperdiçarmos o
principal recurso não renovável da nossa vida se torna mais patente. Robert Putnam
lamenta que “uma das inevitáveis consequências de como chegamos a organizar as
nossas vidas em termos espaciais é que gastamos cada dia mais tempo nos deslocando em
caixas de metal entre os vértices dos nossos triângulos privados. Os americanos adultos
passam uma média de setenta e dois minutos por dia no volante, segundo o a Pesquisa do
Departamento de Transporte Pessoal. Isto representa, de acordo aos estudos do uso diário
do tempo, mais do que gastamos para cozinhar ou comer, e mais do dobro do que os pais
gastam em média com as crianças. Deslocamentos em carros particulares representam
mais de 86% de todos os deslocamentos na América, e dois terços de todos os
deslocamentos em carros são feitos por pessoas sozinhas, e a fração tem aumentado
regularmente”.119
117 Steven Davis, nos Estados Unidos, partiu do valor médio do salário horário, descontados os impostos, e
atribuiu este valor à hora de lazer, algo como 13,2 dólares. Um ganho de 5 horas de lazer por semana
significaria 3.300 dólares por trabalhador e por ano. The Economist, February 4th 2006, p. 29 118 Na realidade, o PIB per capita paulistano sendo cerca de 4 vezes mais elevado do que a média brasileira,
poderíamos estar viabilizando um quilómetro por semana. Utilizamos diversos cálculos semelhantes em
outros trabalhos. O essencial aqui não é o referencial da cifra exata, mas a compreensão de que ter tempo
para viver constitui um valor essencial, e que a racionalidade econômica tem de economizar o nosso tempo,
e não desperdiçá-lo. Um quilômetro de metrô nos custaria, contando 100 milhões de dólares por quilómetro
para uma população de 10 milhões, 10 dólares por habitante. Na ausência da solução de transporte coletivo,
compramos em cada família um carro por 30 mil reais, e andamos a 14 quilômetros por hora. 119 Robert D.Putnam – Bowling Alone: the Collapse and Revival of American Community – Simon and
Schuster, New York, 2000, p. 212
62
Um impacto indireto deste processo é o crescente isolamento em que vivemos. Putnam
insiste neste impacto desarticulador da interação social que provoca o transporte
individual para o trabalho, o chamado “commuting”. De um lado, constata que “cada 10
minutos a mais gastos no tempo diário de commuting, reduz o envolvimento comunitário
em 10% - menos participação em reuniões públicas” etc. Por outro lado, constata “este
outro fato curioso de que não se trata apenas do tempo passado no carro, mas também da
fragmentação espacial entre a casa e o local de trabalho, que é ruim para a vida
comunutária”. Conhecemos bem este fenômeno no Brasil, com a expansão das cidades-dormitório,
com todos os impactos em termos de pobreza cultural, criminalidade e outros.
O processo em sí é bastante interessante. Ao pensarmos o tempo livre como categoria
econômica social, entramos numa visão moderna da economia, porque centrada no
resultado final, na qualidade de vida. Em termos econômicos, isto significa darmos valor
tanto ao tempo que não é diretamente contratado por um empregador, – e que as
empresas consideram gratuito pois não lhes custa – como ao tempo dedicado a atividades
socialmente úteis mas que não entram no circuito monetário, como os cuidados com a
família, o embelezamento dos nossos jardins, a arborização das nossas calçadas por
vizinhos dedicados e assim por diante, evitando que os mecanismos econômicos
dominantes o desperdicem.
É igualmente significativa a invasão do nosso tempo consciente. O custo da publicidade,
por exemplo, avalia apenas os gastos com as diferentes mídias que veículam mensagens
publicitárias. O fato da mensagem publicitária invadir o programa que estou assistindo,
me obrigando a “zapear” entre diversas bobagens em diferentes canais, é uma perda de
tempo. Quem paga por este tempo, pelo descanso que deixo de ter? Os empresários da
publicidade, naturalmente, me dirão que são êles que me “oferecem” o programa. Como
poucas pessoas entendem de economia, o argumento passa. Na realidade, os custos da
publicidade são incluídos nos preços dos mais diversos produtos. Quando um concorrente
coloca a publicidade sobre o seu produto, outro concorrente acompanha, para não perder
fatia de mercado. Na cacofonia que se segue, ninguém presta atenção, mas ninguém
consegue sair do processo. É a tradicional imagem do “senta!” que gritam os torcedores
no estádio, pois ninguém pode sentar sozinho, sob pena de não ver o jogo. O que se
desperdiça no processo, além do nosso dinheiro, como vimos acima com os exemplos de
Juliet Schor, é o nosso tempo.
A invasão do nosso tempo consciente, em que fazemos algo que nos agrada, ou que
escolhemos fazer por alguma razão, é um custo. Ao seguir pela avenida dos Bandeirantes,
em São Paulo, nos vemos num corredor de out-doors. Se queremos desfrutar de um
mínimo de tranquilidade, escutando por exemplo uma música, somos permanentemente
distraídos por mensagens publicitárias. Poderíamos deixar de prestar atenção nas
mensagens, mas não somos feitos assim: somos feitos para prestar atenção no que
acontece em torno de nós, e é o que evita por exemplo um atropelamento. O resultado é
uma tensão entre o que queremos conscientemente fazer e a invasão permanente de
mensagens inúteis. Literalmente, trata-se de lixo, que temos de estar descartando a cada
instante. O processo é cansativo: os americanos qualificam esta tensão de “sobrecarga
63
sensorial”. Custa dinheiro a todos nós, é gera apenas cansaço e um clima geral de
obsessão pelo consumo. Vale a pena pagarmos por isto?
Parece que as pessoas estão gradualmente se dando conta. Há um livro simpático de
Eduardo Gianetti, chamado Felicidade. Quem imaginaria um economista pensando nisto?
Uma excelente leitura é o livro de Bruno S. Frey e Alois Stutzer, Happiness and
Business; particularmente interessante é o trabalho de Tim Kasser, The High Price of
Materialism, que apresenta numerosas pesquisas sobre a relação entre o nível de
satisfação com a vida e a orientação para a acumulação de riqueza material. Rosiska
Darcy escreveu um livro agradável sobre A Reengenharia do Tempo.
A democratização da economia representa muito mais do que um reequilibramento
político: representa um resgate do sentido das coisas, um reencontro entre os objetivos
econômicos e os objetivos humanos. Há obviamente uma psicopatologia da economia
cotidiana que Freud esqueceu de escrever, e que aparece no rosto apoplético de um
motorista xingando outro, ou no rosto cansado de uma mulher que enfrenta uma tripla
jornada. A vida não precisa ser idiota, mas está sendo.
O nosso objetivo aqui não é enumerar os vazios da ciência econômica, mas mostrar que
ao colocar no centro dos resultados econômicos os valores que queremos – em particular
a qualidade de vida, – aparecem como categorias econômicas áreas que normalmente
não estaríamos considerando. E resgatando a tradição do estudo do lazer e do ócio de
Lafargue, de Russell, e mais recentemente de De Masi, começamos a dar conteúdo às
aspirações que temos como seres humanos. A economia é apenas um meio, o objetivo é a
vida. Submeter as corporações aos nossos objetivos humanos, em vez de sermos por elas
empurrados numa correria sem sentido, faz sentido, além de ser mais democrático.
14 - A teoria econômica da sustentabilidade
Parece bastante absurdo, mas o esssencial da teoria econômica com a qual trabalhamos
não considera a descapitalização do planeta. Na prática, em economia doméstica, seria
como sobrevivêssemos vendendo os móveis, a prata da casa, e achássemos que com este
dinheiro a vida está boa, e que portanto estaríamos administrando bem a nossa casa.
Estamos destruindo o solo, a água, a vida nos mares, a cobertura vegetal, as reservas de
petróleo, a cobertura de ozônio, o próprio clima, mas o que contabilizamos é apenas a
taxa de crescimento.
Vimos acima, no item “Medindo Resultados”, as diversas iniciativas de se alterar a
contabilidade para refletir a descapitalização gerada. Aqui nos interessam a deformação
das teorias econômicas e as reorientações necessárias. A ciência econômica tem se
centrado nas diversas engrenagens que fazem funcionar a máquina econômica, e regulam
o seu ritmo: a taxa de investimentos, a taxa de juros, a taxa de inflação, a dinâmica do
emprego, a balança de pagamentos, o nível da dívida, e a consequente taxa de
crescimento. É natural que nos preocupemos com isto, pois se a máquina não funciona
não vamos a lugar algum. No entanto, um número crescente de pessoas está perguntando
o óbvio: para onde vamos?
64
Uma vez mais, trata-se de termos uma visão sistêmica e de longo prazo. O mainstream da
economia baniu o longo prazo e a visão de conjunto, com o que evita de se colocar o
problema desagradável dos impactos estruturais de como nos desenvolvemos. Adam
Smith com a divisão do trabalho, Malthus com a análise das dinâmicas demográficas,
Marx com a análise da transformação das forças produtivas, Schumpeter com a análise da
dinâmica de renovação tecnológica – analisavam a realidade colocando no centro do
raciocínio elementos estruturadores ou re-estruturadores da economia. Podem ter errado
ou acertado nas suas conclusões, mas as categorias que utilizaram os levavam a olhar os
impactos estruturais.
Uma das inovações mais ricas no renovar da ciência econômica, é o fato de um grupo
como o Clube de Roma, mesmo errando nas projeções, ter recolocado na mesa a visão de
conjunto e o longo prazo. Milhares de pesquisadores se lançaram na organização das
cifras certas. E o eixo principal do enriquecimento teórico nesta linha foi sem dúvida a
preocupação com a deterioração – e em várias áreas destruição – do meio ambiente. É
muito significativo lembrarmos como ainda há pouco tempo se reagia à problemática
ambiental, o visível incômodo dos grupos dirigentes, que apontavam para um futuro
glorioso a cada avanço tecnológico, enquanto uns chatos teimavam em apontar para os
lados negativos. Talvez uma das facetas mais trágicas da economia neo-liberal, e mais
infantil do ponto de vista científico, é o fato de apontar para a produção (o crescimento
do PIB), fazendo de conta que não vê os custos (descapitalização do planeta, polarização
entre ricos e pobres, desperdício generalizado dos recursos, desarticulação social).
Quando limitamos as nossas análises a uma comparação quantitativa com o trimestre
anterior, e com o trimestre equivalente do ano anterior, dos outputs de bens e serviços
comerciais, realmente torna-se possível ignorar muita coisa.
É impressionante como o Relatório Brundtland continua presente, quase vinte anos
depois de escrito. Esta presença não resulta apenas do acerto das análises, resulta também
do fato que os problemas estruturais não mudam da noite para o dia. “Vista do espaço, a
Terra é uma bola frágil e pequena, dominada não pela ação e pela obra do homem, mas
por um conjunto ordenado de nuvens, oceanos, vegetação e solos. O fato de a
humanidade ser incapaz de agir conforme essa ordenação natural está alterando
fundamentalmente os sistemas planetários. Muitas dessas alterações acarretam ameaças à
vida. Esta realidade nova, da qual não há como fugir, tem de ser reconhecida – e
enfrentada”. A visão, portanto, tem de ser sistêmica.120
Quanto ao longo prazo e impactos estruturais, o Relatório é eloquente: “Tomamos um
capital ambiental emprestado às gerações futuras, sem qualquer intenção ou perspectiva
de devolvê-lo...Os efeitos da dissipação atual estão rapidamente acabando com as opções
das gerações futuras. Muitos dos responsáveis pelas decisões tomadas hoje estarão
mortos antes que o planeta venha a sentir os efeitos mais sérios da chuva ácida, do
aquecimento da Terra, da redução da camada de ozônio, da desertificação generalizada
ou da extinção das espécies”.
120 - CNUMAD (Comissão das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento) – Nosso
Futuro Comum - FGV, Rio de Janeiro, 1988, p. 1 - O estudo é também conhecido como Relatório
Brundtland, do nome de Gro Brundtland que coordenou a obra.
65
Ao abarcar o nosso pequeno planeta numa visão de conjunto e de longo prazo, os autores
foram naturalmente levados a incluir nas análises a dimensão social dos processos
econômicos: “A pobreza é uma das principais causas e um dos principais efeitos dos
problemas ambientais no mundo. Portanto, é inútil tentar abordar esses problemas sem
uma perspectiva mais ampla, que englobe os fatores subjacentes à pobreza mundial e à
desigualdade internacional...A ecologia e a economia estão cada vez mais entrelaçadas –
em âmbito local, regional, nacional e mundial – numa rede inteiriça de causas e
efeitos”.121
É interessante, portanto, ver como a teoria ambientalista e a visão do desenvolvimento
sustentável podem devolver à ciência econômica os seus rumos. Ao colocar a visão de
conjunto, ultrapassando a visão econômica estreita, voltamos a entender como os
processos de mudança social se relacionam. Ao olharmos o longo prazo, resgatamos tanto
as implicações estruturais como a visão histórica. Ambas nos levam inevitavelemente
para um resgate dos valores, dos objetivos de tudo isso. E a definição dos valores e dos
objetivos sociais constituem nortes eminentemente políticos, sujeitos a processos
democraticos de decisão.
O livro de Edward Wilson, O Futuro da Vida, é antes de tudo bonito. Todos os dados
sobre o nosso drama ambiental estão aí, mas o texto flui, e o autor consegue informar
bem e fazer-nos gostar do tema. A imagem que resulta, uma visão de conjunto da nossa
problemática ambiental, é muito rica.
Wilson não é um sonhador inimigo da tecnologia. Mas reconhece os problemas que esta
tecnologia gerou, e a necessidade dela nos ajudar a resolvê-los. Um dos problemas
mencionados é a nossa "pegada" (footprint): o ser humano, para sobreviver, ocupa espaço
de residência, espaço de cultivos e outros, totalizando 2,1 hectares por pessoa, como
média mundial. O norte-americano, um pouco mais espaçoso, precisa de 9,6 hectares. Se
fossemos seguir o modelo americano, hoje já precisaríamos de 4 terras.
A verdade é que tardamos muito em tomar consciência da enrascada em que nos
metemos: "A humanidade tem jogado, até agora, o papel de destruidor do planeta,
preocupado apenas com a sua própria sobrevivência no curto prazo...Sabemos o que deve
ser feito, talvez agiremos a tempo".122
Assim, a problemática ambiental nos leva aqui também ao problema dos valores, do
“para que?” das nossas atividades: "Como no caso de todas as grandes decisões, a
questão é moral. A ciência e a tecnologia fazem parte do que podemos fazer; a moral é
aquilo que concordamos que deveríamos ou não deveríamos fazer. A ética que é fonte
das decisões morais é uma norma ou referência de comportamento que apoia um valor, e
o valor por sua vez depende dos objetivos. Os objetivos, sejam pessoais ou globais,
surgidos da consciência ou gravados em escrituras sagradas, expressam a imagem que
121 Idem, citações extraídas das páginas 4 e 8 do Relatório. 122 Edward O. Wilson – The Future of Life – Alfred A. Knopf, New York 2002 –“Humanity has so far
played the role of planetary killer, concerned only with its own short-term survival…We know what to do,
perhaps we will act in time”. – p. 102
66
temos de nós mesmos e da nossa sociedade. Em resumo, a ética evolui por passos, da
auto-imagem para o objetivo, para valores, para preceitos éticos e raciocínio moral ". 123
Estamos de volta ao núcleo da visão de Celso Furtado, dos valores no centro da
construção econômica. Wilson tem presente a teoria econômica, mas tem consciência da
distância que ela tem da realidade. “Numa análise publicada em 1998, Norman Myers e
Jenifer Kent da Universidade de Oxford estimaram os subsídios anuais no mundo entre
390 e 520 bilhões de dólares para a agricultura, 110 bilhões para combustíveis fosseis e
energia nuclear, e 220 bilhões para água. Estes e outros subsídios combinados se elevam
a mais de 2 trilhões de dólares, grande parte dos quais causam danos tanto às nossas
economias como aos nossos governos. O americano médio paga dois mil dólares por ano
em subsídios, desmentindo a crença de que a economia americana funciona com um
mercado competitivo realmente livre".124
O processo é particularmente perverso, pois extrair o capital que a natureza nos deixou
leva as corporações a lucrar sobre bens que não tiveram que produzir, custeando apenas a
extração. E ninguém exigirá delas a reposição do capital destruído. Pelo contrário, ainda
as subsidiamos, gerando no conjunto um ambiente de lucros exorbitantes que lhes
permite ocupar um espaço crescente do poder político.
A questão ambiental nos leva assim a repensar os paradigmas da economia. Num
seminário internacional no Senac, sobre a gestão da água, a problemática apareceu de
forma bastante nítida: a água é um bem gratuito, que se transforma em bem econômico
quando começa a faltar, e que pelo seu caráter de bem essencial tanto para o consumo
humano direto como para os processos produtivos, exige formas colaborativas de
regulação do uso. Quem polui a água reduz o acesso de todos, e torna mais lucrativa a
apropriação, gerando um círculo vicioso. Os mecanismos econômicos simplesmente não
resolvem, precisamos de uma política correspondente.
Os dados básicos são os seguintes: produzir um quilo de trigo exige mil litros de água,
um litro de leite exige dois mil, um quilo de açucar tres mil, um quilo de arroz até cinco
mil. Produzir o algodão contido numa camiseta custa sete mil litros, um "quarteirão" de
hambuguer onze mil, um quilo de café vinte mil. Segundo Fred Pearce, "o mundo produz
duas vezes mais alimento do que há uma geração atrás, mas gasta tres vezes mais água
para o seu cultivo. O International Water Management Institute (IWMI) calcula que na
Índia se extraem 250 quilômetros cúbicos de água dos lençois freáticos, cerca de 100
quilômetros cúbicos a mais do que é reposto pelas chuvas". O resultado prático é que as
imensas reservas de água acumuladas durante séculos estão se esgotando com grande
rapidez. Onde antigamente havia poços cavados, utiliza-se pequenas bombas que sugam
água em profundidades cada vez maiores. Onde poços abertos encontravam água a 10
123 idem, p. 130 124 idem p. 184 –A obra citada de Norman Myers e Jennifer Kent é Perverse Subsidies: how tax dollars can
undercut the environment and the economy, Washington, Island Press, 2001 - Wilson, ao olhar o
comportamento das corporações para as quais tentamos formar bons economistas, escolhe claramente o seu
lado: "Arriscando-me a parecer politicamente correto, vou fechar (este livro) com um tributo aos grupos de
protesto...Os grupos de protesto constituem um sistema de alerta para a economia natural. São a resposta
imunológica do mundo vivo. Eles pedem que os escutemos" (p. 184)
67
metros, hoje têm de buscar até 400 metros, e ainda assim secam. Pequenas bombas
modernas, que agricultores individuais compram na Índia, puxam 12 metros cúbicos por
hora. Multipliquem isso por milhões de agricultores...125
A lógica do sistema é implacável. Um agricultor entrevistado comenta: "Sim, estou
preocupado que a água irá desaparecer, mas o que posso fazer? Eu tenho de viver, e se eu
não bombeio a água, os meus vizinhos vão fazê-lo". Pearce comenta que "todos têm
acesso irrestrito ao equipamento, e a sobre-exploração é quase inevitável. É um caso
clássico da tragédia dos [bens] comuns".
Tushaar Shah, do IWMI, "estima que a Índia, China e Paquistão juntos bombeiam
provavelmente cerca de 400 quilômetros cúbicos de água subterrânea por ano, cerca de
duas vezes mais do que é reposto pelas chuvas."..."Fora da Ásia revoluções similares
estão acontecendo em países populosos como México, Argentina, Brasil e Maroccos. Até
os Estados Unidos estão esvaziando preciosas reservas de água subterrãnea para cultivar
grãos e carne para exportação".
A dimensão internacional está se tornando evidente: "Sem que o saibamos, grande parte
do mundo rico está importando safras geradas por meio de sobre-exploração de reservas
de água subeterrânea - algodão do Paquistão, arroz da Tailândia, tomates de Israel, café
da Etiopia, e até laranjas da espanha e açucar da Austrália".
Este cáclulo muda radicalmente a forma como calculamos o nosso consumo de água.
"Um Ocidental típico com seus hábitos carnívoros e esbanjadores de leite consome até
cem vezes o seu peso em água a cada dia".
Há alternativas? Curiosamente, implica voltar um pouco para trás. Em outros tempos
os indianos cavavam inúmeras pequenas barrragens para segurar a água nos vales, o que
reforçava a filtração para dentro do solo e realimentava os lençóis freáticos. Os pequenos
reservatórios assim criados se chamam tanka, nome que os ingleses adotaram sob forma
de tank, e que nos transformamos em tanque. (O "tanque " no sentido militar foi adotado
em 1915, como nome código para a então nova arma).
O processo foi renomeado como "colheita de água" (water harvesting): "Em partes de
Dehli onde velhos tanques e olhos d'água foram limpos e o lixo tirado, a água acumulada
está recuperando os lençóis subterrâneos. A capital podia obter um terço da sua água
colhendo chuva".
125 Fred Pearce – When Rivers Run Dry – Beacon Press, New York, 2006, 320 p. (in New Scientist, 25
February 2006); O New Scientist pode ser acessado em www.newscientist.com; sobre as iniciativas da
ASA, veja www.asabrasil.org.br ; ver também os estudos de Lester Brown, sobre a “bolha alimentar” que
vai estourar com a sobre-exploração da água. www.eartth-policy.org/indicators/water/2006.htm
68
O processo envolve evidentemente organização comunitária. Segundo Shah, "um fator
importante na Índia é o controle comunitário. Poucos agricultores individuais podem
captar com sucesso a sua água e armazená-la de baixo da terra - ela se dissiparia
rapidamente no aquífero mais amplo. Mas se uma vila inteira o faz, os efeitos são
frequentemente espetaculares. As camadas de água sobem, riachos ressecados voltam a
fluir, e há mais água para irrigação, transformando a produtividade dos campos."
O movimento de colheta de água de chuva, segundo Shah, "está mobilizando energia
social numa escala e intensidade que pode torná-la numa das respostas mais efetivas para
um desafio ambiental em qualquer parte do planeta". Esta visão serve também para
lembrar os esforços pioneiros da ASA, Articulação do Semi-Árido, cerca de mil
organizações da sociedade civil que estão combatendo a seca através da micro-captação
de água em cisternas.
Em termos de teoria econômica, o exemplo é importante. Na visão generalizada do main-stream
econômico, fica a eterna imagem do padeiro de Adam Smith, que para maximizar
as suas próprias vantagens, deverá produzir mais pão, de boa qualidade, e a bom preço,
pois se não aparecerão outros padeiros. Assim, cada um procurando o seu interesse,
resultará o maior bem comum. O raciocínio é sem dúvida válido para o caso da padaria e
para a época. No caso do agricultor indiano visto acima, no entanto, o mesmo raciocínio
leva a outros resultados. O argumento básico é de que ele precisa alimentar a sua família,
e que de qualquer jeito, os seus vizinhos também extraem água do mesmo lençol. Ou
seja, cada um buscando o seu interesse, o resultado é o impasse geral. O raciocínio básico
do “main-stream” inverte-se portanto completamente. E as soluções aparecem na
iniciativa comunitária de proteção do bem comum, privilegiando o paradigma de
colaboração relativamente ao paradigma da competição. Os caminhos mudaram.
Aparece assim um imenso vazio nas teorias: a economia dos bens comuns. Na
apresentação do livro sobre gestão da água, enfatizamos este novo desafio: “Sabemos
como administrar uma empresa que produz sapatos ou automóveis; sabemos como
organizar um ministério. Mas, à medida que numerosos bens públicos, os commons¸
tornam-se cada vez mais ameaçados e escassos, temos de abrir a discussão sobre formas
inovadoras de gestão que assegurem simultaneamente a viabilidade econômica, o acesso
equilibrado e a sustentabilidade ambiental.” 126
Uma boa leitura que abre visões na teoria econômica da sustentabilidade, é outra vez
Herman Daly. No seu Beyond Growth, Daly caracteriza a economia do desenvolvimento
sustentável como baseada em quatro objetivos: o crescimento tem de ser sustentável, ou
seja, tem de respeitar a escala que o planeta possa sustentar a longo prazo; isto por sua
vez implica que respeitemos a visão da suficiência, pois não podemos aumentar
indefinidamente o nosso consumo sem destruir as bases da reprodução; temos de
assegurar a eficiência no uso dos recursos, para minimizar o impacto e reduzir os
desperdícios impressionantes da nossa forma atual de organização econômica; e temos de
126 Ladislau Dowbor e Renato A. Tagnin (Orgs.) – Administrando a água como se fosse importante –
Senac, São Paulo, 2005, p. 12
69
assegurar a equidade na distribuição, coisa que os mecanismos de mercado não
asseguram.127
Tradicionalmente, as teorias preocupadas com a exploração e a desigualdade têm se
centrado no problema da distribuição. Este ponto é sem dúvida essencial: o capitalismo
como o conhecemos é um razoável alocador de recursos para a produção, mas não sabe
distribuir, prevalecendo pelo contrário a tendência para a concentração de poder que
reforça a concentração da renda. Ou seja, o sistema é estruturalmente incompleto, pois a
distribuição é que fecha o ciclo de reprodução através do consumo. Mas temos de ir além.
Nas palavras de Daly, “a incapacidade do mercado em resolver o problema da justa
distribuição é amplamente reconhecido, mas a sua semelhante incapacidade de resolver o
problema de manter uma escala ótima ou pelo menos sustentável não é tão amplamente
levada em conta”. Assim, “as decisões que afetam o desenvolvimento sustentável
deveriam ser abertas e permitir a particpação informada das partes afetadas e
interessadas”. 128
Bob Goudzwaard e Harry de Lange ampliam esta visão da “escala ótima”: é cada vez
mais óbvio que a expansão do consumo nos leva a impasses em termos de exaustão
ambiental do planeta, de desigualdades, de desarticulação social. Coloca-se então em
discussão um conceito importante: o que é suficiente? Esta visão parte do fato que “por
causa do nosso impulso coletivo para mais e mais, prejudicamos diretamente o nosso
próprio bem-estar. Precisamos de uma outra visão da vida, uma visão na qual a palavra
“suficiente” (enough) joga um papel positivo. A implementação de tal visão criará novas
possibilidades para convívio de vizinhança (neighborliness), para demonstrar o nosso
cuidado com o nosso entorno, para ter mais tempo disponível nas nossas vidas corridas.
Tal visão ajudará a libertar não só os pobres, mas os ricos também”. Trata-se de restaurar
uma evidência perdida: “as pessoas não são feitas para a produção, mas a produção para
as pessoas”. 129
Não estamos aqui tentanto resumir alguns problemas do meio ambiente. Estamos
tentando esclarecer a importância da problemática ambiental para a reformulação de
como vemos a ciência econômica. Trata-se aqui, uma vez mais, de constatar que estudos
que partem de problemas concretos como o da sustentabilidade levam a uma reconstrução
da econômia sobre bases muito mais sólidas, porque centradas nas ameaças reais que
surgem, nos resultados que queremos, nos valores que os sustentam, e nos mecanismos
necessários para materializá-los. E a sólida incorporação da dimensão ambiental no
estudo e na pesquisa em economia – e não mais como um leve toque de verde em alguma
disciplina optativa – tende a levar à compreensão de dinâmicas integradas, pela própria
transversalidade da problemática.
127 Herman E. Daly – Beyond Growth: the economics of sustainable development - Beacon Press, Boston,
1996 – ver em particular as páginas 50 e 224. 128 Idem p. 50: “The market’s inability to solve the problem of just distribution is widely recognized, but its
similar inability to solve the problem of optimal or even sustainable scale is not as widely appreciated”. 129 Bob Goudzwaard and Harry de Lange – Beyond Poverty and Affluence: towar an economy of care -
WCC Publications, Geneva, 1986, p. 159 e 74; O livro traz um prefácio de Maurice Strong, que coordenou
a Eco-92 no Rio de Janeiro; ver também o excelente Estudo What Next?, no Development Dialogue, June
2006, Dag Hammarskjöld Foundation.
70
Kenneth Boulding resume o problema de maneira simples: “Para acreditar em
crescimento ilimitado num mundo limitado, é preciso ser um bobo ou um economista”.130
O bom senso indica que num planeta com recursos limitados, a simples competição, com
cada um correndo para agarrar o máximo que puder, constitui um absurdo sistêmico. Da
mesma forma como estamos aprendendo penosamente que a política exige pactuações
para equilibrar interesses diversos, o acesso aos recursos escassos do planeta exige
pactuações que respeitem as necessidades de todos. Em outros termos, precisamos
extender os conceitos de democracia ao controle dos recursos que são, afinal, de todos
nós.
15 – A política macroeconômica
A macroeconomia constitui uma área, entre todas, cercada de mistérios. No entanto, o
processo não difere no fundamental da administração da nossa casa. Se queremos investir
numa cozinha nova, temos de poupar. Se investirmos sem a poupança correspondente,
ficamos endividados. E o que gastamos a cada ano deve corresponder ao que produzimos,
ao que trazemos para dentro de casa sob forma de salário, de lucro ou até da nossa
aposentadoria. Se sobrar, temos uma poupança. Se faltar, teremos que pagar no ano
seguinte ou tomar um empréstimo. Ou seja, a conta tem de fechar. A macroeconomia tem
a ver simplesmente com a conta do país, e cada vez mais com a nossa conta planetária.
Nos diversos ciclos produtivos, tudo tem de fechar, pois o que exige esforço representa
um custo. Quando dizemos que o ensino público é gratuito, estamos significando que o
pagamento não é direto, é através dos impostos. Assim, uma parte do que produzimos
como sociedade é redistribuida para gasto direto sob forma de lucros e salários, e outra de
forma indireta sob forma de gasto público. Se estamos interessados em informações
comerciais sobre automóveis, e compramos uma revista especializada, o gasto é direto.
Se nos apresentam um anúncio sobre o automóvel na televisão, o custo faz parte da verba
publicitária que pagamos nos diversos produtos. Como o que pagamos está diluído nos
diversos produtos, temos a impressão que é de graça, e as empresas preferem que assim o
vejamos. Ou seja, pagamos de forma direta, ou de forma indireta, mas pagamos. Cada
produto social exige esforço, e o objetivo básico da macroeconomia é que este esforço
seja orientado de forma inteligente, no que chamamos tecnicamente de “alocação racional
de recursos”.
Vale a pena alocarmos recursos para tecnologia? Claro, pois avanço tecnológico permite
fazer o nosso esforço render mais. Neste sentido, não apenas a fábrica, mas a educação
também constituem investimentos, pois vão render em termos de formas mais inteligentes
de trabalhar. A máquina foi um avanço, pois passamos por exemplo a confeccionar
roupas de maneira mais eficiente, fazendo o nosso esforço “render”. A telefonia, ou a
internet, nos fazem render mais, pois em vez de transportarmos os nossos corpos,
transportamos a informação em instantes, e de forma mais barata. Assim aumenta a nossa
130 “In order to believe in unlimited growth in a limited world, one has to be either a fool or an economist”.
In “Göran Backstrand and Lars Ingelstam, Global challenges and responsible lifestyles, What Next?,
Development Dialogue, June 2006, p. 125
71
produtividade sistêmica, e passamos a ter mais capacidade de investir, e de obter mais
produtos e serviços. Vale a pena alocarmos recursos de forma a que gerem mais recursos.
A regra básica, é de buscar alocar os recursos onde vão ser mais úteis em termos da
sociedade em geral. Isto constitui, ou deveria constituir, o cerne da política macro-econômica.
Os bens e serviços são o produto do esforço dos mais diversos agentes econômicos. Os
impactos sobre o desenvolvimento serão diferentes segundo quem se aproprie de maior
volume da riqueza produzida. Um enriquecimento maior de especuladores financeiros
tende a travar as atividades, ao esterilizar a poupança, enquanto uma melhor remuneração
de pequenos produtores, por exemplo, poderá dinamizar o emprego e o mercado interno.
A política macroeconômica regula essencialemente, para o bem e para o mal, quem se
apropria do esforço produtivo do país.
O mecanismo macroeconômico em si não é complexo. Uma parte do produto vai
diretamente para as familias, sob forma de salários, lucros ou outras rendas alocadas ao
consumo final. Outra parte transitará pelas maõs do governo e se transformará em
consumo indireto das familias sob forma de prestação de serviços públicos, educação,
saúde, segurança etc. E uma parte significativa dos recursos se transforma em
investimentos, públicos ou privados, permitindo expandir a capacidade geral de
produção. Finalmente, outra parte vai para pagar juros e amortização de empréstimos.
Quem merece mais produto? Há uma dimensão ética neste processo, ligada à necessidade
de se assegurar o acesso minimamente equilibrado de todos ao produto social. Não se
pode, por exemplo, deixar uma pessoa sem acesso a um médico porque é pobre. Ou
deixar crianças sem leite sob pretexto que os culpados são os mecanismos econômicos. O
excesso de riqueza em algumas mãos constitui igualmente um dilema ético, pois se
origina em mecanismos econômicos descontrolados e se transforma em poder político
que tende a reforçar os desequilíbrios. O excesso de riqueza, como a excessiva privação,
são patológicas para qualquer sociedade. Voltaremos a isto no último capítulo deste
ensaio.
Na dimensão propriamente econômica, considera-se que é bom que as pessoas sejam
remuneradas de acordo com o que contribuem para a sociedade, recompensando assim os
melhores esforços, e estimulando-os. O grosso dos nossos dramas, é que algumas
pessoas, ou grupos sociais, produzem pouco, e se apropriam de muito. O
reequilibramento da situação e a eventual correção dos mecanismos está no cerne da
política macro-econômica.
A distinção básica a se fazer é que uma agente econômico pode enriquecer gerando novas
riquezas, ou enriquecer apropriando-se de riquezas dos outros. No nosso “O que é
capital?” utilizamos a imagem seguinte: se uma pessoa investe construindo várias casas, e
por alguma razão vai à falência, diremos que perdeu dinheiro. Mas o resultado prático
será a existência de casas novas, onde pessoas concretas poderão morar, e portanto o
produto social aumentou. Mas quando compramos dólar prevendo que vai subir, e o dólar
realmente sobe, o dinheiro que ganhamos corresponde à capacidade de compra diminuída
72
de quem os vendeu: é um enriquecimento de transferência, a sociedade não ganhou nem
perdeu nada. Os intermediários financeiros, por exemplo, insistem em definir as
atividades especulativas de “investimento”, quando se trata apenas de aplicações
financeiras. Tecnicamente, investimento é aquele que visa o aumento da capacidade de
produção da sociedade.
Ou seja, em termos micro-econômicos, quem ganhou dinheiro comprando dólar na hora
certa ficou rico. A riqueza do país, no entanto, não aumentou de um centavo. O objetivo
da macro-economia é alocar os recursos da maneira mais inteligente possível, visando o
bem-estar crescente do conjunto da população, e não brincar com especulação. O Brasil
viveu longo tempo com um tipo de processo especulativo que é a inflação, e depois com
outro processo especulativo baseado em altos juros: os dois processos enriqueceram
minorias, mas a economia nada ganhou.
Um problema central é que a nossa teoria econômica analisa de forma separada
elementos que só adquirem sentido quando analisados de forma articulada. Os elementos
são fundamentalmente os juros, a inflação, o câmbio, a carga tributária e o estoque da
dívida. Destes elementos resultarão a renda, o consumo, o investimento, o emprego e a
produção.
Não cabe aqui naturalmente fazer a teoria destas políticas, mas sim explicitar a
necessidade de se tornar transparentes os vínculos entre as decisões macro-econômicas e
os interesses dos agentes econômicos concretos que delas se beneficiam. O essencial na
política macronômica é que se trata em última instância de instrumentos de distribuição
do produto social. Ou seja, o seu estudo abstrato pode interessar construtores de modêlos,
mas os modelos construídos raramente ajudam a entender a realidade, e muito menos a
transformá-la. Em geral, aliás, o uso dos modêlos serve essencialmene para dar
aparências técnicas de racionalidade onde há simplesmente favorecimento de agentes
econômicos escolhidos. E os interesses ficam na sombra, o que contribui muito pouco
para a democracia.
A insuficiente compreensão da dimensão política dos processos macro-econômicos gera
confusão. Imagina-se um espaço a-político, com decisões técnicas baseadas em teoria
econômica, o que termina por camuflar as dinâmicas realmente existentes, baseadas
essencialmente em pressões corporativas. Assim, decisões de ordem econômica são
tomadas por razões e critérios políticos, sem que haja para isso os mecanismos
correspondentes de decisão democrática. Como esta esfera de decisões é essencial, a
própria democracia política perde boa parte do seu sentido.
Um exemplo muito concreto é a inflação. Celso Furtado inovou ao deslocar o foco da
questão. Em vez de fazer amplas teorias sobre a dinâmica dos preços, perguntou-se
simplesmente a quem aproveita, o famoso cui bono? Constatou então que os que têm
rendimentos fixos como os assalariados ou aposentados, ou ainda as pequenas empresas
sem possibilidade de influenciar os preços, vêm os seus rendimentos diminuídos com
cada subida de preços. E os que têm rendimentos variáveis, como os empresários,
banqueiros e outros, não precisam esperar nenhum dissídio, simplesmente aumentam os
73
seus preços acompanhando, e se possível mantendo-se um pouco adiante, da maré de
preços. O resultado prático é que a inflação constitui uma transferência de renda dos
pobres para os ricos. Vendo a quem aproveita, dá para ver também quem a provoca. A
era da hiperinflação que vivemos durante décadas constituiu um processo escandaloso de
concentração de renda na mão dos mais ricos.
Esta orientação básica, o cui bono, constitui um enfoque essencial. De forma geral o que
nos dizem é que o objetivo visado é o bem comum, por meio da estabilidade do processo.
Um processo estável onde os resultados econômicos vão parar regularmente para o
mesmo bolso, nos faz necessariamente desconfiar de que estabilidade se trata:
estabilidade para quem?
A inflação se tornou clara ao verificarmos a quem servia, o que por sua vez nos fez
entender que era alimentada pelas grandes empresas e pelos bancos. Podemos fazer um
exercício semelhante com a taxa de juros.
O período de explosão de juros, 1994 a 2002, coincide com uma fase curiosamente
qualificada de “estável”. O período começa com uma dívida pública da ordem de 150
bilhões de reais, e termina com uma dívida pública de mais de 800 bilhões. Ou seja, algo
aconteceu com 650 bilhões de reais, aumento radical do estoque da dívida, que é pública,
e que portanto recai sobre cada um de nós. Para onde foi este dinheiro?
Os juros nesta fase oscilaram na faixa de 20% a 30%, tendo chegado a 45%. Trata-se não
dos juros praticados no mercado de intermediários financeiros privados (em particular no
seleto cartel dos grandes bancos), mas dos juros pagos aos intermediários financeiros
pelo governo. Como os juros que os bancos nos pagam, nós comuns dos mortais, são
muito pequenos, o processo de ganhar dinheiro pelos bancos se torna explícito: tomam as
nossas poupanças, remuneram-nos, por exemplo, na faixa de 10% ao ano, aplicando este
dinheiro em títulos do governo a 20% ou mais. O governo tem de pagar estes juros aos
bancos, recorrendo aos impostos, ou então endividando-se crescentemente. Foram feitas
as duas coisas: com o aumento dos impostos, pagaram-se juros astronômicos aos
intermediários financeiros e grandes aplicadores, e como não dava para pagar todos os
juros, o que ficava sem pagar se acrescentava ao estoque da dívida. Quem pagou os
impostos, logo a remuneração mencionada, somos nós. Já pagamos, no caso de juros
pagos; e teremos de pagar amanhã, no caso dos juros não pagos que se agregam à dívida.
Como os impostos cobrados de nós não eram suficientes para custear ao mesmo tempo a
máquina do governo, os diversos serviços prestados e o serviço da dívida, buscou-se
aumentar a carga tributária. Esta passou de 25% em 1994 para 37% em 2002, um
aumento de 12 pontos percentuais. Isto representa na fase final uma conta anual da ordem
de 240 bilhões de reais. Deste montante, 160 bilhões de reais representam o dinheiro que
os contribuintes passaram a pagar ao governo para que pudesse pagar juros aos
banqueiros e aos grandes aplicadores financeiros, sobre as nossas poupanças. O que se
ganhava com a inflação, passou-se a ganhar com os juros, beneficiando em geral as
mesmas pessoas. O mecanismo é simpaticamente chamado no Brasil de “mercado”. E o
ministro da fazenda era felicitado por manter a estabilidade. Olhar o cui bono¸ em
74
proveito de quem, é um enfoque essencial, e deveria constituir um elemento essencial de
como a ciência econômica olha para as contas. Mais importante ainda, como reformulá-las,
para que fique transparente para a sociedade quem se apropria de que parte do
produto social.
A dívida não é necessariamente ruim. Se o dinheiro suplementar levantado fosse
investido por exemplo na modernização tecnológica da pequena e média empresa, ou na
informatização geral das escolas, ou no fomento da agricultura familiar, teríamos um
grande impacto em termos de crescimento econômico, permitindo assim gerar mais
recursos do que a dívida criada. É assim que raciocina, e com razão, qualquer pessoa que
quer abrir uma empresa, pede dinheiro emprestado, e restitui o dinheiro com a renda
suplementar que a empresa gerou.
No caso do nosso endividamento público, no entanto, não houve aumento de
investimentos por parte do setor público, tendo a taxa geral de investimentos estagnado.
E tampouco houve aumento do salário dos funcionários. Portanto, grande parte dos
recursos transferidos sob forma de impostos não foi apropriada pela máquina do governo.
Ou seja, a parte dominante da divida serviu um enriquecimento sem contrapartida
produtiva. Em outros termos, no conjunto das elites, o poder dos intermediários
financeiros e rentistas se reforçou, e o investimento produtivo estagnou, explicando por
sua vez a ausência de crescimento econômico. Gerou-se inclusive um entrave à produção,
pois muitos donos de empresas decidiram aplicar em títulos do governo, bem
remunerados, em vez de investir em processos produtivos.131
Quanto à carga tributária, as situações são diferenciadas, pois os assalariados têm a sua
renda declarada na fonte, pelo empregador, que tem todo interesse em declarar cada
centavo, para reduzir os seus próprios impostos. O aumento da carga tributária impactou
assim diretamente os assalariados, que viram a sua participação na renda do país, e
portanto no consumo, cair de 45 para 37% no período. Os intermediários financeiros, por
outro lado, pagam pouquíssimos impostos. Assim, o aumento da carga tributária resultou
em última instância numa transferência, via governo, do dinheiro dos assalariados para o
bolso dos banqueiros e rentistas.
Estamos aqui falando de um aumento da dívida de 650 bilhões no período, e de
transferências de mais de 100 bilhões de reais por ano nos anos mais recentes, – portanto
de um deslocamento radical, e profundamente regressivo, da política macro-econômica.
E os intermediários financeiros, que antes ganhavam rios de dinheiro com a inflação,
passaram a ganhar dinheiro desta nova forma. A concentração de renda no país não
constitui apenas uma “herança” do passado: é uma dinâmica sumamente moderna. A
desigualdade foi sendo reconstruida a cada momento.
Paralelamente, houve um intenso processo de privatizações, que envolveu mais de 100
bilhões de reais. O dinheiro que entrou não serviu para abater a dívida, que cresceu, nem
para aumentar os investimentos públicos, que estagnaram. Para onde foi este dinheiro?
131 Rubens Ricúpero, no seu tempo na UNCTAD, mostrou como um mecanismo semelhante funciona no
plano internacional. Veja-se o Trade and Development Report 1998, da UNCTAD
75
Foi em grande parte apropriado por quem faz aplicações financeiras, expandindo o poder
dos rentistas e dos intermediários financeiros. Não nos referimos aqui ao fato de que as
privatizações representaram em geral negócios fabulosos para os que adquiriram bens
públicos a preços baixos. Referimo-nos ao fato de que além de gerar uma dívida de 650
bilhões, de ter pago rios de dinheiro sob forma de juros enquanto os impostos e a dívida
iam aumentando, o Estado foi descapitalizado no seu estoque de bens acumulados, na
prata da casa.
Ou seja, gerou-se um imenso dreno de recursos do país, públicos e privados, para a área
de intermediação financeira, provocando entraves ao processo produtivo e criando para o
governo seguinte uma gigantesca arapuca.
Como foi vendida esta negociata ao país? O processo é muito interessante, e mostra a
articulação da economia com a política em geral. O país saía de taxas de inflação
traumatizantes. Todos ficaram imensamente aliviados. Qualquer argumento anti-inflação
seria aceito. A alta taxa de juros foi promovida a héroi que combate a inflação.
O argumento mostra como se pode utilizar argumentos ultrapassados – ainda que
perfeitamente ortodoxos na teoria econômica – para situações novas, o que em termos
científicos constitui uma fraude, mas em termos de política funciona.
Qual é a relação real entre juros e inflação? Amir Khair mostra hoje sem dificuldade que
na era da globalização, com a abertura de mercados à concorrência (chinesa em
particular), já não haveria ameaça do “dragão” reaparecer, ainda que apareça
ameaçadoramente em todas as revistas. Aliás, como o câmbio valoriza o real, tornando
mais baratas as importações, não há como subir os preços no mercado interno sem se
expor aos produtos importados. Ou seja, na era da globalização, as coisas são diferentes:
não precisamos de taxas de juros elevados para conter a inflação, pois a concorrência
internacional joga um papel decisivo.
Outra razão, apresentada por Paul Singer, mostra que o custo elevadíssimo do juro
privado (estimulado pelo elevado juro oficial) tende a aumentar o custo de produção, e
portanto a favorecer a inflação, ao invés de reduzi-la.
Um terceiro argumento importante resulta da globalização do sistema especulativo
financeiro: na época da hiper-inflação, era inviável os intermediários financeiros do
Brasil participarem do sistema globalizado de especulação financeira, pois a moeda
flutuava diariamente. A baixa inflação tornou-se portanto necessária à participação dos
intermediários financeiros (nacionais ou transnacionais) no cassino financeiro mundial.
Os intermediários financeiros passaram desde então a ter interesse na estabilidade dos
preços, e com isto a ameaça de de uma “volta” da inflação deixa de ser realista. No
entanto, agitar a ameaça da volta da inflação, depois de anos de traumatismo monetário,
continuaria a funcionar no plano político.132
132 Um fato que curiosamente passou desapercebido no Brasil é que em 1993 havia cerca de 40 países com
inflações semelhantes, como Israel, Argentina, Nicarágua e outros. As hiperinflações cairam todas no
período de 1993-1994, como se pode ver nas estatísticas financeiras do FMI, ou nos comentários do The
76
O resultado é que organizou-se uma gigantesca transferência da poupança da população
para intermediários financeiros e rentistas que nada produzem, em nome do mais alto
objetivo de defender o povo da inflação. O baixo crescimento resultante seria apresentado
como “sacrifício necessário”. O processo foi legal, considerando que no Brasil é
aparentemente legal os grupos financeiros se organizarem sob forma de cartel e se
apropriarem das políticas públicas de regulação financeira.
A mídia, aliás, foi um aliado poderoso deste processo, cuja análise não era muito
complexa, para quem quisesse ver. Durante oito anos foi martelada diariamente a idéia
que a era que analisamos representou uma era de “estabilidade econômica-financeira”, o
que, considerando as cifras acima, é completamente absurdo, pois quem se endivida e
descapitaliza desta maneira apenas está abrindo a própria cova, ou a do governo seguinte.
O caso aqui não é falar mal de um governo, sobretudo porque o governo seguinte se viu
preso na armadilha e pouco pôde modificá-la. O importante para nós, é que para entender
como se articulam a taxa de juros, o estoque da dívida, a inflação, o câmbio, o
investimento e o crescimento econômico, o que precisamos é estudar como estas macro-variáveis
se reforçam umas às outras no processo econômico realmente existente, e como
os processos políticos e a informação da mídia reforçam dinâmicas de desequilíbrio.
Isto implica estudar a política macro-econômica, não elaborando complexos modelos
econométricos sobre como poderá reagir um misterioso personagem chamado
convenientemente de “mercado”, mas estudando concretamente como evoluiu a renda de
cada um dos agentes econômicos – as beneficiários – no período, e explicitar como as
macrovariáveis foram alteradas em função destes interesses.
Não há milagre em economia. O dramático enriquecimento dos intermediários
financeiros do país teve custos igualmente dramáticos em outras áreas. Sendo
enriquecimento de transferência, não gerou mais riqueza. Houve o que se chama de
esterilização da poupança.
Dizer se a economia vai bem ou vai mal implica em saber quem vai bem e quem vai mal
na economia. E se quem vai bem na economia é quem tem poder junto à mídia, em geral
cria-se a impressão geral de que “as coisas” vão bem. Com o tempo, no entanto, os
buracos aparecem. Por exemplo, quem vai pagar esta dívida?
Com isto desenha-se a contra-tendência necessária: buscar reduzir a taxa de juros,
aumentar a massa salarial, enfrentar o poder midiático dos especuladores, taxar os ganhos
Economist: “Muitos países se queixam com razão de que por mais que consigam baixar a inflação, o Fundo
(FMI) ainda quer que a reduzam mais. O viés do Fundo fazia provavelmente sentido em1992, quando 44
países tinham taxas de inflação acima de 40%, mas faz muito menos sentido hoje quando apenas um par de
países ainda tem uma inflação muito alta” – The Economist, July 24th 2004, p. 65; o fato da derrubada das
hiperinflações em dezenas de países simultaneamente indica claramente que no Brasil também não foi
milagre. A globalização financeira não pode conviver com moedas que mudam de tamanho diariamente e
que portanto travariam a fluidez do sistema.
77
financeiros, abrir linhas de financiamento dos canais oficiais para esferas produtivas e
assim por diante.
Teorias novas? Não há nenhuma necessidade de teorias nem de modelos complexos nesta
área. Aliás estas elucubrações econométricas entram, no essencial, no que Galbraith
chamou de “pequenas fraudes”, dando impressão de justificação técnica para o que são
opções políticas de apropriação de recursos por determinados agentes econômicos, e que
refletem muito mais relações de poder do que racionalidade econômica. E frente à
complexidade dos cálculos, os grupos espoliados ficam imaginando que há uma
racionalidade profunda onde há, em geral, pilantragem. O que se tornou indispensável, na
realidade, não são novas teorias sobre o que Celso Furtado qualifica como “meios”, mas
simplesmente divulgação honesta das vantagens e desvantagens dos diferentes grupos
sociais, apresentando de forma organizada a participação dos diversos agentes
econômicos no produto social. Neste sentido, a reorientação metodológica consiste
essencialmente em apresentar corretamente as contas. É muito mais um problema de
honestidade e de transparência do que de teoria econômica.
De forma geral, como se trata da questão essencial de quem se apropria de que parte do
resultado do esforço de toda a sociedade, tornar esta contas transparentes é vital para que
os processos democráticos tenham sentido. Trata-se aqui provavelmente da articulação
mais significativa entre democracia econômica e democracia política.
16 - A teoria da economia mundial
Para muitos, a globalização é uma coisa antiga. É não ver a profundidade das
transformações recentes. É imensa a revolução nas tecnologias do conhecimento, ou seja,
na própria máquina de avançar o conhecimento. Isto acarreta tansformações estruturais
cujas implicações apenas começamos a entender. Para além da conectividade planetária
da internet – todo mundo em contato com todo mundo instantaneamente – os próprios
processos produtivos estão se deslocando para atividades intensivas em informação e
conhecimento, levando a que se juntem os meios e os fins. O poder da grande corporação
torna-se assim ao mesmo tempo global e capilar, com forte presença política mundial, e a
possibilidade de forncecer, por exemplo, mini-garrafas de Coca-Cola para os pobres nos
rincões mais perdidos da India. Não é só, portanto, o ultrapassar dos limites nacionais
para gerar uma economia global: é uma mudança do referencial de espaço e de tempo do
conjunto das atividades econômicas, fragilizando os governos nacionais, revigorando o
potencial da economia local, abrindo espaço para novas soluções em rede das
organizações da sociedade civil. O que resumimos como globalização constitui na
realidade uma dramática simplificação do complexo reordenamento das funções
territoriais que ocorre. 133
133 - Não entraremos aqui no detalhamento deste “reordenamento dos espaços do desenvolvimento
econômico”, que apresentamos em Desafios da Globalização, Ed., Vozes, Petrópolis, 1998; ver também
em http://dowbor.org, sob “artigos online”, o nosso Da Globalização ao Poder Local: a nova hierarquia
dos espaços, 1995
78
Somos inundados de teorias sobre a globalização. Mas aqui também a visão de conjunto é
um processo em construção. Na realidade, é do estudo das macrotendências concretas
(megatrends) que surgem visões relativamente mais claras. A financeirização, por
exemplo, que vimos acima, constitui um referencial importante. Igualmente importante é
o deslocamento de uma parte significativa das atividades econômicas para o que temos
chamado de economia do conhecimento, e de forma mais ampla a dominância dos
“intangíveis” nos processos produtivos. Esta dominância vai inclusive definindo uma
outra divisão internacional do trabalho, uma nova “especialização desigual” no plano
mundial. A cultura também passou a desempenhar um papel chave na mundialização da
economia, com a formação do espaço planetário da indústria do entretenimento, tendendo
rapidamente para a pasteurização – ou macdonaldização – mundial tanto no plano
cultural como no plano dos hábitos de consumo. A dramática expansão da conectividade
planetária gerou um novo poder político, econômico e midiático mundial que são as
grandes corporações, transformação ainda relativamente pouco analisada. Este poder por
sua vez está gerando impactos ambientais – diretamente através da sobre-exploração de
recursos e geração de modelos insustentáveis de consumo, e indiretamente através das
desigualdades criadas – em que por primeira vez a inércia das dinâmicas criadas
ultrapassa de longe o ritmo das correções de rumos.
O tempo, neste processo, não é nosso aliado. Uma série de alterações planetárias, como o
aquecimento global ou a ruptura das cadeias alimentares nos oceanos, está avançando
com um ritmo tal, que quando notarmos a irreversibilidade, o ponto de não retorno terá
sido ultrapassado. A compreensão política da irreversibilidade, que é quando os governos
e outros atores sociais conseguem sair da passividade, situa-se muito além do horizonte
temporal de correção.
Só de enumerar algumas destas macrotendências, já nos damos conta da profundidade
das transformações, do prodigioso “encolhimento” do nosso pequeno planeta. É um novo
mundo que surge, não de alguma visão positiva que queiramos alcançar, mas como
simples resultante de dinâmicas descontroladas. E o conceito de globalização, gigantesco
cobertor que visa se referir a este conjunto de transformações, é geral demais para ajudar
na construção de uma melhor compreensão do que está acontecendo.
Uma forma interessante de abordar um problema que é demasiado amplo e diferenciado
para uma visão sintética, é – na boa tradição de Marx – tentar identificar as contradições
que surgem.
Quando falamos da prodigiosa aceleração da história, por exemplo, esquecemos que a
metada da população mundial ainda vive da agricultura familiar, que cerca de 40%
cozinham com lenha, que centenas de milhões de pessoas ainda tentam sobreviver da
pesca artesanal costeira. Ou seja, a globalização não é um processo uniforme, pelo
contrário, gera uma abismo profundo entre uma minoria de países – e sua rede de
empresas transnacionais – que avançam cada vez mais rápido ao ritmo de novas
tecnologias, e uma massa imensa da população mundial que se vê privada das suas
formas tradicionais de sobrevivência, mas não tem acesso aos meios necessários para
participar do novo. As populações litorâneas do planeta já não encontram peixe nos
79
mares, ou cada vez menos, e tampouco têm acesso ao emprego ou à renda da milionária
pesca predatória industrial. Populações do mundo rural africano viram as suas condições
tradicionais de sobrevivência liquidadas pela monocultura, desmatamento e a violência
das guerras modernas, e se aglomeram nas cidades, onde o passado já não as protege, e o
presente não as acolhe.
Imaginar, neste planeta que continua a encolher, e com as tendências demográficas que
conhecemos, que os países ricos poderão viver confortavelmente num tipo de condominio
fechado planetário, prevenindo atentados nos Estados Unidos, reprimindo revoltas na
França, abatendo imigrantes ilegais nas fronteiras, protegendo as suas tecnologias e de
vez em quando reunindo o G-8 para perdoar algumas dívidas, faz parte de uma cegueira
hoje palpável.134
Outra contradição surge na tensão entre o ritmo de avanço das novas tecnologias, e o
ritmo incomparavelmente mais lento da mudança cultural e institucional. Deve-se ou não
clonar seres humanos? É legítima a vigilância eletrônica dos empregados numa empresa?
Deve-se controlar (imaginando que teríamos o poder necessário) a manipulação genética
que se generaliza? É normal a venda das informações do nosso DNA por hospitais ou
laboratórios de análise? Na realidade, a generalização dos conhecimentos de química
fina, de biologia e da física tornam possível produzir em qualquer fundo de quintal – ou
pouco mais – drogas, venenos, armas letais de diversos tipos, enquanto o seu controle
continua funcionando à moda antiga. A Rússia e os Estados Unidos estão inundando o
planeta de armas, para depois vender medidas contra o terrorismo.135 O problema é
central, e envolve em particular a destruição ambiental do planeta, já que as capacidades
tecnológicas de extração de riquezas se expandiram radicalmente – veja-se a pesca
industrial com auxílio do sistema de posicionamento GPS – enquanto os nossos sistemas
de controle continuam na prehistória.
Tensão semelhante surge do impacto diferenciado das novas tecnologias sobre o
emprego, e quem diz emprego diz inserção social, direitos de acesso a políticas sociais, e
cada vez mais a elementar sobrevivência familiar. No quadro do que as Nações Unidas
têm qualificado de jobless growth, o desemprego surge não mais da ausência de
crescimento, mas da própria forma de crescimento. Para os países mais avançados, o
avanço tecnológico desloca empregos por exemplo das linhas de produção para
atividades de design, gestão, advocacia, contabilidade, marketing – os chamados
intangíveis – equilibrando parcialmente o processo. Nos países em desenvolvimento e no
mundo em geral, a dinâmica se inverte, pois não só as pessoas têm pouco acesso ao
134 O estudo sobre tendências demográficas do planeta apresentado pelo FMI projeta para os próximos anos
um aumento anual de 76 milhões de pessoas, 95% do qual em regiões pobres. IMF, Finance and
Development, September 2006. 135 No período de 2000 a 2004 a Rússia era responsável por 32% da exportação de armas (vendendo velhos
estoques), os Estados Unidos por 31%, a França 8%, a Inglaterra 5%, este grupo sendo responsável por tres
quartos das exportações declaradas. A China representa apenas 2%. O Relatório sobre o Desenvolvimento
Humano 2005, que traz estes números (p. 293, tabela 23) alerta para o grande volume de exportações não
registradas. A economia ilegal constitui um imenso setor mal estudado, que navega com facilidade no
espaço global descontrolado. A pseudo-legalidade também floresce: o Japão e a Islandia matam baleias a
pretexto de pesquisá-las para a sua proteção. Nunca houve tanta pesquisa.
80
estreito segmento de empregos de ponta gerados pelas novas tecnologias tão protegidas,
como as empresas locais sofrem a inundação de produtos gerados com muita tecnologia e
pouca mão de obra, e que substituem a produção local. O processo de produção da Nike
nos Estados Unidos é neste sentido esclarecedor: poucos e nobres empregos nos EUA,
emprego precário na Indonésia, e invasão de produtos importados que geram desemprego
na indústria de calçados em Franca, para dar um exemplo.
O impacto acumulado destas tendências gera uma tensão muito mais ampla, e esta sim
bastante estudada no planeta: a distância entre ricos e pobres. O grande drama,
naturalmente, é que enquanto a capacidade de extração de riqueza e renda por parte das
grandes corporações se expandiu de forma muito acelerada com as novas tecnologias, os
poucos instrumentos de redistribuição de renda e de políticas sociais se viram pelo
contrário desmanteladas. Temos fortíssimas corporações mundiais para extrair a renda,
mas não temos governo mundial para redistribuí-la.136
A assimetria dos avanços tecnológicos no mundo, atingindo inclusive de forma negativa
grande parte da população mundial; a disritmia entre o avanço corporativo e o
desenvolvimento de mecanismos reguladores correspondentes; o impacto profundamente
desigual sobre o emprego, gerando uma nova hierarquia entre empregos de ponta,
emprego precário, atividades informais e atividades ilegais – estas três macrotendências
convergem para a desigualdade crescente no planeta e entre ricos e pobres em cada país.
Um excelente balanço encontra-se no estudo The Inequality Predicament, elaborado pelo
Conselho Econômico e Social da ONU, dez anos depois da cúpula mundial de
Copenhague. A apresentação vai muito além do conceito de pobreza, envolvendo
amplamente os “indicadores não econômicos de desigualdade”.
No plano da desigualdade econômica, o resultado é que “as análises dos padrões de
desigualdade sugerem que a desigualdade de renda e consumo entre países se manteve
relativamente estável durante os últimos 50 anos”, o que em si é impressionante, dados os
imensos avanços nos meios técnicos disponíveis neste período. Houve um avanço na
situação da parte mais pobre da população. No entanto, “aprofundando a análise, a
imagem que emerge não é tão positiva. Primeiro, a maior parte da melhoria na
distribuição de renda no mundo pode ser explicada pelo rápido crescimento econômico
da China e, em menor proporção, da Índia, com boa parte da mudança refletindo os
ganhos dos segmentos mais pobres da sociedade às custas dos grupos de renda média
nestes dois países. Segundo, a participação dos 10% mais ricos da população mundial
136 Os lucros das corporações têm sido atribuidos à eficiência da sua gestão, o que gera uma imagem
positiva. O estudo das raízes do lucro corporativo constitui outra área de pesquisa em desenvolvimento. A
extração de um barril de petróleo na Arábia Saudita custa 2 dólares, as empresas vendem-no a 60 dólares.
Não é eficiência de gestão que está no centro, e sim a força política. Os lucros das grandes instituições de
especulação financeira estão diretamente ligados ao controle dos processos tecnológicos e às facilidades
oferecidas pelos paraisos fiscais. Vende-se produtos dezenas de vezes mais caro do que o custo de
produção, simplesmente porque se criou a “griffe” correspondente. Outras atividades geram lucro
aproveitando as fragilidades dos sistemas jurídicos. Na ausência de governança global, as corporações
globais navegam praticamente sem controle. Para quem não entende o mecanismo, a tendência é achar que
quem ganha muito dinheiro deve ser bom.
81
aumentou de 51,6% para 53,4% do total da renda mundial. Terceiro, quando tiramos a
China e a Índia da análise, os dados disponíveis mostram um aumento da desigualdade de
renda devido ao efeito combinado de disparidades mais elevadas de renda dentro dos
países e do efeito distributivo adverso do aumento mais rápido da população nos países
mais pobres. Quarto, o “gap” de renda entre os países mais ricos e os mais pobres
aumentou nas décdas recentes”.137
No plano da desigualdade econômica interna dos países, os dados da World Income
Inequality Database (WIID) mostram que a desigualdade de renda interna dos países
diminuiu durante as décadas de 1950, 1960 e 1970 na maioria das economias
desenvolvidas, em desenvolvimento e de planejamento central. Desde os anos 1980, no
entanto, este declínio se tornou mais lento ou se estabilizou, e dentro de numerosos países
a desigualdade esta crescendo de novo. É igualmente novo o crescimento da desigualdade
em países desenvolvidos: “Um estudo da evolução da desigualdade econômica em nove
países da OCDE confirma em geral a visão de que ocorreu um deslocamente significativo
na distribuição de renda em todos os países analisados, com a posssível exceção do
Canadá”.138
A América Latina continua bem representada: “Uma característica que distingue o padrão
de desigualdade interna na América Latina das outras regiões é a participação dos 10%
das famílias mais ricas na renda total.”...”O fosso mais profundo situa-se no Brasil, onde
a renda per capita dos 10% mais ricos da população é 32 vezes a dos 40% mais pobres.
Os níveis mais baixos de desigualdade de renda na região podem ser contrados no
Uruguay e na Costa Rica, países onde as respectivas rendas per capita dos 10% mais ricos
são 8,8 e 12,6 vezes mais elevadas do que as dos 40% mais pobres”.139
Onde progressos foram constatados, foi graças a programas de combate à pobreza: “No
nível global um progresso considerável foi feito na redução da pobreza durante as últimas
duas décadas, em grande parte como resultado de programas e políticas anti-pobreza mais
focados”...”Os avanços feitos na China e na Índia contribuiram substancialmente para
uma imagem positiva no nível global. Como estes dois países representam 38% da
população mundial, a rápida expansão das suas economias levou a uma redução
significativa do número de pessoas que vivem em pobreza absoluta no mundo; entre 1990
e 2000 este número baixou de 1,2 bilhão para 1,1 bilhão. Na China, a proporção de
pessoas vivendo com menos de 2 dólares por dia caiu de 88% para 47% entre 1981 e
2001, e o número de pessoas que vivem com menos de 1 dólar por dia caiu de 634
milhões para 212 milhões. Na India, a proporção dos que vivem com menos de 2 dólares
por dia baixou de 90% para 80%, e o número dos que vivem em extrema pobreza baixou
137 UN – Department of Economic and Social Affairs – The Inequality Predicament: report on the world
social situation 2005 - United Nations, New York, 2005, p. 44 – A tabela de apoio mostra que no período
de 1960-1962 a 2000-2002, o PIB per cápita dos 20 países mais ricos passou de 11.417 dólares para 32.339
dólares (dólares constantes de 1995), enquanto a média equivalente para os 20 países mais pobres passou
de 212 dólares para 267 dólares. (Tabela III.2, p. 45). 138 Idem, p. 48 139 Idem, p. 49-50
82
de 382 para 359 milhões”. O impacto positivo principal, portanto, é claramente devido à
China. 140
O nosso interesse principal aqui, mais do que nas cifras e nos respectivos dramas, está no
fato de elas representarem claramente a necessidade de intervenções afirmativas,
organizadas, para enfrentar a pobreza. E como a desigualdade constitui o principal
problema hoje – junto com a destruição do meio-ambiente – a ciência econômica tem de
concentrar esforços muito mais amplos na compreensão das políticas ativas de combate à
pobreza.
Um segundo ponto, é que não basta olhar para os mecanismos econômicos, pois a
desigualdade constitui um processo muito mais amplo. “Talvez ainda mais importante do
que os crescentes níveis de pobreza é a emergência e encrustamento (entrenchment) de
novos padrões de pobreza em numerosos países. Mudanças dignas de nota incluem uma
tendência crescente para o rodízio das pessoas para dentro e para fora da pobreza, um
aumento da pobreza urbana e a estagnação na pobreza rural, bem como um aumento na
proporção de trabalhadores informais entre os pobres urbanos e grande parte dos pobres
desempregados.(...)De todas as desigualdades dentro e entre nações, a impossibilidade de
uma parcela crescente da população do mundo que busca emprego de encontrá-lo
constitui talvez o fato de implicações mais profundas”.141
Não só precisamos olhar para as dinâmicas sociais de maneira mais ampla, como temos
de voltar a dar uma importância central para a organização de processos decisórios
participativos: “A agenda do trabalho decente visa enfrentar numerosos desafios que
surgem da globalização, inclusive a perda de emprego, a distribuição iníqua dos
benefícios, e a desorganização (disruption) que foi causada na vida de tantas pessoas.
Responder a estes desafios exigirá a participação de atores em todos os níveis”.142
O desafio maior continua muito próximo do que Samir Amin já apresentou há décadas: a
economia se globaliza, enquanto os instrumentos de intervenção continuam nacionais. Os
sistemas internacionais de regulação como a ONU, FMI e outros continuam sendo
instrumentos de resolução parcial de problemas entre nações – não temos nada que se
assemelhe a um governo mundial. A formação de blocos é um paliativo, ou um caminho
para a construção mais ampla. Os Estados Unidos se apresentam claramente como
candidatos a “regulador mundial”, mas uma nação mandar nas outras claramente não é a
solução.
Aparece um eixo interessante de alternativas no conjunto das iniciativas ligadas ao Fórum
Social Mundial. É a primeira tentativa planetária de se construir um sistema de proteção
do planeta e de reorientação dos rumos do desenvolvimento, e envolve dezenas de
milhares de organizações da sociedade civil, com crescente – ainda que frágil – presença
140 Idem, p. 51 141 idem, p. 54-55 142 idem, p. 58 – O Relatório não tem dúvidas quanto à necessidade de políticas organizadas de intervenção:
“O mercado global opera com vantagens para os países mais ricos; os países pobres têm menos chances de
se beneficiarem com a globalização, e são mais vulneráveis aos seus riscos e erros”.(p. 43)
83
nas decisões dos respectivos países e das organizações internacionais. O que tem
aparecido na imprensa em geral é o evento anual, e com profunda deformação, mas a
realidade é que se está constituindo uma rede interativa extremamente ágil de defesa de
direitos, de denúncias de manipulação da mídia, de informações ambientais – a lista é
interminável – que está gerando um espaço de articulação global novo.
Em outro nível, há pesquisas que se debruçam sobre a construção de uma rede interativa
planetária nas mais variadas áreas: hoje qualquer hospital médio tem acordos de
intercâmbio de médicos, as universidades estão criando redes de cooperação científica – a
PUC de São Paulo teve em um ano 1600 ações de cooperação internacional – as cidades
estão se constituindo em redes que permitem intercâmbio de inovações de gestão e assim
por diante. Assim, ainda que nossa atenção na área da economia mundial continue a se
concentrar nos ministérios de relações exteriores, no comércio internacional, nas
corporações transnacionais e nas organizações multilaterais, a conectividade moderna
está gerando um tecido econômico mundial extremamente denso de micro-relações
internacionais originadas em milhões de instituições.
Uma análise desta evolução é apresentando no livro Re-imagining Political
Community¸que trabalha na linha da teoria política da democracia internacional.143
Antes de tudo, temos o fato maior da ausência de mecanismos internacionais e
democráticos de decisão: “Mesmo que a democracia tenha conseguido reultados
significativos no processo de governança do Estado, ainda deixa de ser aplicada na gestão
de relações entre Estados no que se refere a problemas regionais e globais”. O problema
da governança global emerge assim como uma questão central: “Hoje a comunidade
internacional busca desesperadamente um novo equilíbrio político global. Para alguns, o
ideal seria uma ordem mundial onde algumas centenas de grandes empresas ditassem as
normas destinadas a avançar os seus próprios interesses a um painel de Estados fortes e
poderosos...O equilíbrio de poder deslocou-se em favor do capital, relativamente tanto
aos governos nacionais como aos movimentos trabalhistas nacionais. Como resultado, a
autonomia dos governos democraticamente eleitos tem sido crescentemente restringida
por fontes de poder econômico não representativas e não eleitas”. Os autores citam uma
declaração do chefe da Coca-Cola sobre este “deslocamento de poder”: “Para dizê-lo
candidamente, eu acredito que este deslocamento levará a um futuro em que as
instituições com a maior influência serão de longe as empresas”. É a corporação
assumindo o seu papel de poder político dominante.144
A esperança dos autores vai no sentido do potencial da conectividade da imensa
diversidade de instituições: “As questões colocadas pelo rápido crescimento de
complexas inter-conexões e inter-relações de estados e sociedades, e pela evidente
intersecção de forças e processos nacionais e internacionais, continuam amplamente
143 Trabalho organizado por Daniele Archibugi, David Held e Martin Köhler – Re-imagining Political
Community: Studies in Cosmopolitan Democracy, Stanford University Press, California 1998. As citações
são extraídas essencialmente das contribuições de David Held e de James Rosenau 144 Idem, páginas 18 e 42
84
inexploradas”, e coloca-se a questão de “a que ponto o estado-nação pode continuar no
centro do pensamento democrático”.
Esta visão aponta para processos democráticos a partir da base da sociedade: “Já que as
necessidades e desejos da população se exprimem mais efetivamente através de ação
organizada, a explosão organizacional do nosso tempo não é menos importante do que a
explosão demográfica...A proliferação das organizações penetra todos os níveis de
atividade humana – das organizações de bairro, grupos comunitários, redes regionais,
Estados nacionais e regimes transnacionais até o sistema internacional”.
Emerge assim uma outra filosofia de ordenamento das instituições: “Para adquirir a
legitimidade e apoio de que necessitam para durar, é mais provável que mecanismos de
governança que funcionem evoluam a partir de baixo do que a partir de cima. Como tais,
como mecanismos que conseguem gerar o consentimento dos governados, são sistemas
auto-organizáveis, arranjos de direcionamento que se desenvolvem através das
necessidades compartilhadas dos grupos e com a presença de desenvolvimentos que
levam à geração e aceitação de instrumentos compartilhados de controle.” Na visão dos
autores, trata-se de apoiar esta dinâmica de forma organizada. 145
Assim, a agenda teórica da economia mundial nos leva para a questão da governança
democrática planetária, com a elaboração de propostas políticas pro-ativas, enfrentando
as duas principais macrotendências do sistema que é a deterioração ambiental e a
desigualdade, aliás fortemente articuladas. Os elementos que constituem o processo de
globalização – financeirização da economia, hierarquização do trabalho, poder
corporativo, concentração do controle mundial da informação e outros – precisam ser
trabalhados nesta linha de reconstrução dos eixos críticos de sobrevivência. A
fragilização da ONU, em particular, nesta fase em que se avolumam ameaças globais, e
em que necessitamos vitalmente de processos democráticos de decisão, simplesmente
assusta.
Com a globalização da economia sem a correspondente globalização dos mecanismos
democráticos de decisão, é uma imensa parte das atividades econômicas que escapa a
qualquer controle. A expansão de organizações da sociedade civil que agem no espaço
planetário e buscam articular os interesses sociais compensa apenas parcialmente o vazio
institucional criado.
17 – O paradigma da colaboração
O deslocamento sísmico mais importante na teoria econômica se refere ao gradual
esgotamento da competição como principal instrumento de regulação econômica, além de
145 Vale a pena ver o original: “In order to acquire the legitimacy and support they need to endure,
successful mechanisms of governance are more likely to evolve out of bottom-up than top-down processes.
As such, as mechanisms that manage to evoke the consent of the governed, they are self-organizing
systems, steering arrangements that develop through the shared need of groups and the presence of
developments that conduce to the generation and acceptance of shared instruments of control” - p. 33
85
principal conceito na análise da motivação, da força propulsora que estaria por trás das
nossas decisões econômicas.
A visão herdada, é que se nos esforçarmos todos o máximo possível para obter o máximo
de vantagem pessoal na corrida econômica, no conjunto tudo vai avançar mais rápido.
Misturando a visão de Adam Smith sobre a soma de vantagens individuais, de Jeremy
Bentham e Stuart Mill sobre o utilitarismo, e de Charles Darwin sobre a sobrevivência do
mais apto, geramos um tipo de guerra de todos contra todos, o que os americanos
chamam de global rat race, que está se esgotando como mecanismo regulador, e que está
inclusive nos levando a impasses planetários cada vez mais inquietantes.
O que está despontando com cada vez mais força, é que somos condenados, se quisermos
sobreviver, a desenvolver formas inteligentes de articulação entre os diversos objetivos
econômicos, sociais, ambientais e culturais, e consequentemente formas inteligentes de
colaboração entre os diversos atores que participam da construção social destes objetivos.
O deslocamento sísmico consiste na gradual substituição do paradigma da competição
pelo paradigma da colaboração.
Hazel Henderson conta como “entrou” para a economia. Em Nova Iorque os
apartamentos eram equipados com pequenos incineradores. Resolvia problemas
individuais, mas o resultado era roupa suja nos varais de todos, crianças sujas nos parques
onde a poeira negra se depositava, doenças respiratórias, etc. Quando protestou junto às
autoridades, foi-lhe explicado que os incineradores geravam empregos, dinamizando a
economia. Hazel ficou perplexa: construir com muito esforço coisas inúteis ou nocivas, é
bom porque dinamiza a economia? E o esforço das mães que lavam a roupa e os filhos
não é custo porque não custa? Não foi a máquina econômica que acabou com os
incineradores, e sim o movimento de mães organizadas em torno aos seus interesses.
Hazel se voltou para a economia, chegando gradualmente à visão que hoje expõe no seu
livro Construindo um mundo onde todos ganhem, em torno do hoje popular conceito de
win-win.146 A idéia básica é simples, e se reflete na popular imagem de dois burrinhos
puxando em direções opostas para atingir cada um o seu monte de feno, e que descobrem
o óbvio: comem juntos o primeiro, e depois comem juntos o segundo. Segundo Hazel,
“as redes da atual era da informação funcionam melhor com base em princípios em que
todos ganham (win-win), mas ainda são dominadas pelo paradigma da guerra econômica
global”. 147
146 Hazel Henderson – Construindo um mundo onde todos ganhem (Building a Win-Win World), ed.
Cultrix, São Paulo 1996, www.pensamento-cultrix.com.br 147 id., ibid., p. 293 – É interessante ver também o texto de Daniel Cohen, em La Mondialisation et ses
ennemis, sobre esta defasagem entre a economia real e as instituições: “A melhor maneira, em princípio, de
encontrar uma idéia nova para resolver um problema dado é de coordenar a pesquisa dos que a
desenvolvem e, uma vez realizada a descoberta, colocá-la à disposição de todos. O “bom” modelo de
referência aqui não é o do mercado, mas o da pesquisa acadêmica que recompensa por diversas distinções o
“bom pesquisador”, ao mesmo tempo que deixa as suas descobertas livres para todos. O sistema da
propriedade intelectual conduz a fazer exatamente o contrário. As equipes que competem na mesma área,
por um determinado medicamento por exemplo, não compartem os seus conhecimentos, e uma vez
realizada, a descoberta será a propriedade exclusiva de quem a realizou primeiro. Temos aqui, para o 86
“Construindo um mundo onde todos ganhem explora o cenário e mapeia a colisão entre o
paradigma do crescimento econômico externamente focalizado e tecnologicamente
acionado, que culminou numa guerra econômica global insustentável, e a ascensão de
preocupações globais populares no paradigma emergente e nos movimentos a favor do
desenvolvimento humano sustentável...Uma mudança sistêmica do paradigma de
maximização da competição econômica global e do crescimento do produto nacional
bruto para um paradigma do desenvolvimento mais cooperativo, sustentável – o que, em
épocas mais antigas, teria exigido centenas de anos –, é pelo menos possível no sistema
mundial interdependente e em rápida evolução dos dias de hoje.”148
Há uma dimensão que vai inclusive além da ética no processo: a colaboração para criar
coisas novas ou simplesmente úteis é uma das fontes mais importantes de prazer. O
conceito moderno de liderança, inclusive, evoluiu da visão do chefe que dá ordens para a
visão do coordenador que organiza processos colaborativos. O sentimento de realização
de uma equipe que terminou um trabalho bem feito é muito grande.149
O mundo, naturalmente, não é um mar de rosas, e tende a predominar a esperteza burra
de quem vê nos processos colaborativos uma oportunidade de aumentar as suas próprias
vantagens: a colaboração, para esta gente, consiste em fazer com que os outros colaborem
para os seus lucros. A visão da luta pela sobrevivência do mais apto está sem dúvida
generalizada. Impregna a escola com as suas lutas pelo primeiro lugar ou a melhor nota, a
competição pela sobrevivência que representa o vestibular, aparece em cada programa de
televisão. A idéia é “vencer” os outros, ainda que a batalha seja fútil, e os resultados ruins
para todos.
Vale a pena citar aqui o aporte de David Korten, no seu livro O Mundo Pós-Corporativo.
Korten parte da compreensão que teve das limitações da visão biológica do mundo como
um espaço de competição pela sobrevivência das espécies: na realidade, o pássaro que
come a fruta dissemina a semente, a raiz que nasce precisa dos microorganismos para
assimilar o nitrogênio e assim por diante. Ou seja, a dimensão colaborativa é amplamente
dominante no processo, e assegura que a vida no planeta se desenvolva de forma
sistêmica. Não se “arquiva” a competição, que é real: trata-se de entender a presença
maior da dimensão colaborativa.
mundo moderno, uma idéia que Marx havia enunciado, de uma contradição entre o desenvolvimento das
forças produtivas, aqui da inovação, e o das relações de propriedade” – p. 228 148 Henderson, ibid., p. 19 e 24 149 O texto já mencionado de Frey e Stutzer desenvolve este tema: “As pessoas têm tendência a se sentirem
felizes não só pelo resultado mas também pelo próprio processo...Scitovsky propõe que ‘a diferença entre
gostar ou não gostar do trabalho que se faz pode ser mais importante do que a diferença na satisfação
econômica gerada pelas disparidades na nossa renda’. As pessoas podem também se sentir mais eatisfeitas
ao agirem de maneira correta e ao serem honestas, independentemente do resultado...Assim, a utilidade é
colhida do processo de tomada de decisão mais além do resultado gerado” (“Thus utility is reaped from the
decision-making process itself over and above the outcome generated.”) – Happiness and Economics, op.
cit., p. 153
87
Na visão de Korten, o mercado, dentro de condições muito precisas, pode constituir um
ambiente de colaboração sistêmica, mas não é o que acontece na economia real: “Os
mercados, constituem uma instituição humana notável para agregar as escolhas de muitos
indivíduos para conseguir uma alocação eficiente e equitável de recursos produtivos com
o fim de responder às necessidades humanas. A sua função, no entanto, depende da
presença de numerosas condições críticas. Reconhecendo o poder do ideal de mercado, o
capitalismo se veste com uma retórica de mercado. Mas busca apenas o seu próprio
crescimento, e assim as suas instituições procuram destruir sistematicamente as funções
saudáveis dedo mercado. Eliminam as regulamentações que protegem os interesses
humanos e ambientais, removem fronteiras econômicas para se colocar além do alcance
do Estado, negam aos consumidores acesso a informações essenciais, buscam
monopolizar tecnologias benéficas, e utilizam fusões, aquisições, alianças estratégicas e
outras práticas anticompetitivas para minar a capacidade do mercado de auto-organizar”.150
A realidade é que a economia está mudando, em geral mais rapidamente do que a nossa
ciência. As atividades hoje se tornaram muito mais amplas, complexas e interativas,
fazendo com que as economias de colaboração, materializadas no capital social, sejam
cada vez mais importantes. Nas grandes empresas, esta necessidade em geral já foi
compreendida, levando à redução do leque hierárquico, à organização de equipes e assim
por diante. A partir dos anos 1980, ampliou-se a compreensão da necessidade de
colaboração já não só dentro da empresa, mas entre empresas, dando lugar a conceitos
como “capitalismo de alianças”, “arranjos colaborativos” inter-empresariais, managed
market e assim por diante.
No plano das empresas, o livro que marcou um deslocamento da visão é Alliance
Capitalism, de Michael Gerlach, que analisa as formas realmente existentes de
colaboração inter-empresarial, em particular no Japão, e sugere que “a teoria econômica
pode e deve enfrentar os limites dos mercados atomizados e anônimos, visando explicar
as formas institucionais que se desenvolveram nas economias modernas para vencer estas
limitações. Particularmente interessante tem sido o papel das contratações de longo prazo
e a organização corporativa como alternativas aos mercados competitivos. Os mercados e
as empresas capitalistas são vistas, assim, não como entidades isoladas que seguem a sua
própria lógica, mas como arranjos institucionais complexos inseridos na ordem legal da
sociedade e nas regras básicas sob as quais os atores operam.”151
Na Terceira Italia formou-se a compreensão de que além dos processos colaborativos
inter-empresariais, seria útil organizar a colaboração com iniciativas públicas e do
Terceiro Setor que podem gerar economias que são externas à empresa, mas internas a
150 David Korten – The Post-Corporate World – Berrett-Koehler, San Francisco, 1999., p. 62 – Edição
brasileira pela Editora. Vozes, Petrópolis, 2003 151 Michael L. Gerlach – Alliance Capitalism – University of California Press, Berkeley, 1992, p. 39 –
Gerlach constata que as trocas propriamente baseadas no espaço anônimo de mercado “na prática se
tornaram raras e limitadas a uma faixa relativamente estreita de transações rotineiras” (p. 41); ver também
os trabalhos de James E. Austin, The collaboration Challenge, publicado pela Drucker Foundation, bem
como a visão institucionalista de Douglass C. North, Institutions, Institutional Change and Economic
Performance, Cambridge University Press, 1990
88
uma região, tornando o trabalho de todos mais produtivo. O livro de Carlo Trigiglia,
citado acima, representa bem esta compreensão do território como espaço de construção
de arranjos colaborativos.
Esta dimensão prática está apoiada em mudanças estruturais dos processos de reprodução
social vistos ao longo deste ensaio. Ao tornar-se o conhecimento crescentemente o
principal fator de produtividade, e já que o conhecimento compartilhado não tira
conhecimento de ninguém, pelo contrário tende a multiplicar-se, a evolução natural não é
a de nos trancarmos numa floresta de patentes e proibições, mas sim de criar ambientes
colaborativos abertos, como vemos por exemplo no caso do Linux, da Wikipedia, ou nas
formas colaborativas da Pastoral da Criança. A guerra baseada no “isto é meu” não tem
sentido quando se trata de conhecimento.
Outra dinâmica que torna a colaboração muito mais presente é a conectividade: é tão fácil
colaborar inclusive entre agentes muito distantes, que a idéia medieval do castelo isolado
e autosuficiente torna-se cada vez mais ridícula, como se torna cada vez mais limitada a
visão da empresa com o seu “capitão” empresário, indo à luta contra todos, trancando os
seus segredos. As redes inter-universitárias de colaboração neste sentido estão
demonstrando caminhos mais inteligentes e modernos, ainda que o grosso do mundo
universitário tenda também a se proteger nas suas torres.
Uma terceria dinâmica está ligada à nossa forma básica de organização demográfica, a
cidade, com o seu entorno rural. Já não somos populações rurais dispersas, e mesmo os
espaços rurais pertencem a um processo de modernização “rurbano”, como têm definido
os pesq uisadores da Unicamp. Neste sentido, como vimos, cada cidade com o seu
entorno passa a constituir uma unidade de acumulação econômica que será mais ou
menos produtiva, como sistema, segundo consiga ou não organizar-se num espaço
colaborativo e coerente dentro do seu território e na região onde está situada.
Enfim, uma quarta dinâmica que também vimos acima está ligada ao deslocamento da
composição intersetorial das atividades econômicas, cada vez mais centradas em políticas
sociais como saúde, educação, cultura, informação, lazer e outras. Estas atividades, muito
mais do que a produção industrial, envolvem processos colaborativos intensos, não se
regulam adequadamente pelo lucro, e dependem vitalmente da constituição do capital
social e de processos participativos de decisão. A resitância a formas mais modernas de
gestão é natural. Anos atrás, houve grandes lutas contra a vacinação obrigatória das
crianças, em nome da liberdade de cada um decidir segundo as suas preferências.
Naturalmente, vacinar uma parte da população não erradica doença alguma.
Estas quatro macro-tendências, da economia do conhecimento, da conectividade, da
urbanização e da primazia do social, geraram condições profundamente renovadas no
conjunto do processo de reprodução social, e as velhas práticas que privilegiam a
competição, o segredo, os clubes fechados, constituem simplesmente a aplicação de uma
ideologia econômica antiga a uma realidade nova. Ou seja, o paradigma da colaboração,
além de constituir uma visão ética, e de materializar valores das pessoas que querem
gozar uma vida agradável, trabalhar de maneira inteligente e útil, em vez de ter de matar 89
um leão por dia, – constitui hoje bom senso econômico em termos de resultados para o
conjunto da sociedade.
Voltando ao princípio, à “rentabilidade social” de que fala Celso Furtado, a colaboração
tem de se dar em torno ao objetivo simples da alocação racional de recursos em função da
qualidade de vida social.
Hoje sem dúvida as grandes empresas de medicamentos têm entre elas arranjos
colaborativos que lhe permitem realizar lucros fabulosos, ao restringirem acesso à livre
fabricação das drogas, o que por sua vez permite elevar os preços. Os banqueiros no
Brasil colaboram intensamente na manutenção de um sistema de restrição ao crédito, de
juros elevados e de tarifas caríssimas, o que lhes permite drenar grande parte da riqueza
produzida pela sociedade, sem precisar contribuir para produzí-la. Os grandes grupos da
mídia colaboram com as grandes empresas que compram espaço publicitário, e adaptam
o conteúdo da informação aos interesses empresariais. Os exemplos não faltam deste tipo
de círculos fechados em torno de interesses minoritários.
Putnam resume bem a questão, no seu Bowling Alone já citado, ao lembrar que a Ku Klux
Klan é uma organização da sociedade civil, mas cujo objetivo é excluir um segmento da
sociedade, em vez de incluir de forma equilibrada os diversos interesses. Isto não é
colaboração, é corporativismo na sua pior manifestação. Ou seja, a construção dos
processos colaborativos mecessários a uma economia moderna passa por romper os
diversos tipos de fortificações que constituem os cartéis, trustes e outros clubes de ricos
que desequilibram o desenvolvimento. Não há como escapar à busca ativa de processos
econômicos mais democráticos, descentralizados e paticipativos.
Korten busca soluções na articulação dos espaços de desenvolvimento local, onde os
agentes econômicos se conhecem e podem construir sistemas colaborativos: “Resolver a
crise depende da mobilização da sociedade civil para resgatar o poder que as corporações
e os mercados financeiros globais usurparam. A nossa maior esperança para o futuro está
com economias apropriadas e geridas localmente que se apoiem predominantemente em
recursos locais para responder às necessidades de vida locais dos seus membros em
formas que mantenham um equilíbrio com a terra. Um tal deslocamento nas estruturas
institucionais e prioridades poderá abrir caminho para a eliminação da escassez e extrema
desigualdade das experiências humanas, instituindo uma verdadeira democracia cidadã, e
liberando um potencial presentemente não realizado de crescimento e criatividade
individuais e coletivos.”152
Não há soluções simples nesta área, mas o paradigma da colaboração abre sem dúvida
uma visão renovada, onde a simples competição não resolve, e os mercados se tornaram
cada vez menos operantes. A visão renovada envolve o resgate do planejamento,
mecanismos de gestão participativa local, articulações inter-empresariais, e também
mecanismos tradicionais de mercado onde ainda sejam úteis, além de mecanismos de
concertação internacional cada vez mais necessários, apontando no conjunto para uma
152 - Korten, op. cit. p. 7
90
articulação diversos mecanismos de regulação em vez das alternativas simplificadas em
torno do estatização versus privatização. 153
A nossa intuição simplificada – aqueles argumentos não explicitados mas poderosos que
temos em algum lugar profundo da nossa cabeça – nos sugere que a política não
funcional, e que a economia de mercado, ao definir regras de jogo iguais para todos os
agentes econômicos, ainda constitui o melhor mecanismo de regulação. A realidade é que
a própria política está mudando, evoluindo para a democracia participativa, enquanto os
mecanismos de mercado sobrevivem em espaços cada vez mais limitados da economia
tradicional, substituídos pela força das articulações corporativas. A democracia
econômica constitui um complemento necessário que pode racionalizar tanto a política
como a economia.
18 – A economia das organizações da sociedade civil
O paradigma da colaboração tem se materializado particularmente nas organizações da
sociedade civil, no chamado “terceiro setor”, área que engloba um conjunto de
comportamentos que não se definem pelos paradigmas tradicionais da busca do lucro ou
da autoridade estatal.
A fragilidade das definições conceituais nesta área começa já com o nome colocado
acima, “sociedade civil”. Não entraremos neste debate, pois a enorme diversidade de
atividades colocadas sob esta etiqueta desafia qualquer definição precisa. Basta dizer aqui
que nos referimos às organizações da sociedade civil, organizações não governamentais,
organizações comunitárias e assim por diante. Na realidade, continuamos a definir toda
esta área pelo “não”, seja na nossa terminologia (não-governamental) ou na terminologia
americana (non-profit, portanto não empresarial), ou ainda no conceito de “Terceiro
Setor” (portanto nem Estado nem empresa). Até estas diversas áreas de atividade que
surgem com força adquirirem formatos mais claros, serão definidas relativamente às
entidades que entendemos de maneira razoavelmente clara,– o Estado e a empresa –
ainda que por exclusão.
Para os economistas, esta área é um incômodo. O Estado tem uma lógica definida pelo
direito público administrativo. O seu produto é contabilizado através de quanto custa. As
empresas têm outra lógica, mas igualmente clara, que é de ganhar dinheiro, regem-se pelo
direito comercial, e a sua contribuição é avaliada pelo valor agregado. O Terceiro Setor
perturba estas lógicas. As suas iniciativas nascem do movimento espontâneo de um grupo
de pessoas preocupadas com um problema social que não encontra soluções aparentes
nem no Estado nem na empresa, e que se organizam para dar uma resposta.
Esta área tem uma definição legal muito frágil; apoia-se em legislação referente às
associações sem fins lucrativos, em alguns casos adquire forma de Oscip (Organizações
da Sociedade Civil de Interesse Público), em outros pode adotar a forma de uma
cooperativa, em outras ainda de empresa auto-gerida, na linha de um novo eixo que tem
153 - O argumento da articulação dos mecanismos de regulação foi desenvolvido no nosso A Reprodução
Social, vol. II
91
sido chamado de economia solidária.154 Somar os seus custos nem sempre é
representativo, pois apoia-se fortemente no voluntariado, em doações de diversos tipos.
Avaliar o seu produto é mais complexo ainda: o Greenpeace desempenha uma imensa
função de proteção ambiental, mas como não monetizamos o meio ambiente, sequer
saberíamos definir o valor do que se salva. Ninguém contabiliza a contribuição da
Pastoral da Criança para o PIB, e no entanto, se somarmos os dias de trabalho que as
famílias deixam de perder, os medicamentos que não precisarão comprar, ou as
hospitalizações evitadas, teremos sem dúvida uma contribuição impressionante para a
produtividade sistêmica de inúmeras regiões. As organizações de direitos humanos
desempenham uma função vital frente à facilidade com a qual os governos ou as
corporações os violam, mas ninguém saberá contabilizar os seus aportes.
Na base da questão, está o fato de que direitos não organizados não se materializam. O
Estado constitui uma entidade estruturada, como é o caso da unidade empresarial. A
sociedade civil pode ser numerosa, mas é dispersa em termos de interesses diversificados,
e sobretudo difusos. Um plebiscito sobre a preservação da Amazônia recolheria
seguramente a quase unanimidade nacional, mas o que predomina é o interesse pontual e
organizado de uma madeireira, ou de uma empresa produtora de soja. O interesse
fortíssimo mas difuso da população não se transforma em ação concreta, a não ser que as
pessoas interessadas numa questão determinada tenham alguém que as represente, faça as
pesquisas correspondentes, divulgue a problemática na mídia, saiba fazer uma
interpelação jurídica. Assim, a flexibilidade de criação de entidades que nos ajudem a
organizar de interesses que são difusos mas essenciais, tornou-se vital para o
funcionamento da sociedade.
A contribuição política deste tipo de instituições tem sido criticada. Uma empresa que fez
um acordo com o prefeito e um grupo de vereadores para desenvolver uma atividade que
gerará empregos, ainda que tendo forte impacto ambiental, acha que não tem mais contas
a prestar. Quem elegeu a associação ambientalista que inventa de protestar? Na
realidade, a força da organização da sociedade civil está no fato de que a sua única força
vem do apio social que desperta. Ocupa o seu espaço não pela força financeira, ou pela
ameaça da multa, mas pelo respeito que merece. Neste sentido é um instrumento
profundamente democrático, que vem complementar de forma essencial os mecanismos
tradicionais de gestão social.
Lester Salamon, da John Hopkins University, enfrentou a tarefa árdua de sistematizar
dados sobre o terceiro setor, orientando uma pesquisa internacional que constitui o estudo
básico que hoje nos permite nos situar. Um primeiro ponto a se levantar é o peso relativo
destas atividades, que muitos ainda vêm como marginal: nos países desenvolvidos,
representam 7% da mão de obra, e se acrescentarmos o voluntariado, chegamos a 10%. É
o equivalente à totalidade da mão de obra industrial nos Estados Unidos, por exemplo,
que hoje emprega menos de 10% dos trabalhadores. Na América Latina, este setor ainda
154 Paul I. Singer – Introdução à Economia solidária - São Paulo, Ed. Perseu Abramo, 2002
92
é fraco, representando respectivamente 2,2% e 3%. Para o Brasil, as cifras
correspondentes são de 2,2 e 2,5. 155
Para muitos, as atividades da sociedade civil organizada simplesmente
desresponsabilizam o Estado das suas obrigações, para outros constituem um “bandaid”
para os desmandos corporativos. Portanto, ao seu “não-lugar” econômico corresponde
também um “não-lugar” político. Estas simplificações têm a ver na realidade com o fato
de projetarmos ainda a nossa guerra ideológica do século XX sobre os novos processos:
de um lado nos aferramos às obrigações do Estado, sem refletir a que ponto são
exequíveis; de outro, como nas visões de Milton Friedmann, trata-se de um desvio do
dinheiro que deveria ir para o bolso dos dirigentes empresariais e dos acionistas. A
realidade é que as fontes de renda das organizações da sociedade civil no Brasil são da
ordem de 15,5% do setor público, 10,7% da filantropia empresarial, e 73,8% de recursos
próprios, oriundos de pagamentos pelos serviços que prestam.156
A subestimação da contribuição produtiva das OSC vem do fato dos seus aportes serem
em grande parte na área da economia não-monetária, e faz parte portanto da deformação
que sofre a medição dos resultados. Quanto nos voltamos para qualidade de vida de
maneira ampla, e não apenas para o aumento do PIB, os impactos são imediatamente
visíveis. Retomando exemplos vistos acima, a Pastoral da Criança pode mobilizar um
volume limitado de recursos, mas se calcularmos os resultados concretos para as crianças
e as suas famílias, inclusive em gastos monetários evitados, o impacto é muito grande; a
pressão de uma comunidade por ter um rio limpo se traduz em lazer, redução de doenças,
e grandes economias pelo fato de ações preventivas serem muito mais baratas do que os
custos de despoluição.
Nos países desenvolvidos, a dimensão das atividades comunitárias é muito maior,
conforme vimos, e também a participação do Estado é muito maior. Como ordem de
grandeza, o setor público contribui com 40% do financiamento das OSC, e o pagamento
pelos serviços prestados representa 50%; a contribuição privada é da mesma ordem que
no Brasil, por volta de 10% do total, portanto bastante marginal. A forte participação do
setor público no financiamento das OSC nos paises desenvolvidos está diretamente ligada
à constatação da produtividade sistêmica excepcional que estas organizações conseguem.
No exemplo visto acima das OSC de intermediação financeira, o fato destas organizações
estarem enraizadas nas comunidades, e serem por elas controladas, torna a aplicação dos
recursos muito mais racional e afinada com as necessidades locais. Em muitos casos,
quando uma comunidade levanta dinheiro para uma iniciativa que considera importante,
o Estado contribui com uma contrapartida, pois sabe que se uma comunidade resolveu
tirar dinheiro do seu próprio bolso é que realmente a ação é necessária. O resultado é que
o dinheiro público assim empregado se torna muito mais produtivo em termos de
resultados práticos para a comunidade.
155 Lester Salamon et al., Global Civil Society: dimensions of the nonprofit sector, p. 387 e ss., dados
correspondentes a 1995 – o capítulo sobre o Brasil, orientado por Leilah Landim, é particularmente
interessante. 156 Idem, p. 404 e 405
93
Um dos pontos importantes nesta área da economia, é a frequente dificuldade de se
avaliar resultados. Um programa cultural de apoio a jóvens poderá parecer uma perda de
dinheiro. Como avaliar a elevação do capital social, do sentimento de auto-estima, ou os
custos evitados? Na linha do que vimos no capítulo 3 acima, ao medirmos a
produtividade sistêmica de um território, poderemos avaliar os resultados. No essencial,
hoje se entende que não bastam as medições quantitativas, nem é real a visão de que só é
resultado concreto o que se pode medir. O cruzamento de avaliações quantitativas e
qualitativas é que permite chegar a uma visão mais realista. E muitos técnicos
desesperados por colocar cifras nos seus relatórios para prestar contas, por exemplo, de
uma iniciativa cultural, poderão simplesmente perguntar às pessoas da comunidade se
estão satisfeitas. A própria satisfação da comunidade é a melhor medida do acerto do uso
dos recursos, não exigindo cálculos complexos de rentabilidade.
A forma mais prática de se conseguir uma alta produtividade das iniciativas da sociedade,
é desenvolver sistemas de informação social para a própria comunidade. Hazel
Henderson nos traz um raciocínio interessante, partindo de um exemplo que nos é
familiar: o engarrafamento de trânsito. Podemos deixar a mão invisível resolver o
problema, ou seja, deixar que cada um se vire como puder. O resultado será
provavelmente um engarrafamento maior segundo as soluções mais óbvias de alternativas
de trânsito. Ou podemos fechar ruas e direcionar o trânsito através de um sistema de
planejamento autoritário. Ou ainda, podemos deixar que cada um faça as suas opções,
mas assegurar que no rádio haja um bom sistema de informação sobre como está o
trânsito em cada região. Esta última opção, que Hazel chama de planejamento indicativo,
deixa ao cidadão a iniciativa, mas assegura que ele possa fazer a melhor opção de
maneira informada, e não às cegas.
A primeira opção gera o caos, e representa de maneira bastante fiel o sistema liberal,
onde cada um busca maximizar as suas vantagens sem estar devidamente informado
sobre as iniciativas dos outros. Gera, por exemplo, o comportamento de manada na área
financeira, onde uma variação de cotações faz com que todos os expeculadores corram na
mesma direção, agravando os desequilíbrios dos quais tentam se proteger. A segunda
opção, de planejamento centralizado, gera uma ordem onde a diversidade dos interesses
dos protagonistas não é levada em conta, e onde o cidadão perde a iniciativa. Gera
sisstemas burocráticos como os que vimos nos países do Leste Europeu, com muita
ordem e pouca iniciativa.
O terceiro sistema parte da visão que o cidadão bem informado saberá tomar iniciativas
que combinam o seu interesse específico com a lógica sistêmica do processo. Em outros
termos, a informação adequada, e bem distribuida, constitui simultaneamente um
instrumento de cidadania e de racionalidade do desenvolvimento.
As sociedades modernas são demasiado complexas para serem ordenadas por um super-poder
autoritário. E os instrumentos tecnológicos que manejamos são demasiado
poderosos para que se possa manter a cultura do vale tudo: seja no uso da energia, ou na
preservação da água, ou nas formas de cultivar um campo, é preciso que cada empresa,
94
cada entidade publica, cada organização da sociedade civil tenha uma visão de conjunto
do que está acontecendo.157
Nos setores tradicionais de produção, o preço representava, e representa ainda em vários
setores, um importante elemento racionalizador. Quem produz um tênis muito caro terá
dificuldades em vender, e deverá portanto se adaptar. Nas áreas muito mais difusas
ligadas à produtividade sistêmica de um território, a informação organizada passa a
representar o instrumento de regulação que o preço representa para o setor tradicional. A
empresa, que dispõe normalmente de informação gerencial, saberá como reduzir os
custos e se adaptar ao mercado. A iniciativa social precisa de sólida informação gerencial
para assegurar a sua própria racionalidade, sob forma de análise sistemática do território:
fontes de poluição, bolsões de pobreza e assim por diante. O fato gritante aqui é que não
dispomos de informações territorializadas e integradas para orientar a ação social no
território.158
Não cabe aqui fazer o resumo da ampla gama de iniciativas que se abre na linha da
economia solidária, das iniciativas da sociedade civil em geral. O importante para nós, é
apontar para uma área ampla da economia cujas dimensões econômicas ainda estão por
ser compreendidas, e que claramente obedece a mecanismos de regulação diferentes tanto
do Estado tradicional como da empresa privada.
Se associarmos a expansão deste setor de atividades com as dinâmicas estruturais que
sustentam o paradigma da colaboração visto acima – urbanização e expansão do consumo
coletivo; tecnologias da informação e conectividade social; expansão das políticas sociais
que favorecem processos descentralizados e participativos; e primazia da economia do
conhecimento que privilegia intercâmbios – concluímos que se trata não de uma sub-processo
menor do setor público, mas do resgate, por parte das comunidades, de um
mínimo de sentido na organização dos esforços sociais. Entre a burocracia do Estado
centralizado e a truculência dos interesses corporativos, há espaço para vida inteligente.
Podemos ir além neste raciocínio: Nas análises que realizamos de milhares de iniciativas
que estão dando certo, constatamos que a esmagadora maioria envolve não só a sociedade
civil organizada, como parcerias entre estas e os setores tradicionais público e privado.
Em outros termos, as organizações da sociedade civil constituem um poderoso articulador
social, servindo como lastro de bom senso e de racionalidade para um conjunto muito
mais amplo de atividades.
Quando olhamos experiências de organização social que claramente estão dando certo,
desde Kerala muito pobre até a Suécia ou o Canadá muito ricos, o denominador comum é
uma sociedade civil organizada e exigente, que obriga o Estado a prestar contas do
157 A informação bem organizada e disseminada constitui um elemento essencial da democracia
participativa, ao facilitar as opções racionais dos diversos atores sociais. Mas não substitui a iniciativa do
Estado e o planejamento estratégico. No exemplo acima sobre engarrafamento, um bom planejamento do
transporte coletivo teria simplesmente prevenido o problema. 158 Partindo do exemplo acima de Hazel Henderson, desenvolvemos uma série de propostas práticas no
nosso Informação para a Cidadania e o Desenvolvimento Sustentável, in http://dowbor.org sob “Artigos
online”.
95
destino dos recursos, e cria um ambiente onde as empresas privadas se vêm obrigadas a
respeitar os interesses sociais e ambientais da região onde se implantam. As organizações
da sociedade civil, neste sentido, são cada vez mais indispensáveis.
Em termos de democracia econômica, a contribuição é essencial. É muito mais fácil
manipular indivíduos isolados, ainda que sejam milhões, do que interesses sociais
organizados. À medida que os mecanismos de concorrência de mercado são substituídos
por oligopólios, cartéis e semelhantes, com poder planetário – grande parte das maiores
economias do mundo são hoje empresas, e não países, com dirigentes que ninguém
elegeu – a expressão organizada dos interesses da sociedade torna-se indispensável ao
funcionamento da própria economia.
19 – A ética na economia
A base ética da era da competição é simples: quem ganha merece o que ganhou,
conquanto tenha respeitado as regras do jogo. A ética na era da competição estaria
contida no próprio processo produtivo: quem ganha na competição tem naturalmente
direito à vantagem, e esta vantagem seria legítima, direito do ganhador. A soma das
vantagens individuais daria o máximo de vantagem social. Duas simplificações radicais
relativamente ao mundo realmente existente. O problema é que os grandes vencedores se
tornaram suficientemente fortes para ir mudando as regras, tornando-se assim mais fortes
ainda. Não é mais jogo, quando o mais forte também dita as regras.
Se quem ganha merece, elude-se o problema do resultado final. Mas se num jogo a banca
sempre ganha, há algo de errado com as cartas. E quando olhamos para o resultado final
do jogo econômico, onde o planeta é literalmente pilhado e sempre em proveito dos
mesmos, há realmente algo errado. A economia livra-se do problema ético ao separar os
processos econômicos dos resultados. Se morrem 6 milhões de Aids, e não podem
comprar o remédio, o problema é dêles; porque não se organizaram para serem ricos e
poderem pagar o “coquetel” de remédios? Morrem quatro milhões de crianças por ano
porque não têm acesso à água limpa? Ora, as regras do jogo é que quem é melhor, ganha.
Ao vencedor, as batatas. São 435 famílias que hoje somam uma fortuna superior à renda
de 3 bilhões de pessoas, a metade mais pobre da população mundial.
A importância da pequena fraude que constitui o banco da Suécia ter inventado de
colocar o nome de Nobel no seu prêmio, é que o verdadeiro Nobel está associado com
ciência, com descoberta de leis, de “verdades”. Isto faz com que a ciência econômica
possa parecer objetiva no sentido mais profundo, obedecendo a mecanismos objetivos
como a química ou da física. O passo seguinte, naturalmente, é que qualquer barbaridade
pode ser justificada porque não depende da maldade de ninguém, é uma “lei”. E os
economistas passam a se apresentar como cientistas que entendem as “leis”, sacerdotes
que vêm claro onde os outros se sentem confusos. Se vários sacerdotes interpretam a
realidade de forma contraditória, não tem importância: isto mostra como é profunda e
complexa a matéria. A verdade é que não há nada de complexo numa criança que morre
de fome, ou por falta de água limpa. Temos o conhecimento, os recursos e a capacidade
de organização para remediá-lo em pouco tempo, mas isto seria infringir as regras do
96
jogo. Além disto, qualquer ajuda poderia levar os pobres ao ócio, coisa que os ricos
acham revoltante.
Os economistas não são cientistas que pesquisam leis da natureza, são pessoas que
estudam mecanismos baseados em práticas sociais que se estabelecem em função do
poder político dos diferentes agentes econômicos. A economia funciona segundo
determinadas regras do jogo, mas as regras do jogo são pactuadas em condições desiguais
de poder. Não há nenhuma lei econômica que determine que o professor primário do
ensino público ganhe o que ganha no Brasil, nem que os intermediários financeiros num
momento histórico determinado estejam enchendo os bolsos na mesma medida em que
travam a economia. A única lei que funciona aqui, é a lei do mais forte. E como a
economia escapa do processo de decisão democrática, não há contrapeso.
É claro que existem sim mecanismos que o simples bom senso ensina, e que devem ser
ensinados e respeitados. Se uma pessoa é muito pobre, não terá acesso à educação, logo
não conseguirá um bom emprego, e continuará pobre, com exceção do 1% que por algum
milagre ou dotes excepcionais conseguirá subir na vida e será objeto de reportagens. Se
houver uma safra ruim de arroz, haverá menos arroz no mercado, o que permitirá aos
intermediários elevar os preços, porque o jogo da oferta e da procura existe, e existiu
inclusive muito antes do capitalismo, em qualquer mercado do Oriente. Estudar estes
mecanismos, identificar propensões, é interessante, mas não há nada de muito novo a se
“descobrir” nestes processos. Stiglitz ganhou o “Nobel” de economia por mostrar que os
agentes econômicos têm acesso desigual à informação, o que é verdadeiro, mas não
constitui precisamente uma descoberta. Os advogados também estudam a fundo as
complexidades jurídicas, passam a entender mecanismos que outros não entendem,
chegam a conclusões inversas segundo os interesses de quem os contrata, e nem por isso
alguém vai inventar um prêmio Nobel de advocacia.
O emaranhado de explicações contraditórias que encontramos na economia resulta mais
da diversidade dos interesses do que da complexidade dos próprios fenômenos. O
sindicato dos bancários explica os mecanismos que os bancos adotaram para generalizar
juros extorsivos no país. O economista da Febraban responde com uma lista
impressionante das dificuldades de se oferecer crédito no país, utilizando um raciocínio
rigorosamente inverso, também apresentado como análise econômica objetiva. O governo
que quer manter o pacto não declarado entre os banqueiros, o Banco Central e o
Ministério da Fazenda, explica que tudo isto na realidade é para proteger a população
brasileira de um novo surto inflacionário. No lado científico, Singer mostra, conforme
vimos, que com este nível de juros os processos produtivos são encarecidos, e que
portanto esta taxa, em vez de combater a inflação, a estimula. Amir Khair mostra que
nesta era da economia aberta, e com os produtos da China às nossas portas, não há como
agitar a ameaça da inflação. O sindicato fica com as suas queixas, os bancos com os seus
lucros, o governo com os votos, e os pesquisadores com as suas idéias, respeitadas mas
não veiculadas. Onde estão as leis econômicas nisto? As leis...
O que realmente é válido aqui, é que se as regras existentes dilapidam os recursos do
planeta e excluem uma imensa massa da população do acesso a uma vida digna, estão
98
trata-se de um problema criminal. E se foi conseguido por métodos legais, é legítimo, e
portanto tampouco se coloca o problema ético.
Há uma imensa literatura acumulada sobre isto, desde Adam Smith, passando pelos
utilitaristas e chegando às bobagens do “Free to Chose” de Milton Friedman. Todo este
arcabouço teórico, no entanto, está baseado em premissas que deixaram de existir. Na
base, estava o mecanismo de mercado, com livre concorrência, ou seja, com nenhum ator
suficientemente dominante para “fazer” o mercado, com livre fluxo de fatores, com
transparência da informação, com as trocas se fazendo abertamente no “mercado”. Na
jogo limpo, os resultados também o seriam. E um Estado regulador asseguraria que todos
respeitem as regras do jogo.
Temos, é claro, alguns problemas com este raciocínio. Primeiro, porque se imagina que
as regras do jogo são escritas por uma representação política legítima, sem interferência
dos próprios grupos econômicos. Como na realidade a representação se dá hoje por
eleições onde o dinheiro impera, aprova-se a lei que a empresa deseja. O fato da
legalidade ser viciada pode ser considerado um problema não econômico, mas isto aponta
para outro problema: a economia tende a circunscrever a visão ética à própria atividade
econômica, isolando-a dos efeitos causados nas outras áreas, como por exemplo a
política. Fazer política de maneira sistemática e organizada – gastando com isto rios de
dinheiro, cuja fonte está incluída no preço que o consumidor paga pelo produto – e ao
mesmo tempo dizer que não se é responsável por esta política, é evidentemente
complicado.161
É importante lembrar que pagamos nos produtos que compramos o dinheiro que a
empresa irá transferir para políticos, para poder torcer a democracia ao seu favor. É um
imposto (não há como escapar a esta utilização do nosso dinheiro dentro das regras
atuais) privado que serve para a apropriação da política pelos grupos econômicos. Se
optarmos pelo financiamento público das campanhas, não haverá mudança dos custos,
apenas serão explícitos.
Por outro lado, os próprios processos produtivos geram diversos tipos de impactos sociais
e ambientais que não se pode ignorar, e que são hoje estudados sob o qualificativo de
“externalidades”, como se houvesse nos processos econômicos algo de “externo”. Um
produtor de revólveres de cano curto explica em entrevista que “não é ele que puxa o
gatilho”. Os vendedores de armas do planeta, que hoje inundam a África, por exemplo,
com milhões de sub-metralhadoras, informam que apenas vendem um produto,
respondem à demanda. Os produtores de cigarro explicam que apenas vendem cigarros, e
os governos é que têm de se preocupar com a saúde. A Philip Morris foi até o ponto de
elaborar um relatório para o governo da república Tcheca mostrando que a venda de
161 Yves Dezalay veio aqui preencher um vazio importante, ao estudar a dominação da indústria das leis
pelas corporações que hoje controlam os grandes grupos de prestação de serviços jurídicos: Les Marchands
de droit: la restructuration de l’ordre juridique international par les multinationales du droit (Os
mercadores do direito: a reestruturação da ordem jurídica internacional pelas multinacionais do direito) –
Fayard, Paris, 1992, tese elaborada sob orientação de Pierre Bourdieu.
99
cigarros reduziria os seus gastos com aposentadoria, ao encurtar a vida dos idosos. Ou
seja, teríamos aqui até uma externalidade positiva.
A Rhodia e a Union Carbide se livravam dos organoclorados altamente tóxicos na
baixada santista, “vendendo” o veneno a donos de caminhões da região dispostos a jogar
o produto em qualquer canto, no Vale dos Pilões entre outros: as empresas com isto se
achavam desresponsabilizadas, apresentaram recibos assinados. Não eram causa direta. A
ética econômica concentrou-se em alongar a cadeia de responsabilidade, até atingir o
ideal, hoje definido cinicamente como plausible deniability, negação plausível de
responsabilidade.
A importância de Stiglitz foi de dar visibilidade a outro mecanismo que deforma
completamente as regras do jogo, que é a desigualdade no nível de informação dos
diversos agentes econômicos. Isto vale tanto para a produção fabril quanto para os
produtos químicos, os conservantes não identificados, o plano de saúde que recomenda
determinado tratamento ou análise, sem falar da intermediação financeira, da forma como
é calculada a nossa conta telefônica, dos custos advocatícios e tantos outros.
O simples poder de uma grande corporação, com os seus recursos financeiros, empresas
de advocacia, acesso à mídia e ao judiciário, desequilibra radicalmente a relação de
forças. Assim os mecanismos “de mercado” se transformam em processos conscientes de
organização de privilégios, com pactos políticos, acordos inter-empresariais, acesso à
mídia, controle de partidos e de segmentos do judiciário e assim por diante. O poder
organizado das grandes corporações é incomparavelmente superior ao do cidadão
comum, ou de empresas menores e dispersas. Qualquer pessoa que já tentou sair do
vínculo com uma empresa telefônica sabe o que é a impotência da pessoa frente à
corporação.
Mais importante ainda talvez, é o fato que os processos tecnológicos que dominamos são
cada vez mais poderosos, e geram dramas crescentes. Ou seja, o fato de estarmos
perdendo as rêdeas da política tem consequências cada vez mais graves. É o caso já
mencionado da pesca industrial oceânica, da destruição da cobertura vegetal e de tantos
outros setores. Uma curiosidade: o filme com o peixinho Nemo gerou uma paixão das
crianças americanas em ter um peixinho igual. Em outros tempos, não haveria problema,
o pai compraria outro peixinho. Hoje, com as novas tecnologias, empresas estão
capturando o pobre peixinho em escala industrial no Pacífico, para “abastecer” o mercado
infantil, tornando o Nemo passível de extinção em pouquíssimo tempo. Foi calculado que
em 2005 foram mortos 73 milhões de tubarões, porque os japoneses gostam das
barbatanas. As tecnologias nos permitem fazer as coisas numa escala que gera lucros
impressionantes, mas também processos irreversíveis. A própria escala de intervenção
que as novas tecnologias permitem rompe os mecanismos reequilibradores do mercado
(via concorrência) ou da natureza (recomposição natural de recursos).
Estes pontos ajudam a entender porque o lucro como elemento racionalizador sistêmico
da economia se tornou, segundo os casos, insuficiente, inoperante ou contraproducente. O
que conta, em última instância, é o efeito prático. Está aumentando dramaticamente a
100
distância entre ricos e pobres, os mares estão sendo destruídos, estamos perdendo a
cobertura vegetal e desertificando regiões inteiras, estamos gerando o aquecimento
global e o caos climático e assim por diante. Em particular, este sistema não sabe
distribuir, pois o poder gerado nos processos produtivos reforça a desigualdade entre os
atores, multiplicando os privilégios. A democratização da economia não é uma idéia
simpática, é uma necessidade vital.
A economia da colaboração está baseada em pactuações, e uma pactuação que não fala
dos resultados, da sustentabilidade do processo e da distribuição do produto, não teria
sentido. E quando introduzimos a distribuição na definição das regras do jogo, o para
quem, introduzimos igualmente o debate sobre o quê será produzido, com que impactos
sociais e ambientais. Nesta visão, a ética da economia deixa de se basear na lei do mais
forte, e passa a ser regulada pelo maior interesse sistêmico. Este, por sua vez, ao gerar
uma sociedade mais equilibrada e ao manter um ambiente mais favorável à vida, amplia
as nossas opções, e reverte em maior liberdade individual.
Cada um de nós, indivíduo, educador dos próprios filhos, professor, empresário,
empregado, sindicalista ou o que seja, precisa ter como norte um equilíbrio razoável entre
os seus próprios interesses, perfeitamente legítimos, e o bem comum. O problema da
corporação tradicional é a sua dificuldade em incluir o bem comum nos seus objetivos.
Poderíamos pensar em criar leis cada vez mais rigorosas. Mas na realidade, à medida que
os mecanismos mencionados acima se agravam, acabaríamos por nos asfixiar em regras e
proibições.
Estamos todo buscando caminhos, tateando, tentando reconstruir as pontes entre a
atividade econômica e a ética. “Trazer os valores de volta para a vida econômica faz
inevitavelmente parte da nossa busca da vida após o capitalismo”, diz David Korten.
“Quanto mais profundamente os valores definidos por estas regras se tornarem
assimiladas na cultura popular como referencial necessário e aceito da vida econômica,
menor será a necessidade de um pesado controle público”.
Os avanços neste plano estão começando. Muitas empresas hoje já têm programas de
responsabilidade social e ambiental. É verdade também que muitas o fazem mais por
razões cosméticas, visando limpar o nome, do que para melhorar a sua utilidade social
real como empresa. Mas no conjunto o processo está avançando porque a sociedade está
começando a cobrar resultados em termos de qualidade de vida, e está se tornando mais
consciente, em particular graças às organizações da sociedade civil.
No plano teórico, Amartya Sen desempenhou um papel de primeira importância, ao
colocar no centro da discussão o problema da liberdade, o que por sua vez permitiu
apresentar o nosso problema central, que é o da desigualdade e destruição ambiental,
numa visão de resgate da cidadania, do direito de cada cidadão poder construir as suas
opções. À medida que o gargalo da pobreza vai apertando, e estamos falando como
ordem de grandeza de dois terços da população mundial, também se restringem as
opções, e a possibilidade das pessoas tomarem iniciativas sobre a sua própria vida. Um
processo semelhante se aprofunda com a problemática ambiental.
101
Para Sen, é essencial “favorecer a criação de condições nas quais as pessoas tenham
oportunidades reais de julgar o tipo de vida que gostariam de levar. Fatores econômicos e
sociais como educação básica, serviços elementares de saúde e emprego seguro são
importantes não apenas por si mesmos, como pelo papel que podem desempenhar ao dar
às pessoas a oportunidade de enfrentar o mundo com coragem e liberdade. Essas
considerações requerem uma base informacional mais ampla, concentrada
particularmente na capacidade de as pessoas escolherem a vida que elas têm razões para
valorizar”.162
Isso leva Sen a contestar a fraude teórica que consistiu em justificar a miséria dos povos
como sacrifício inevitável no caminho da eficiência econômica, argumento tão familiar
para os economistas da ditadura militar: “A qualidade de vida pode ser em muito
melhorada, a despeito dos baixos níveis de renda, mediante um programa adequado de
serviços sociais. O fato de a educação e os serviços de saúde também serem produtivos
para o aumento do crescimento econômico corrobora o argumento em favor de dar-se
ênfase a essas disposições sociais nas economias pobres, sem ter de esperar “ficar rico”
primeiro”.163
Em outros termos, responder às necessidades mais prementes dos pobres libera a sua
possibilidade de optar e a sua iniciativa produtiva, reconciliando a ética e a economia.
Esta visão adquiriu base de conhecimentos empíricos através dos Relatórios sobre o
Desenvolvimento Humano, conforme vimos acima, mas também abriu espaço para um
manancial de trabalhos teóricos que retomam a análise econômica na linha da priorização
do direito às opções da massa de excluídos do planeta.164
Os desafios éticos estão se multiplicando. Trata-se por exemplo do direito das gerações
futuras, que serão prejudicadas com o nosso dilapidamento e desperdício de recursos não
renováveis – estas gerações não estão aqui para reclamar –, da manipulação da vida, do
surrealismo da “propriedade intelectual” (até a nossa pobre rapadura!), do nosso direito
de saber o conteúdo dos produtos ou os custos do que pagamos e assim por diante.
O essencial para nós aqui, é tornar evidente que as regras do jogo têm de mudar, de que a
ética na economia tem de trabalhar com uma visão de conjunto do processo de
desenvolvimento, e não mais com resultados pontuais e isolados das consequências. Não
se trata mais de bondade, trata-se de elementar bom senso.
Em termos teóricos, trata-se de inverter o paradigma utilitarista que constitui a base ética
do mainstream econômico atual. De uma visão onde o interesse de cada um resultaria na
maior satisfação social possível, – a soma dos egoismos gerando de certa maneira o
altruismo viável – as transformações em curso apontam para um sistema onde os
162 Amartya Sen – Desenvolvimento como Liberdade – Companhia das Letras, São Paulo, 1999, p. 82 163 id., ibid, p. 66 164 Veja-se por exemplo Carlos Lopes, Cooperação e Desenvolvimento Humano: a agenda emergente para
o novo milênio, Unesp, São Paulo, 2005; ver taambém Patrick Viveret, Reconsiderando a Riqueza, UNB,
Brasilia, 2006 e o trabalho já mencionado de Jean Gadrey.
102
processos colaborativos, de interesse social, resultem no maior potencial de realização
individual, sentimento de iniciativa e liberdade de escolha. A maximização dos interesses
individuais, neste mundo onde os indivíduos já não são pessoas de carne e osso mas
gigantescas pessoas jurídicas, leva ao esmagamento das opções individuais. Temos de
partir para a construção de condições sociais e ambientais onde o interesse individual
possa efetivamente se manifestar.
20 – Democracia econômica
A democracia econômica começa portanto pela ética dos resultados. Não nos adianta
muito saber que dirigentes corporativos são bem intencionados, que contribuem para
escolas em regiões pobres, se no conjunto o resultado é um aprofundamento das
desigualdades e a destruição ambiental.
A democracia é central no processo, pois quando há formas participativas de tomada de
decisão, envolvendo portanto os diferentes interesses, o resultado tende a ser mais
equilibrado. Interesses não representados não influem no processo decisório, o que leva a
problemas maiores, pois virão se manifestar quando os prejudicados já atingiram o nível
do desespero. A democracia econômica consiste portanto em inserir nos processos
decisórios os diversos interesses, e particularmente os que são passíveis de serem
prejudicados. Trata-se, aqui também, menos de bondade do que de inteligência
institucional.
Na Suécia, os trabalhadores estrangeiros, ainda que não tendo a nacionalidade, têm
direito a voto nas localidades de residência. A priori, parece estranho, pois não são
cidadãos do país. A razão dada pelas autoridades suecas é interessante: são as pessoas
mais passíveis de terem dificuldades, e portanto é particularmente importante assegurar
que os seus problemas venham à tona, para poderem ser enfrentados. O que se exige hoje
de dirigentes políticos e corporativos, é que sejam um pouco menos espertos em
acumular vantagens para os seus sócios, e um pouco mais inteligentes em termos
econômicos e sociais.
De forma geral, no nível das soluções institucionais, caminhamos claramente para a
necessidade de um duplo enriquecimento relativamente à tradicional centralidade do
Estado-nação: por uma lado, um reforço da governança planetária, pois a discrepância
entre uma economia que se mundializa enquanto os sistemas de controle continuam
nacionais está gerando um espaço de desgoverno cada vez mais perigoso; por outro lado,
é preciso dar muito mais força aos espaços locais, que é onde a democracia participativa
melhor pode se manifestar, articulando de certa forma o planeta numa rede interativa de
cidades, reforçando assim a democracia pela base. Sejam estes ou outros os caminhos, o
essencial é que devemos estudar as possíveis dimensões institucionais de processos
decisórios mais democráticos na esfera econômica.165
165 Não é secundário o fato de haver pouquíssimo espaço democrático no processo decisório dentro das
empresas, gerando uma cultura empresarial que pouco gosta de decisões democráticas. A construção
pactuada de consensos, tão importante nos melhores exemplos de desenvolvimento eficiente como na
Emilia Romagna ou nos países escandinavos, não agrada em geral a este tipo de empresários. A tentação de 103
A democracia propriamente econômica se manifesta na qualidade da inserção no
processo produtivo, no acesso equilibrado aos resultados do esforço, e no acesso à
informação que assegure o direito às opções.
A inserção no processo produtivo é central, e tem sido subestimada, na medida em que se
avalia em geral apenas a riqueza ou a pobreza, ou seja, o acesso ou não aos bens e
serviços que resultam do processo produtivo.
A região de São Joaquim, no sul do Estado de Santa Catarina, era uma região pobre, de
pequenos produtores sem perspectiva, e com os indicadores de desenvolvimento humano
mais baixos do Estado. Como outras regiões do país, São Joaquim, e os municípios
vizinhos, esperavam que o desenvolvimento “chegasse” de fora, sob forma do
investimento de uma grande empresa, ou de um projeto do governo. Há poucos anos,
vários residentes da região decidiram que não iriam mais esperar, e optaram por uma
outra visão de solução dos seus problemas: enfrentá-los eles mesmos. Identificaram
características diferenciadas do clima local, constataram que era excepcionalmente
favorável à fruticultura. Organizaram-se, e com os meios de que dispunham fizeram
parcerias com instituições de pesquisa, formaram cooperativas, abriram canais conjuntos
de comercialização para não depender de atravessadores, e hoje constituem uma das
regiões que mais rapidamente se desenvolvem no país. E não estão dependendo de uma
grande corporação que de um dia para outro pode mudar de região: dependem de si
mesmos.
Esta visão de que podemos ser donos da nossa própria transformação econômica e social,
de que o desenvolvimento não se espera mas se faz, constitui uma das mudanças mais
profundas que está ocorrendo no país. Tira-nos da atitude de espectadores críticos de um
governo sempre insuficiente, ou do pessimismo passivo. Devolve ao cidadão a
compreensão de que pode tomar o seu destino em suas mãos, conquanto haja uma
dinâmica social local que facilite o processo, gerando sinergia entre diversos esforços.
A OIT evoluiu recentemente para o conceito de emprego decente. Na linha deste
conceito, e dos estudos de Ignacy Sachs, podemos conceber que o desenvolvimento de
uma iniciativa produtiva não pode ser medido apenas pelo produto gerado (output), pois a
qualidade do processo produtivo, em termos de satisfação gerada para quem dele
participa (outcome), faz parte da avaliação. Os habitantes de São Joaquim talvez
estivessem obtendo mais maçãs por hectare se tivessem sido colonizados por uma United
Fruit qualquer. E a empresa estaria assegurando maiores retornos aos seus acionistas nos
Estados Unidos. Mas é este o objetivo? Os produtores de fruta de São Joaquim recebem
com orgulho visitantes que vêm apreciar as suas realizações, e sentem os resultados como
fruto da sua capacidade. A satisfação com o trabalho, o sentimento de apropriação do
processo, não faz parte dos resultados?
ter os “seus” políticos, que obedecem às suas instruções, ainda que passando por cima de outros interesses
legítimos, é muito grande. Sobre a democratização da gestão empresarial, ver o excelente livro de Robert
A. Dahl, A Preface to Economic Democracy, University of California Press, 1985
104
A grande corporação se comporta hoje cada vez mais como Estado, como gigante que
nos “dá” emprego, que nos faz sentir como participantes de uma elite por usarmos a sua
marca. Não podemos mais ignorar que temos um grupo de mega-empresas cujo produto é
superior à da maioria dos países do planeta, e que este poder econômico adquiriu uma
dimensão política tão importante, que um número crescente de pessoas no mundo acha a
política tradicional cada vez menos relevante, provocando o seu esvaziamento. O fato de
líderes políticos de tendências as mais diferentes aplicarem a mesma política econômica
não resulta da mediocridade ou falsidade destes líderes, mas do fato da política, como o
colocou tão bem Otávio Ianni, ter “mudado de lugar”.166
A evolução para a economia do conhecimento, a expansão da área social relativamente a
produtos manufaturados no conjunto da economia, e a crescente urbanização – abrem
novos espaços de reapropriação do desenvolvimento pelos próprios atores sociais de cada
região, dependendo cada vez menos da boa vontade de uma força que não controlamos, e
que tende a se comportar como o “grande irmão”.
O trabalho de Guy Aznar, Trabalhar menos para trabalharmos todos, é neste sentido
característico: não tem sentido uma divisão do trabalho em que parte da sociedade está à
beira do colapso nervoso por excesso de trabalho, enquanto outra parte está desesperada
por não ter trabalho. A racionalização do processo necessita, por exemplo, de intervenção
democrática sobre a organização da jornada de trabalho, com decisões que envolvam não
só a eterna “competitividade” mas o resultado para a população em termos de equilíbrio
social, sustentabilidade ambiental e a prosaica qualidade de vida.
Esta visão, de que a desigualdade planetária não está apenas ligada ao segmento
distributivo do ciclo de reprodução, mas à inserção mal equilibrada das pessoas nos
próprios processos produtivos, é essencial. Abre espaço para o desenvolvimento local
integrado, e para o sentimento de que o nosso futuro depende de nós, e não de distantes
reuniões transnacionais. Não basta que alguma empresa, ou uma distante burocracia, faça
coisas que são para o nosso bem. Temos de devolver às pessoas a possibilidade de
cuidarem do próprio destino, de serem protagonistas.
Um segundo eixo de democratização da economia se refere ao acesso equilibrado ao
produto dos nossos esforços. O nosso sistema capitalista, é preciso constatá-lo, pode
saber produzir, mas não sabe distribuir. E como o ciclo de reprodução envolve tanto a
produção como a distribuição, ele é estruturalmente incompleto.
É hoje cada vez mais manifesto que o quanto a pessoa é remunerada depende cada vez
menos do seu esforço, ou da sua vontade de trabalhar, e cada vez mais de como está
inserido no processo produtivo.167 O processo produtivo é cada vez mais um processo
social. As universidades que formam quadros contribuem para a produtividade social
166 Octavio Ianni – A política mudou de lugar – capítulo de L. Dowbor et al., (Orgs.), Desafios da
Globalização, Editora Vozes, Petrópolis, 2003 167 Nos Estados Unidos, o proacesso foi estudado em torno dos conceitos de What you know e de Who you
know. Sobra dizer que o “who you know” ganha amplamente, como propulsor de carreira, do que o “what
you know”. É mais importante “quem” você conhece, do que “o quê” você conhece.
106
As soluções técnicas são diferenciadas. Franklin Roosevelt, em 1942, tinha pedido um
imposto de 100% sobre os ganhos que ultrapassassem 25 mil dólares, equivalentes hoje a
300 mil dólares. Na época, conseguiu aprovar uma taxa de 94% acima de 200 mil
dólares. De lá para cá, o imposto pago pelos mais ricos só vem caindo, atingindo hoje
17,5% da sua renda total para o imposto federal. Uma lei em discussão no congresso
americano proibiria deduções de imposto sobre compensações executivas que
ultrapassem 25 vezes o salário dos trabalhadores de salário mais baixo. “Idéias deste tipo,
comenta Pizzigati, naturalmente nunca pegam nos Estados Unidos. Poderemos seguir
ladeira abaixo para atingir uma desigualdade maior nas próximas décadas. Se for o caso,
como será a vida num Estados Unidos ainda mais desigual? Basta que olhemos para o
Brasil para encontrar a resposta.”
Uma dimensão anedótica deste comentário é que o Brasil, já famoso por ter sido o último
a abolir a escravidão no mundo, continua com sólida reputação de ter uma classe
dominante pré-histórica. Mas o ponto central é simples: excesso de riqueza, tal como
insuficiência de renda, são condições patológicas em termos de sociedade. Os muito ricos
passam a dominar a política, e se precisarem ser eleitos para isso comprarão a política,
mas em geral se contentarão em comprar políticos. De qualquer forma, o resultado é uma
deformação radical da democracia. Por outro lado, os muito pobres não têm como
assegurar representação, como organizar-se ou como se informar, ficando na realidade
marginalizados. Chamar o que resulta de democracia, é pura boa vontade.
Em termos práticos de democracia econômica, vale a pena trabalhar com o teto de
fortuna pessoal acumulada – podemos imaginar por exemplo a cifra de 50 milhões de
dólares, com os quais se supõe que mesmo um capitalista exigente possa sobreviver – e
com o teto de renda anual, como os 15 milhões de dólares anuais aceitos pela justiça
americana para a MCI. No plano da fortuna pessoal, o imposto sobre a fortuna, como
aplicado na França, combinado com o imposto sobre a herança, deveria gradualmente
assegurar um mínimo de equilíbrio social, ainda que, crescentemente, as grandes fortunas
estejam se deslocando para os mais de 50 paraísos fiscais dispersos no planeta.
No plano da renda, o mais interessante é a vinculação da renda mínima e da renda
máxima, definindo por exemplo que a renda mínima familiar servisse de referência para a
renda máxima, multiplicada por 50. Na realidade, segundo dados de Pizzigati, nas
economias desenvolvidas 97% das pessoas com renda estão incluídas num limite de 1
para 10. O grande problema, portanto, são os donos das grandes fortunas. Em termos
políticos, os cálculos mostram que são os únicos que perderiam com uma relação
máximo/mínimo deste tipo. Por outro lado, a grande maioria teria interesse em que se
aumente o mínimo, pois elevaria o máximo. Na proposta, acima do máximo, a taxação
seria de 100%.169
169 Assegurar a renda minima faz todo sentido étido – algumas coisas não podem faltar a ninguém – e
também econômico, pois os sobrecustos da pobreza excedem de longe a sua eliminação. A ampla literatura
internacional sobre o assunto pode ser encontrada nos trabalhos de Eduardo Suplicy, por exemplo no
pequeno mas excelente Renda Básica de Cidadania, L&PM, Porto Alegre ,2006.
107
Uma grande bobagem liga a alta remuneração – estamos falando das remunerações
nababescas como por exemplo de Eisner da Walt Disney que ganhava algo na faixa de
meio bilhão por ano – a algum tipo de produtividade milagrosa do super-executivo. Isto é
bastante ridículo, e mais próximo do übermensch de Nietsche do que de qualquer
racionalidade econômica. Tim Berners-Lee inventou a Web, o nosso www, um dos
progressos essenciais do mundo moderno, e não cobrou um tostão. Louis Pasteur nos deu
a vacina não por ter salário surrealista. O progresso é mais essencialmente ligado ao que
Madalena Freire chamou de “a paixão de conhecer o mundo” do que à ação de executivos
sobrehumanos.
Marjorie Kelly produziu nesta área um estudo particularmente interessante, intitulado “O
direito divino do capital”. Analisando o mercado de ações dos Estados Unidos, Kelly
constata que a imagem das empresas se capitalizarem por meio da venda de ações é uma
bobagem, pois o processo é marginal: “Dólares investidos chegam às corporações apenas
quando novas ações são vendidas. Em 1999 o valor de ações novas vendidas no mercado
foi de 106 bilhões de dólares, enquanto o valor das ações negociados atingiu um
gigantesco 20,4 trilhões. Assim que de todo o volume de ações girando em Wall Street,
menos de 1% chegou às empresas. Podemos concluir que o mercado é 1% produtivo e
99% especulativo”. Mas naturalmente, as pessoas ganham com as ações, e portanto há
uma saída de recursos: “Em outras palavras, quando se olha para as duas décadas de 1981
a 2000, não se encontra uma entrada líquida de dinheiro de acionistas, e sim saídas. A
saida líquida (net outflow) desde 1981 para novas emissões de ações foi negativa em 540
bilhões”...”A saida líquida tem sido um fenômeno muito real – e não algum truque
estatístico. Em vez de capitalizar as empresas, o mercado de ações as tem
descapitalizado. Durante décadas os acionistas têm se constituido em imensos drenos das
corporações. São o mais morto dos pesos mortos. É inclusive inexato de se referir aos
acionistas como investidores, pois na realidade são extratores. Quando compramos ações
não estamos contribuindo com capital, estamos comprando o direito de extrair
riqueza”.170
Este raciocínio é muito interessante, pois aponta para o mecanismo moderno de extração
de riqueza: na base, está o grande progresso de produtividade que as novas tecnologias
permitem. Só que estes ganhos não são apropriados pelos trabalhadores e pela sociedade
em geral, pois se transformam em fabulosos salários dos administradores, e excelentes
remunerações dos acionistas, numa colusão de interesses em que um protege o
enriquecimento do outro. Assim o avanço tecnológico que deveria permitir uma vida
digna e tranquila para todos, termina por se concentrar em poucas mãos, contribuindo
para as fortunas obscenas.
É interessante cruzar o raciocínio de Kelly com o de Robert Dahl visto acima, sobre a
ausência de qualquer democracia dentro da empresa. O autoritarismo interno da empresa
assegura a reprodução de privilégios impressionantes, e gera níveis de enriquecimento
absolutamente sem proporção à contribuição efetiva dos personagens para o crescimento
170 Marjorie Kelly – The Diveine Right of Capital – Berrett-Koehler, San Francisco, 2001, páginas 33 e 35
108
econômico. ‘Se a democracia se justifica para o governo do estado, escreve Dahl, então é
igualmente justificado para o governo de empreendimentos econômicos”.171
Na outra ponta do espectro, cerca de 3 bilhões de pessoas vivem com menos de 2 dólares
por dia. As crianças desnutridas, por falta de um pequeno apoio como por exemplo o
bolsa-família desenvolvido no Brasil, passarão o resto da vida pouco produtivas e
onerando os hospitais. Os adolescentes perdidos nas grandes cidades, sem escola nem
emprego, geram custos de segurança imensos, e frequentemente morrem no processo.
Quem ganha com isso? A realidade econômica é que sai muito mais barato tirar as
pessoas da miséria, do que arcar com os custos indiretos. Manter a desigualdade constitui
uma das maiores burrices das nossas teorias econômicas. E em termos de qualidade de
vida, o ônus é tanto para os pobres que não têm o mínimo, como para os ricos que não
têm segurança.
O terceiro eixo da democracia econômica é o acesso à informação. Isto está
evidentemente vinculado à existência da imensa massa de pobres do planeta, que não têm
acesso à educação suficiente, à informação efetiva, ao conhecimento tecnológico, ao
conjunto dos instrumentos mínimos que possam constituir o que chamaríamos de uma
precária escada para subir na vida. Assegurar oportunidades econômicas constitui um
ponto de partida para qualquer democracia econômica. E isto se organiza,
democratizando o acesso.
Um excelente texto sobre este enfoque ainda é a Declaração de Cocoyoc, de 1974:
“Conclamamos todos os líderes de opinião pública, educadores, todos os agentes
intressados em contribuir para uma consciência mais elevada tanto sobre as origens como
sobre a gravidade da situação crítica que a humanidade hoje enfrenta. Cada pessoa tem o
direito de entender plenamente a natureza do sistema do qual é parte, como produtor,
como consumidor, como um entre bilhões de pessoas na terra. Ele tem o direito de saber
quem se beneficia dos frutos do seu trabalho, quem se beneficia do que ele compra ou
vende, e em que grau ele melhora ou detoriora a sua herança planetária”. 172
A grande realidade é que as inúmeras formas de exploração que se desenvolveram no
planeta passam hoje por mecanismos financeiros e monetários que são opacos para a
maioria da população, permitindo-se assim barbaridades impressionantes.
Privilegiamos aqui propostas na linha das instituições e do processo produtivo, da renda e
da informação. Trata-se aqui de pontuar linhas que as teorias desenham. Ao longo do
texto vimos as mais variadas propostas que surgem, e que vão apontando novas soluções.
171 Robert A. Dahl – A Preface to Economic Democracy – University of California Press, Berkeley, 1985 172 No original: “We call on leaders of public opinion, on educators, on all interested bodies to contribute to
an increased public awareness of both the origins and the severity of the critical situation facing mankind
today. Each person has the right to understand fully the nature of the system of which he is a part, as a
producer, as a consumer, as one among the billions populating the earth. He has a right to know who
benefits from the fruits of his work, who benefits from what he buys and sells, and the degree to which he
enhances or degrades his planetary inheritance”. – The Cocoyoc Declaration, in South Centre, The South
and Sustainable Development Conundrum, Geneva 2002 - A este respeito, ver propostas práticas no nosso
Informação para a cidadania e o desenvolvimento sustentável – http://dowbor.org sob “Artigos Online”.
109
A realidade prática é que dispomos dos recursos financeiros e humanos, das técnicas e
dos conhecimentos necessários para remediar em pouco tempo a este duplo drama da
desigualdade e da destruição ambiental. O pavonear-se dos executivos de Davos,
sorridentes símbolos do sucesso, inconscientes da tragédia planetária que se desenvolve,
é simplesmente lamentável.
No essencial, os mecanismos econômicos são insuficientes para assegurar os equilíbrios
necessários. No plano político, constituiu um imenso avanço, apesar de todas as
limitações, a nossa evolução para algo que se aproxima de processos democráticos. Os
processos econômicos passaram a dominar a política, sem a ela se submeter. Um
presidente da Exxon, com todo o poder político que tem junto ao presidente dos EUA,
afirma com tranquilidade que trabalhar com alternativas energéticas é perda de tempo.
Alguém o elegeu para isso? O que ficou dos processos de regulação econômica, com a
rara exceção dos anos de políticas keynesianas em alguns países desenvolvidos, é
simplesmente a lei do mais forte. É tempo de extermos o cobertor democrático para esta
área.
Conclusões
Neste pequeno trabalho, dialogamos em diversos momentos com a busca de Celso
Furtado por “um novo modelo” de interpretação econômica. Sem ter sido chamado para
nenhum prêmio Nobel disfarçado, defendeu durante a sua vida de maneira coerente o
interesse de quem precisa de uma inserção econômica decente. É uma visão que não se
deixou trancar em nenhuma ideologia ou “escola”, que entendeu a ciência econômica na
riqueza das suas relações com outras áreas de conhecimento, que privilegiou as
transformações estruturais, e buscou de maneira bastante pragmática – e teoricamente
muito sólida – respostas às necessidades do país. Solidez ética, rigor metodológico,
conhecimento histórico, foco nos problemas centrais, e um saudável desrespeito pelos
mais diversos “-ismos” que restringem a visão.
E trazia também, argumento que citamos logo no início deste trabalho, uma visão crítica
da capacidade explicativa do aparelho conceitual herdado. Para citá-lo mais uma vez,
“vivemos uma dessas épocas em que faz-se notória a insuficiência do quadro conceitual
para apreender uma realidade em rápida transformação”.173
A primeira idéia que surge, tentando fechar o leque de idéias aqui exposto, é que a
ciência econômica tem de passar a ser pesquisada, e inclusive ensinada, de maneira
diferente. Ou seja, em vez de isolarmos a economia das outras ciências sociais, buscando
“identidade”, e de fatiar esta identidade em disciplinas, deveríamos trabalhar por
problemas-chave, e a eles aplicar conceitos econômicos, visão histórica, e os
conhecimentos necessários de outras áreas científicas.
O objetivo seria, por exemplo, trabalhar de forma integrada e interdisciplinar as razões de
uma taxa de juros tão descomunal no Brasil. Isto nos obrigaria a entender o processo de
173 Celso Furtado - O capitalismo global – Paz e Terra, São Paulo 1998, p. 21
110
concentração dos bancos, o poder político dos grupos financeiros, os mecanismos de
transferência de recursos públicos para grupos privados, o uso e mal-uso das teorias
econômicas, como funcionam juros compostos, como está organizado o marco jurídico
do crédito, como a mídia apresenta o problema à população e assim por diante.
Este é apenas um exemplo. O essencial é partirmos dos problemas identificados como
cruciais na atualidade, e organizarmos os conhecimentos científicos em torno ao
diagnóstico e respostas necessárias. A ciência econômica precisa se validar ao trazer
respostas aos problemas-chave.
Este enfoque é particularmente importante na economia, pois a dificuldade central não
está em entender um conceito, mas em entender como os conceitos se relacionam na
problematização e compreensão de uma realidade. Tal reorientação da pesquisa
melhoraria a motivação dos alunos – que hoje têm imensa dificuldade em relacionar o
que se ensina com o mundo real – e também a dos professores, ao tirá-los do conforto das
apostilas setoriais, e desafiando a sua criatividade, além de exigir, por exemplo, uma
aarticulação com pesquisadores de outras áreas, para entender a lógica do processo
estudado.174
Mais importante ainda, este enfoque, ao explicitar de maneira integrada o processo
decisório que está por trás de uma dinâmica econômica, levará a uma compreensão
melhor de como tornar este processo decisório democrático. Retomando o problema dos
juros, no Brasil o problema foi enfrentado inserindo-se na constituição de 1988 a
proibição de juros acima de 12%. É tipicamente uma ação cega, pois não é segundo a
constituição que se tomam decisões referentes à taxa de juros. A democratização
econômica tem de partir dos mecanismos econômicos realmente existentes.
Esta abordagem da economia através de problemas-chave, ou de mega-tendências
estruturais, deve-nos permitir a pesquisa e estudo do que realmente importa. No texto
acima, privilegiamos alguns pontos que podem ser considerados críticos, pela sua
importância para a nossa sobrevivência, ou pela força do seu impacto sistêmico. Há
muitos outros, sem dúvida. Mas a nossa tendência tem sido de nos concentrarmos
demasiado nos grandes argumentos ideológicos, como se o simples pertencimento a uma
visão que consideramos digna, liberal ou socialista, nos permitisse ficar acima do
trabalho de fundo que consiste em levantar as informações e analisar a realidade nas suas
dinâmicas diversificadas, tornando claras as relações de poder que as sustentam.
Virar as costas para a polítca costuma ser confortante. É mais fácil dizer que a economia
despreza o discurso e se concentra em realizações práticas: as empresas construiram as
fábricas, dão emprego, financiam estradas, enquanto os políticos discutem Assim a
economia seria simpática e progressista, a política desagradável ou corrupta. As
simplificações raramente dão bons resultados, ainda que satisfaçam os nossos instintos. É
bom lembrar que foram os grandes movimentos políticos, regularmente taxados como
174 Um exemplo característico é o desconhecimento, por parte dos economistas, do marco jurídico da
economia, enquanto os juristos desconhecem os mecanismos econômicos sobre os quais são
frequentemente chamados a legislar.
111
subversivos na fase inicial, que nas respectivas épocas conseguiram a abolição da
escravidão, o fim do colonialismo, os direitos do assalariado, a inclusão política da
mulher, e hoje continuam lutando contra a desigualdade econômica, contra a destruição
do meio ambiente, pelo resgate da riqueza cultural das nossas vidas, contra os sistemas de
especulação financeira, pelo acesso de todos a bens básicos como água, comida,
educação e saúde. A democratização da economia pode bem tornar-se um eixo desta
construção de uma vida mais humana. Extrair petróleo mais rapidamente, liquidar a
amazônia mais eficientemente, leva para onde?
Hoje temos todos os meios econômicos, técnicos e de organização para assegurar uma
vida digna para todos. É o desafio principal que se coloca. Não se responderá a este
desafio sem uma participação ativa das forças que hoje controlam a economia,
essencialmente as grandes corporações. E as corporações terão que gradualmente chegar
ao que Peter Drucker exprimiu de maneira simples: “Não haverá empresa saudável numa
sociedade doente”.
Os objetivos são conhecidos: hoje são apresentados como Metas do Milênio, antes disto
foi a Carta da Terra, a Agenda XXI, antes ainda a Nova Ordem Econômica Internacional,
ou a excelente Declaração de Cocoyoc. Ao rever os textos, vemos que os temas são
sempre os mesmos, renovados sob nome diferente para dar novo fôlego, com algumas
diferenças de ênfase.175
No geral, chegamos a uma visão que constitui um “norte” político, e que resultou do
acúmulo de inúmeros estudos científicos: precisamos de uma sociedade econômicamente
viável, socialmente justa, e sustentável em termos ambientais, porque o planeta é um só.
E se trata de objetivos articulados: não basta a direita defender o econômico, a esquerda o
social, os verdes o ambiental, pois todas as áreas de atividade têm de articular o triplo
objetivo. E tampouco existe o “trickling down” do tipo “vamos resolver o econômico,
que o resto virá”.
A base política deste processo não será o proletariado ou a burguesia, mas uma
articulação mais equilibrada do poder do Estado, da sociedade civil organizada e do
empresariado, ancorada em territórios que permitam esta articulação. O tempo das
“classes redentoras” passou.
E o mecanismo de regulação do conjunto não será ou o mercado ou o planejamento
estatal, mas uma articulação de diversos mecanismos que incluirão, além do mercado e
do planejamento estatal, sistemas de articulação inter-empresarial, desenvolvimento local
integrado, forte participação dos movimentos sociais, além de sistemas renovados de
concertação internacional. Somos sociedades demasiado complexas para soluções
simplificadas de gestão.
175 Vários excelentes textos, inclusive a Declaração de Cocoyoc, encontram-se no livro The South and the
Sustainable Development Conundrum –From Stockholm 1972 to Rio 1992 to Johannesburg 2002 and
Beyond – South Centre, Geneva, 2002 – www.southcentre.org
112
O conceito de democracia, neste sentido, tornou-se essencial. Achamos natural exigir
transparência política. E a transparência corporativa? Achamos um escândalo dirigentes
políticos terem salários de 20 mil reais, pois se trata do dinheiro que pagamos via
impostos, do nosso dinheiro. Mas achamos natural que um dirigente empresarial tenha
um salário de 20 milhões, ainda que o seu salário esteja incluído nos preços que pagamos
pelos produtos, imposto discreto e implícito. Isto é dinheiro de quem?
Assim os objetivos, a base política e o processo decisório do desenvolvimento econômico
e social estão se deslocando em profundidade. Estamos construindo outra sociedade,
ainda que como resultante inesperada de processos que compreendemos apenas em parte.
O desafio da economia, como ciência a serviço da sociedade, e não de grupos
econômicos dominantes, é de se reinventar, e de resgatar a sua utilidade.
No conjunto, as ameaças que se avolumam nos planos social e ambiental, nos abrem uma
janela limitada de tempo para agir. A lei da sobrevivência do mais forte, como
mecanismo regulador principal numa sociedade que maneja tecnologias de impacto
planetário, constitui não o progresso proclamado sob a sigla de “competitividade”, mas
um drama em construção. Quando as coisas apertarem mais, haverá os salvadores de
sempre sob forma de regimes autoritários. O grande dilema, é saber se conseguiremos
recuperar o controle através da construção de processos democráticos na base da
sociedade, ou se a ordem, a chamada ordem, virá de cima, com toda a barbárie que este
tipo de soluções representa.
113
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Quarta capa
Enfrentamos hoje o problema central da governança, da forma como nos organizamos
para fazer a sociedade funcionar. No plano político, a democracia foi um imenso avanço,
já que pelo menos formalmente cada pessoa tem direito a um voto, e saimos da barbárie.
No mundo econômico, no entanto, continuamos a aplicar regras que de democráticas não
têm nada.
Com o poder econômico se tornando o elemento central dos processos de decisão
política, e a força da mídia igualmente dependente das corporações, limitar a democracia
à sua expressão política tornou-se cada vez menos realista, a ponto de nos tornar cada vez
mais céticos sobre os mecanismos políticos. Temos de evoluir para um conceito mais
democrático da própria economia, para que a política volte a ter sentido.

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