O projeto das redes: horizontalidade e
insubordinação*
Cássio Martinho
Em 1967, Stanley Milgram, um professor de Harvard, realizou um
estudo sobre redes de sociabilidade nos Estados Unidos. Milgram
enviou cartas a 160 moradores de uma cidade do Nebraska,
escolhidos aleatoriamente, solicitando a eles que entregassem a
mesma carta a uma única pessoa situada em Boston,
Massachusetts. A única regra era de que o documento deveria ser
passado de mão em mão somente entre pessoas conhecidas, de
modo que, ao final do processo, a carta chegasse às mãos do
destinatário em Boston. Das 160, 42 cartas chegaram ao seu
destino, passando por 5,5 intermediários em média. O
experimento de Milgram ficou famoso por demonstrar
empiricamente o grau de interconexão entre pessoas e a maneira
como se constroem os fluxos de sociabilidade num determinado
território.
O estudo de Milgram exibe uma clara ilustração da inserção de
cada um na trama das redes. Cada habitante do planeta é o
centro de uma enorme estrutura de relacionamentos de vários
tipos, que envolvem outros indivíduos (familiares, amigos,
vizinhos, colegas de trabalho) e organizações (como empresas,
escolas, clubes, associações, governos etc.). Redes variadas
podem, por exemplo, ser traçadas tendo como centro uma
mesma pessoa, e uma mesma pessoa pode pertencer a um sem-
número de diferentes redes de relacionamentos. Essa estrutura
que reúne vários elementos e suas interligações é o que
chamamos de rede.
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Um aspecto interessante que o estudo de Milgram permite
vislumbrar é justamente a capacidade de crescimento exponencial
dessa rede pessoal de contatos. Quando um indivíduo encontra-
se com outro indivíduo, de maneira automática, as duas redes
das quais eles são o centro magicamente estabelecem também
um relacionamento. As redes se entrelaçam e o potencial de
contatos pessoais de cada um dos indivíduos, de um só golpe,
dobra de tamanho. Todos os contatos possíveis do primeiro
indivíduo tornam-se os contatos possíveis do segundo e vice-
versa. Como pessoas conhecem pessoas o tempo todo, as redes
de contatos pessoais estão sempre em expansão e mutação, num
processo de rearranjo contínuo dos elementos e suas
interligações. Aqui, uma característica da estrutura das redes fica
evidente: elas são móveis, plásticas, dinâmicas; não cessam
nunca de mudar.
Seguindo esse raciocínio, fica fácil concluir que, pelo
entrelaçamento das diversas redes das diversas pessoas que vão
se conhecendo ao longo da vida, acabamos, cada um de nós, por
pertencer a uma única e quase ilimitada rede de redes. A teia das
relações humanas, por conseguinte, pode cobrir o mundo inteiro,
e, confirmada a tese de Milgram, seria possível chegar-se a
conhecer, com apenas 5,5 apertos de mão, qualquer pessoa em
qualquer parte do planeta.
A imagem da rede planetária de relacionamentos humanos pode
ser vista também como uma metáfora da nossa capacidade de
agir sobre o mundo. Sendo verdade que estamos todos “ligados”
uns aos outros, seria possível então fazer qualquer coisa. Porém,
mesmo estando virtualmente conectados uns aos outros, não
agimos como se fosse assim. Apesar de dispostos em rede, não
operamos em rede.
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Uma “sociedade em rede”
Diferentemente porém da perspectiva de Milgram, outros autores,
como o sociólogo espanhol Manuel Castells, também enxergam
no desenho da rede a morfologia das relações sociais no mundo
contemporâneo. Para Castells, a própria contemporaneidade pode
ser definida pelo estar em rede: “Redes constituem a nova
morfologia social de nossas sociedades, e a difusão da lógica de
redes modifica de forma substancial a operação e os resultados
dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura.”1
A disseminação dos aparatos tecnológicos de comunicação e
informação (como satélites, telefones celulares, computadores e a
Internet), que reorganizaram as noções de tempo e de espaço no
século 20 e permitiram o trabalho à distância, a informação em
tempo real e a movimentação eletrônica de capitais, acabou por
estimular o reconhecimento de um padrão de troca social
baseado na integração de um conjunto variado de elementos
dispersos no espaço. A tecnologia deu visibilidade a esse esforço
de integração (ou de interconexão). Cunhou-se a noção de
conectividade (a capacidade de produzir conexões). E os sistemas
de comunicação – que são baseados na interconexão de antenas
emissoras, satélites e antenas receptoras, ou, como no caso da
Internet, na interconexão de computadores – acabaram por
tornar-se paradigma do sistema social. Não é à toa que, na
sociedade da informação, vimos emergir a rede como padrão de
organização.
Como diz Castells,
“redes são instrumentos apropriados para a economia
capitalista baseada na inovação, globalização e
1 Castells. Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 497.
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concentração
descentralizada;
para
o
trabalho,
trabalhadores e empresas voltadas para a flexibilidade e a
adaptabilidade; para uma cultura de desconstrução e
reconstrução contínuas; para uma política destinada ao
processamento instantâneo de novos valores e humores
públicos; e para uma organização social que vise a
suplantação do espaço e a invalidação do tempo”2.
Melhor do que outros desenhos organizacionais, a forma da rede
parece permitir a existência e o funcionamento de sistemas
globais de amplo alcance. Só por meio da rede é possível, por
exemplo, aos grandes grupos transnacionais manter em
funcionamento unidades industriais ou comerciais espalhadas
pelos quatro cantos do mundo. É o que Castells chamou acima de
“concentração descentralizada”. O alto grau de capilaridade da
operação das organizações transnacionais exige, para que se
obtenha resultados, um desenho reticular integrador de unidades
com alguma autonomia, uma contínua troca de informações entre
os elementos do sistema e uma gestão flexível. Aqui a arquitetura
da rede é acompanhada por um modo de controle –
descentralizado – que lhe é compatível.
Não é só no universo do mercado e da globalização econômica
que o padrão de organização em rede pode ser observado. No
âmbito da sociedade civil, por exemplo, e sua miríade de
organizações não-governamentais e movimentos sociais rurais e
urbanos, as redes assumem um papel significativo como
instrumento de organização e mobilização das lutas. É, talvez,
nesse universo que parecem despontar os exemplos mais bem
acabados do que seja de fato uma operação em rede, na qual
cada um dos elementos estabelece uma relação de
interdependência com os demais, onde a ação é cooperativa, o
2 Castells. Op. cit., p. 497.
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poder de decisão é descentralizado e as interações são regidas
por regras e por valores democráticos.
Uma definição
Castells nós dá uma definição minimalista de rede: “Rede é um
conjunto de nós interconectados. Nó é o ponto no qual uma curva
se entrecorta.”3 Embora tal definição seja sucinta demais, ela nos
apresenta a estrutura básica de uma rede, que poderia ser
descrita, também sumariamente, como um conjunto de
elementos ligados entre si e suas respectivas interligações.
Euclides André Mance, um estudioso e militante das redes de
economia solidária, vai mais adiante em sua tentativa de
definição:
“Trata-se de uma articulação entre diversas unidades que,
através de certas ligações, trocam elementos entre si,
fortalecendo-se reciprocamente, e que podem se
multiplicar em novas unidades, as quais, por sua vez,
fortalecem todo o conjunto na medida em que são
fortalecidas por ele, permitindo-lhe expandir-se em novas
unidades ou manter-se em equilíbrio sustentável. Cada
nódulo da rede representa uma unidade e cada fio um
canal por onde essas unidades se articulam através de
diversos fluxos.”4
Aqui a idéia de conjunto fica evidente e o fortalecimento mútuo
entre a parte e o todo ganha ênfase. O que essas duas
formulações não ressaltam, contudo, é o caráter da rede como
uma forma de organização, como um modo de organizar
elementos distintos e fazê-los funcionar em conjunto e de
maneira coordenada. Pode-se sem esforço imaginar uma
3 Castells. Op. cit., p. 498.
4 Mance, Euclides. A Revolução das Redes. A colaboração solidária como alternativa
pós-capitalista à globalização atual. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 24.
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estrutura composta por elementos interligados, mas cujo
resultado não é nada além de confusão, dispersão e ineficácia. Ao
contrário, talvez o mais importante a salientar sobre o formato
rede é a sua capacidade organizativa, que se revela tão (ou mais)
eficaz quanto modelos baseados em hierarquia e comando
central.
A rede é, portanto, um tipo de organização específico, que se
distingue das demais por conta de seus aspectos formais (a
arquitetura reticular) e seus aspectos processuais ou operacionais
(o modus operandi de rede). A organização-rede é fundada na
multiplicidade de elementos que estão interligados e,
especialmente, na horizontalidade
das interligações. Tal
configuração exige e provoca um outro modo de funcionamento.
Esse modus operandi, como veremos a seguir, torna-se
indissociável da arquitetura da rede e é na verdade aquilo que
exprime todo o potencial de uso dessa arquitetura.
Uma organização horizontal
Em primeiro lugar, é importante enfatizar que, numa
organização-rede, os elos que unem seus diversos elementos são
resultado de uma pactuação voluntária e não-compulsória. O
pertencimento a uma rede não pode ser fruto de imposição ou
constrangimento. Se retomarmos a imagem dos apertos de mão
de Milgram, torna-se fácil associar os momentos de atrofia ou de
interrupção da multiplicação de uma rede de contatos pessoais às
situações de constrangimento ou má vontade. A rede se
interrompe nos pontos de inimizade ou incompatibilidade e deixa
de existir para além deles. A adesão voluntária é o pressuposto
fundamental da organização em rede; é ela que faz surgir as
interconexões e que as mantêm ativas.
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Da pactuação – ou, em outras palavras, do acordo – inicial
decorrem outros traços distintivos do modo de operação das
redes, tais como: o trabalho cooperativo, o respeito à autonomia
de cada um dos elementos, a ação coordenada, o
compartilhamento de valores e objetivos, a multiliderança, a
democracia e, especialmente, a desconcentração do poder. A
gênese da rede pelo acordo é por si só a resultante da
combinação de vários desses elementos: quando entes
autônomos estabelecem um pacto, este já pressupõe um
conjunto de termos que são compartilhados e a predisposição (no
caso das redes, compromisso) de trabalhar cooperativamente.
O respeito à autonomia, por sua vez, condiciona e é condicionado
pelo estabelecimento de regras de convivência democrática, pelas
quais as diferenças entre os integrantes são reconhecidas e a
eqüidade nas inter-relações no âmbito da rede é promovida. Daí
que as decisões são tomadas e a gestão da rede se dá de forma
participativa (de outra forma, não haveria eqüidade). A
possibilidade de participação na tomada de decisão é também o
que exprime e garante, no final das contas, a autonomia de cada
um. A liderança é exercida, de forma dinâmica, por cada um dos
membros quando convém ou é necessário, segundo as
circunstâncias e de acordo com a capacidade operacional de cada
um. O funcionamento de todo o sistema é garantido pelo
compartilhamento dos propósitos, regras e valores da rede,
livremente pactuados e geridos coletivamente.
A rede é também uma espécie de pacto de insubordinação, cuja
função é a diluição do poder e sua distribuição eqüitativa pelos
nós que compõem a rede. Esse pacto de insubordinação reduz a
possibilidade de ocorrência de hierarquia na rede. Ele é baseado
no princípio da isonomia, isto é, a sujeição de todos os membros
aos mesmos princípios e regras de funcionamento. Se todos se
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submetem às mesmas leis, se a lei é igual para todos e se
nenhum dos elementos é subordinado (recebe ordens) a qualquer
outro, o poder não tem chance de se concentrar em um ponto
específico da rede.
O resultado é um processo de descentralização radical, que deve
ser compreendido em sua dupla manifestação. Primeiro, a
descentralização é uma operação de distribuição: aloca num
grande número de pontos diferentes a capacidade de sustentação
do sistema, repartindo o poder pelo conjunto dos participantes.
Nesse sentido, cada um detém apenas um naco de poder e é tão-
somente o poder do conjunto que é funcional e operativo. Noutro
sentido, a descentralização é uma operação de potencialização:
cada ponto é um virtual centro de toda a rede, para onde podem
convergir todas as ações e de onde podem brotar as decisões. Há
um investimento de confiança e de poder no participante do
sistema, qualquer que seja ele, que pode numa determinada
circunstância “representar” a rede ou assumir-se como sendo a
rede inteira.
Esse duplo mecanismo da descentralização (que distribui poder
entre todos e dá poder a cada um), derivado dos princípios de
isonomia e insubordinação, é o que garante o caráter de
horizontalidade da rede. Esse é, portanto, o seu principal aspecto
distintivo (no limite, a verdadeira organização horizontal só pode
ser uma rede). Rede é justamente a expressão e o resultado final
de um processo radical de horizontalização das estruturas de
poder – um processo de fracionamento e desconstrução do poder
tal como ele está erigido.
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Uma nova institucionalidade
A idéia de rede parece partilhar do espírito que orienta a busca
por aquilo que chamamos hoje de “novas institucionalidades”,
formas alternativas de organização da sociedade, seja no
exercício do poder político, da deliberação e da tomada de
decisão, seja no campo da gestão de processos, seja no campo
da produção de bens e serviços, nos âmbitos do mercado, do
Estado e da sociedade civil. Tais novas institucionalidades
representam a tentativa de fundar organizações humanas
capazes de acompanhar a velocidade das mudanças na sociedade
pós-industrial e de funcionar nesse ambiente móvel (uma vez
que, ao que tudo indica, as velhas instituições já não funcionam
como antes). Contudo, devem ser elas principalmente capazes de
promover os avanços políticos, econômicos e sociais necessários
para por fim à miséria e à exclusão social (objetivo que tampouco
as instituições de velho tipo conseguiram alcançar; ao contrário,
foram elas justamente as responsáveis por acentuar esse
quadro).
As redes são um exemplo de institucionalidade nova possível,
inscritas na perspectiva da ampliação dos direitos sociais e da
radicalização da democracia. E, desse modo, exibem um
componente político importante: a organização-rede veicula uma
mensagem de caráter pedagógico que descortina a possibilidade
de os atores sociais fundarem um outro estado de coisas. As
redes, nesse sentido, são uma espécie de projeto demonstrativo
da democracia radical em funcionamento, da lógica colaborativa
como paradigma das relações sociais. Sua história ainda estar por
ser escrita e seu exercício, hoje, só está começando, mas por isso
mesmo, pela sua incipiência e pelo seu inacabamento, as redes
demonstram ser um campo fértil para o esforço de pesquisa e os
investimentos do pensamento e da ação.
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O desafio que se impõe, assim, é o de compreender a fundo a
natureza da arquitetura múltipla e multidimensional da rede e o
de instituir mecanismos eficazes de operação e de gestão do
trabalho em rede. O desafio aponta para o equacionamento de
problemas de cultura política e gerencial, tais como: as exigências
democratizadoras e emancipatórias de um projeto distributivo de
poder, a gestão da impermanência e da mobilidade da estrutura
reticular (na medida em que materialidades são substituídas por
fluxos de informação) e a superação da noção de controle
implicada no conceito de gestão. Como se vê, questões afeitas a
campos disciplinares distintos, mas cuja resolução não só precisa
se dar no plano teórico, como também, e fundamentalmente, no
campo da experiência.
______
* Publicado em Aminoácidos 2, revista da Agência de Educação
para o Desenvolvimento - AED (www.aed.org.br)
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