ENTREVISTA COM MARIA CRISTINA FRANCO FERRAZ
“Matéria e memória, publicado em 1896, corresponde, a meu ver, a uma obra-prima, não apenas por
conta da potência dos conceitos criados, mas igualmente pelo vigor, inteligência e generosidade de
um pensamento verdadeiramente em movimento, capaz de manter-se vivo e produtivo a cada nova
leitura, mesmo passado mais de um século”. A opinião é de Maria Cristina Franco Ferraz, em
entrevista concedida por e-mail, com exclusividade à IHU On-Line. Diretamente de Berlim, Alemanha,
onde estava quando conversou com a equipe de nossa revista, Ferraz mencionou que “uma das
grandes contribuições de Matéria e memória para o pensamento contemporâneo diz respeito ao
estatuto atribuído à virtualidade”. Ela é docente na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Franco Ferraz é graduada em Letras Português Literatura e em Didática Especial de Língua Inglesa
pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre em Letras, pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e em Filosofia, pela Sorbonne, França, com a
dissertação Ecce Homo, de Nietzsche: Autobiographie, le propre et les masques. Nessa mesma
instituição, cursou doutorado em Filosofia com a tese Ecce Homo (L'autobiographie de F. Nietzsche):
tragédie, parodie et sacrifice dionysiaque. É pós-doutora pela Universidade Federal Fluminense (UFF),
pelo Instituto Max-Planck de História da Ciência e pelo Zentrum für Literatur und Kulturforschung
Berlin, Alemanha. De sua produção bibliográfica, citamos Nietzsche: o bufão dos deuses (Rio de
Janeiro: Ed. Relume Dumará, 1994); Nove variações sobre temas nietzschianos (Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2002); e A psiquiatria no divã: entre as ciências da vida e a medicalização da existência, de
Adriano Amaral de Aguiar (Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará, 2004).
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IHU On-Line - Quais foram as maiores descobertas e
inovações que Bergson propõe em Matéria e Memória?
Maria Cristina Franco Ferraz – Matéria e memória,
publicado em 1896, corresponde, a meu ver, a uma obra-prima,
não apenas por conta da potência dos conceitos
criados, mas igualmente pelo vigor, inteligência e
generosidade de um pensamento verdadeiramente em
movimento, capaz de manter-se vivo e produtivo a cada
nova leitura, mesmo passado mais de um século. Na
brevidade de uma entrevista, a resposta à pergunta
proposta pode ser no máximo alusiva. Nesse sentido,
gostaria de chamar a atenção, inicialmente, não apenas
para a construção de conceitos radicalmente novos
(como o de imagem e de memória), em um duplo gesto
que envolve também a discussão precisa e aprofundada
das perspectivas das quais Bergson se afasta. Em
primeiro lugar, investigando as premissas comuns
presentes nas duas correntes aparentemente antagônicas
então predominantes, no que diz respeito à percepção –
idealismo subjetivista e realismo materialista -, Bergson
perspicazmente mostra de que modo as duas de fato se
aproximam e, passando “por trás” de ambas, constitui
um novo solo a partir do qual não mais serão respondidas
as mesmas questões, mas o próprio problema da relação
interioridade/exterioridade será recolocado (e
ultrapassado). De fato, ambas as correntes supõem
certas visadas comuns: por exemplo, o vínculo entre
percepção, representação e especulação, bem como a
cisão (tornada irremediável) entre “eu” e “mundo”.
Como Bergson demonstra, nas duas visões concorrentes,
tudo o que vemos não passaria de “alucinações
verdadeiras”. Ao postular uma relação de grau, e não de
natureza, entre percepção e matéria, Bergson já coloca
nossa percepção nas coisas, que nada mais seriam do que
imagens de nossa ação (e não contemplação) possível.
Entre matéria, entendida como um conjunto de imagens
interligadas e interdependentes, e percepção (certas
imagens que se “revelam” em função de nossa “atenção
à vida”, promessas e ameaças que nos cercam), haveria
assim uma diferença de grau, isto é: perceberíamos de
fato a matéria, mas não em sua totalidade.
Perceberíamos uma parte da matéria, o que permite
afirmar que nossa percepção está nas coisas. Como se
pode observar, na contramão de uma longa tradição
filosófica, imagem passa a se confundir com o que é,
com a matéria, o que também configura uma nova noção
de matéria, afinada com certas visadas da física de sua
época. Como Bergson enfatiza, a ciência seria capaz, tal
como o pensamento apto a se afastar das (bem-vindas e
necessárias) ilusões que nos permitem agir no mundo, de
alcançar uma intuição imediata do real, para além da
curva em que ele se inflete para constituir uma
experiência humana. Portanto, não são apenas os
conceitos de percepção, matéria e memória que
emprestam grandeza à obra (que pensa o movimento e
efetua um pensamento movente), mas a alteração do
próprio movimento do pensamento, para além do
humano (demasiado humano), curiosamente aproximável
de novas perspectivas científicas sobre a matéria bem
como do trabalho artístico sobre a percepção e a
memória que marca a o final do século XIX e o limiar do
século XX (de Cézanne 14 a Proust 15 ).
IHU On-Line - No contexto da filosofia
contemporânea, qual é a importância dessa obra?
Maria Cristina Franco Ferraz – Uma das grandes
contribuições de Matéria e memória para o pensamento
contemporâneo me parece dizer respeito ao estatuto
atribuído à virtualidade. A ênfase no virtual – tratado
como “real sem ser atual”-, de grandes implicações
filosóficas, existenciais e políticas, desfaz a crença em
14 Paul Cézanne (1839-1906): pintor francês. (Nota da IHU On-Line)
15 Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust (1871-1922):
escritor francês. (Nota da IHU On-Line)
meros estados de coisas fixados, ressalta a movência e
abertura de tudo o que há. O real deixa de se confundir
com o “visível” e passa a ser pensado como contendo
uma grande parcela de virtualidade. Em meu trabalho
com a obra, tenho enfatizado, em geral, dois
desdobramentos do tema da virtualidade. Por um lado, a
partir das reflexões do filósofo português José Gil sobre
dança e corpo, retomando o tema bergsoniano do
“movimento total” do corpo, buscado e reativado, como
mostra Gil, em certas experiências coreográficas
contemporâneas. O movimento imparável do corpo, suas
tensões mesmo para manter-se aparentemente
“parado”, requerem o conceito de virtualidade para
revelar-se como tal. Ao mesmo tempo, a ênfase na
realidade do virtual altera a própria reflexão sobre a
comunicabilidade, uma vez que um corpo em movimento
se desdobra em espectros virtuais que nunca “mentem”.
Afinal, conforme afirma genialmente Bergson, ao
trabalhar o exemplo da aprendizagem por repetição de
um movimento, o corpo não comporta “subentendidos”.
Por outro lado, e em um sentido talvez mais evidente
na obra, a ênfase bergsoniana na virtualidade permite
não apenas construir um novo sentido para “memória”
(ligada à temporalidade, à “duração”) como também
para redimensionar seu vínculo (hoje tão enfatizado
pelas neurociências) com o cérebro, órgão não de
armazenamento de lembrancas, mas sobretudo de sua
“suspensão” na virtualidade, ou seja, seu
“esquecimento”. Em uma época em que se disseminam,
nos diversos meios de comunicação de massa, novas
“descobertas” sobre o cérebro e se tende a reduzir cada
vez mais amplamente o fenômeno da memória à esfera
bioquímica do corpo (neurônios, sinapses, hormônios), a
reflexão bergsoniana sobre a memória não apenas
estabelece uma plataforma crítica para se pensar as
implicações da consolidação dessas novas “verdades”
científicas, mas permite igualmente tematizar tanto seu
papel crítico em sua época quanto o sentido da atual
“desespiritualização” do curioso e rico fenômeno humano
da memória.
IHU On-Line - Que pontos de proximidade e
distanciamento esse filósofo faz entre matéria e
memória?
Maria Cristina Franco Ferraz – Trata-se, nesse caso,
de uma distinção forte, de natureza, estabelecida por
Bergson entre matéria, de um lado, e memória/espírito
de outro. Só a partir dessa distinção de natureza é que
Bergson pôde ultrapassar as falaciosas e falsas questões
identificadas nas perspectivas presentes tanto na
tradição filosófica quanto implicadas nas concepções
científicas de sua época. Creio que essa questão pode ser
mais bem esclarecida se articulada à que se segue.
IHU On-Line - Até que ponto essas proposições da
filosofia bergsoniana aprofundam o dualismo corpo e
mente?
Maria Cristina Franco Ferraz – Trata-se sim de
dualismo, mas Bergson nos leva a pensar que talvez nem
todo dualismo se equivalha. Curiosamente, creio que
essa questão mesma – em toda a sua legitimidade e
inflexão contemporânea – não deixa de também sinalizar
uma suspeita cara à contemporaneidade e por vezes
caricaturalmente expressa no horror “pós-moderno” a
toda e qualquer forma de dicotomização. Nesse sentido,
aproximar-se de Bergson requer uma delicadeza e
sutileza maior do pensamento, aptas a nos tornar,
também nós leitores contemporâneos, de algum modo
aproximados da “extemporaneidade” da obra. Como se
trata de um dualismo erigido em um novo solo, os pólos
da oposição corpo/mente não me parecem poder ser
facilmente “superponíveis”, redutíveis ao dualismo
matéria/memória introduzido por Bergson, que, de modo
explícito, procurou repensar exatamente o vínculo entre
matéria e algo que, sendo de uma natureza diversa, ele
chamou de memória. Ora, o vínculo só poderia ser
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pensado mantendo-se a distinção de natureza entre os
dois elementos. Mas esta seria apenas uma explicação
“lógica”, dizendo respeito à mera (e impressionante)
coerência do pensamento de Bergson. Quando matéria
passa a ser entendida como um conjunto de imagens
interligadas, a percepção como estando “nas coisas”, o
corpo como funcionando na tensão entre esquecimento e
memória – pensadas através do mecanismo da
virtualização/atualização -, memória e matéria pensadas
em termos de temporalidade, parece-me que o novo
dualismo introduzido, além de não se reduzir a uma nova
roupagem para velhos dualismos, introduz vigorosas
novas abordagens. Mas, evidentemente (e isso está
expresso desde o subtítulo da obra), Bergson está
dialogando com uma longa tradição, que renova, por
assim dizer, “por dentro” – o que está longe de ser
pouco. A meu ver, deixar-se levar pela aversão
contemporânea às dicotomias seria não um “erro”, mas,
pior do que isso, uma grande desvantagem, na medida
em que nos faria passar ao largo da riqueza da obra,
levando a que se deixe de integrar (gesto tão
bergsoniano) o que Matéria e memória nos permite
pensar e discutir hoje.
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