sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Por uma nova ordem simbólica - Rose Marie Muraro

DIA INTERNACIONAL DA MULHER

Por uma nova ordem simbólica
Rose Marie Muraro
Publicado na Folha de São Paulo – Tendências e Debates, 08/03/01
Cada espécie animal percebe o real segundo a vida que lhe é peculiar. A espécie
humana relaciona-se com ele por meio de seus sistemas simbólicos. E é exatamente por
esse motivo que ela é a única espécie que o pode transformar. Mas, embora a
capacidade de simbolizar seja inata, seu uso varia ao longo dos tempos.
É pelos sistemas simbólicos que os seres humanos pensam, falam, se comunicam e
criam as suas leis de comportamento e, portanto, os seus sistemas sociais, políticos e
econômicos. Esses sistemas variaram muito nos 2 milhões de anos de vida de nossa
espécie, principalmente nos últimos 10 mil anos do nosso período histórico. O grande erro
dos pensadores foi tomar os sistemas, que foram socialmente construídos, como
biológicos e imutáveis.
Isso aconteceu, por exemplo, com os psicólogos do fim do século 19 e do início do
século 20, principalmente Freud e Lacan. Freud afirma que a natureza foi madrasta com a
mulher porque ela não tem a capacidade de simbolizar como o homem.
Lacan afirma que o simbólico é masculino e que "a mulher não existe". Não existe
porque não tem acesso à ordem simbólica. A palavra pertence ao homem e o silêncio
pertence à mulher. Segundo ele, o simbólico é estruturado pela cadeia de significantes na
qual o grande organizador é o falo. Este, ao mesmo tempo, é metáfora do órgão sexual
masculino e do poder. O poder -que é essencialmente masculino- é o "grande outro", ao
qual, implícita ou explicitamente, todos os atos simbólicos humanos se referem. Incluem-se
aí os pensamentos, os gestos, as leis e até os sistemas macro (políticos e
econômicos).
E, de fato, ele tem razão. A realidade humana é gendrada (gendered), como
gendrados somos todos nós. Todos os sistemas simbólicos atuais foram sendo fabricados
pelos -e para os- homens. Leis, gramática, crenças, filosofia, dinheiro, poder político e
econômico.
Na última metade do século 20, no entanto, algo novo aconteceu. Os dois grandes
resultados da sociedade de consumo são a entrada da mulher no mercado mundial de
trabalho -uma vez que o sistema fez mais máquinas do que machos- e a destruição dos
recursos naturais -porque os retirou da natureza num ritmo mais acelerado do que
capacidade de reposição dela.
As mulheres já estão entrando nos
sistemas simbólicos masculinos; ajudando
a desconstruir a ordem universal de poder
As mulheres entram nos sistemas simbólicos masculinos no momento em que esses
estão se mostrando implacavelmente destrutivos em relação à vida. A tarefa monumental
que os movimentos de mulheres e as mulheres têm hoje é a de construir uma nova ordem
simbólica não mais centrada sobre o falo (o poder, o matar ou morrer que é a sua lei),
mas uma nova ordem que possa permear desde o inconsciente individual até os sistemas
macroeconômicos, mas. Mas, agora, uma nova ordem estruturada sobre a vida.
Essas reflexões não poderiam estar sendo feitas se esse trabalho já não estivesse
em curso. Já estão sendo construídos consensos entre os povos contra uma dominação
global que exclui o grosso da humanidade e sobre uma nova ordem que inclua uma
relação complementar entre os gêneros, uma família democrática, um tipo de relação
econômica que não transfira a riqueza de todos para os poucos que dominam, que inclua
relações comerciais e econômicas menos desumanas e destrutivas.
As mulheres já estão entrando nos sistemas simbólicos masculinos. E não só nas
instituições convencionais (empresas, partidos etc.), mas também em outras, muitas
vezes na contramão da história (nas lutas populares, ecológicas, pela paz etc., onde são
a grande maioria). Elas estão construindo uma nova ordem simbólica, na qual o "grande
outro" é a vida (viver e deixar viver), e ajudando a desconstruir a atual ordem universal de
poder.
Se não trabalharmos nessa profundidade, por mais que se transformem as
estruturas econômicas antigas, elas tenderão a voltar. Ou substituímos a função
estruturante do falo pela função estruturante da vida ou não teremos mais nem falo nem
vida.
Rose Marie Muraro, 70, escritora, é fundadora do Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher.

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