SÃO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIÇÃO 237
Revista IHU ON-Line
Desvendar a consciência que nos habita
ENTREVISTA COM ERIC LECERF
Na opinião do filósofo francês Eric Lecerf, uma das proposições mais importantes
contidas em A evolução criadora, obra que neste ano completa um centenário de
lançamento, é o convite a “desvendar a consciência que nos habita” Para Lecerf,
“isso nos conduz, desta forma, a atingir um conhecimento verdadeiro do ser vivo,
pois nossa consciência procede de uma intenção da vida, por ser da mesma um
desdobramento, da qual a intelectualidade nada saberia dizer pela simples razão
de que ela é uma expressão da mesma entre outras, ou antes, para retomar
Bergson, uma orientação de uma tendência. Trata-se de uma virada radical no seio
da filosofia: conhecer o vivente implica um conhecimento interior, uma experiência
de si que encontra na intimidade da percepção o que é o absoluto de um movimento
incessante, no qual a vida encontra toda a sua substância”. Confira a seguir a
íntegra da entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Lecerf é professor de Filosofia na Universidade Paris VIII, Saint-Denis e autor de
inúmeros livros, entre os quais Le sujet du chômage (Paris, Budapest, Torino:
Harmattan, 2002) e La famine des temps modernes: es sai sur le chômeur (Paris:
Harmattan, 1992). Obteve diploma em História Contemporânea pela École des
Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e foi diretor de programa no Collège
International de Philosophie (Colégio Internacional de Filosofia). Publicou vários
artigos sobre o trabalho de filósofos como Henri Bergson, Simone Weil e Georges
Sorel. Lecerf concedeu entrevista, por e-mail, à IHU On-Line, publicada nos Cadernos
IHU Em Formação, edição 13, intitulada Michel Foucault. Sua contribuição para a
educação, a política e a ética e encontra-se disponível para download no site do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, www.unisinos.br/ihu. O título da entrevista é
Foucault e a genealogia da modernidade.
IHU On-Line - No contexto da filosofia de Bergson,
como se explica a valorização que ele deu à intuição,
deixando a inteligência em segundo plano? Qual é a
explicação filosófica para esta opção?
Eric Lecerf - Em primeiro lugar, não me parece correto
dizer que Bergson teria colocado a inteligência em
segundo plano em relação à intuição. Na verdade, ele se
esforçou em marcar os limites de uma inteligência
implicada pela lógica num momento em que a filosofia
era compartilhada entre positivismo e irracionalismo.
Bergson explica que ele próprio hesitou por muito tempo
antes de utilizar o termo intuição. Em seu primeiro livro,
o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência,
publicado em francês em 1889, a intuição como conceito
só aparece nos usos correntes da filosofia clássica. Ele
faz mesmo referência, nesta obra, a uma “intuição
matemática” que não corresponde em nada à intuição
bergsoniana. Portanto, o que Bergson chamará mais
tarde de intuição está no centro deste ensaio, mas sob a
forma de um sentido particular totalmente voltado para
a percepção pura e a compreensão da duração. Em
Matéria e memória, seu segundo livro, publicado sete
anos mais tarde, a intuição só aparece verdadeiramente
no terceiro capítulo e é deduzida da experiência de re-apreensão
colocada na introdução do livro (eu nada sei
da matéria, nem do corpo e do espírito... o que é que me
aparece: imagens). Só é realmente em A introdução à
metafísica, artigo publicado em 1903, que Bergson
conjuga uma relação específica entre intuição e método,
cujos fundamentos ontológicos ele retomará cerca de dez
anos mais tarde, numa conferência intitulada “A intuição
filosófica”. Seu objetivo não é o de condenar a
inteligência nem mesmo rebaixá-la, mas simplesmente o
de notar que a inteligência, estando interessada pela
ação e levada por uma necessidade de espacializar sua
duração, não pode de forma alguma tocar na essência da
vida que é móvel. A inteligência constrói mundos, instrui
artífices, produz sistemas, ela é uma potência ativa. Mas
captar a vida implica, para Bergson, renunciar a esta
potência e retomar aquele sentido íntimo, ao qual, por
não dispor de um termo novo, ele dará o nome de
intuição.
IHU On-Line - De que modo as esquerdas se
apropriaram do bergsonismo? Qual é o uso que elas
fizeram do conceito de “elã vital”?
Eric Lecerf - Para responder a esta questão, seria
preciso estar em condições de redimensionar o que
constituía, então, a paisagem política no seio da qual
uma parte da esquerda apelaria ao bergsonismo. De que
se trata? De modo geral, de dissidentes ou de
intelectuais que levavam a peito fazer evoluir o
marxismo fora dos dogmas nos quais suas determinações
científicas o inscreveram. Para ser mais claro, no
momento em que uma maioria dos intelectuais de
esquerda aderia a um positivismo implicando uma série
de determinismos históricos. Aqueles que se declaravam
adeptos do bergsonismo procuravam precisamente
defender noções de virtualidade e espontaneidade para
explicar os movimentos revolucionários. Os nomes que se
impõem são os de Georges Sorel 2 , Edouard Berth 3 e
Charles Péguy 4 . Sorel ocupa efetivamente, nesta história,
um lugar essencial. Autor das Reflexões sobre a
violência (Petrópolis: Vozes, 1993), nelas ele faz
explicitamente referência à conexão bergsoniana entre
inteligência e intuição, para opor o socialismo teórico
das seitas marxistas ao sindicalismo revolucionário.
Associando o nome de Bergson aos de Proudhon 5 e de
Vico 6 , ele explica que é nesta percepção intuitiva da
história que se produz o novo. As teses de Sorel terão
influência particularmente importante na Itália. Antonio
Gramsci 7 escreverá, então, um artigo em 1921, intitulado
“bergsoniano!”, onde ele reivindicará a participação
nesta herança. Na França, Bergson será, no entanto,
objeto de críticas importantes da parte dos jovens
filósofos marxista.
no conexto da Filosofia
contemporânea, qual é o lugar ocupado por Bergson?
Eric Lecerf - O nome de Gilles Deleuze se impõe
aqui, e eu poderia mesmo dizer que por vezes ele tende
a ocupar todo o espaço, como se Bergson tivesse tido por
principal interesse ser um “pré-deleuziano”. Mais
seriamente, a leitura que fez Gilles Deleuze de Bergson é
verdadeiramente muito forte. Desde 1956, ele publica
dois artigos (republicados em Iles desertes), que
permitem compreender o que Deleuze veio procurar em
Bergson, a saber, um método implicando uma teoria do
conhecimento que associasse o empirismo e a busca de
um absoluto. Desde esses artigos, Deleuze define a
filosofia como criação de conceitos e é, no entanto, em
Bergson, que explica que convém para a filosofia pensar
por imagens antes do que por conceitos, que ele vem
procurar seus predicados teóricos. De fato, o conceito
deleuziano é primeiramente derivado da imagem
bergsoniana, desta imagem da qual Bergson dizia possuir
três qualidades. Em primeiro lugar, ela induz uma
pluralidade de sentidos lá onde o conceito procura
destacar uma univocidade; em segundo lugar, ela é
concreta lá onde o conceito é por essência abstrato; em
terceiro lugar, sua imprecisão constrange a um exercício
da atenção que se aproxima bastante da intuição, lá
onde o conceito tende à expressão de uma certeza. E são
estas qualidades que permitem a Deleuze situar a
invenção de um novo valor do conceito como foco de
indeterminação entre o que ele chama de articulações do
real e de linhas de fatos; entre a coleção de qualidades
11 Gilles Deleuze (1925-1995), filósofo francês. Assim como Foucault,
foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Bergson, Nietzsche e
Espinosa poderosas intersecções. Professor da Universidade de Paris
VIII, Vincennes, Deleuze atualizou idéias como as de devir,
acontecimentos, singularidades, enfim conceitos que nos impelem a
transformar a nós mesmos, incitando-nos a produzir espaços de criação
e de produção de acontecimentos-outros. (Nota da IHU On-Line)
que induz uma categoria e o nome etiqueta que se
desdobra numa multidão de aventuras lingüísticas.
Vinte e cinco anos mais tarde, Deleuze retomará a
imagem bergsoniana para pensar, desta vez, não o
cinema 12 , mas antes as condições de possibilidade de
uma filosofia na era do cinema. E é então que, seguindo
um caminho inverso, Deleuze repensa uma imagem
bergsoniana, inteiramente enriquecida por jogos, nos
quais o conceito se desdobrou como virtualidade
gramatical e existencial.
IHU On-Line - Como pode a obra A evolução criadora
ajudar-nos a reler e compreender a pós-modernidade
em sua complexidade?
Eric Lecerf - Eu jamais compreendi o que se poderia
designar pelo termo de “pós-modernidade”. Basta, aliás,
reler a introdução de La pensée et le mouvant (O
pensamento e o movente 13 ), notadamente a parte
intitulada “a lógica retrospectiva do verdadeiro”, para
constatar até que ponto este conceito é vazio de sentido.
IHU On-Line - Quais são as proposições filosóficas
desta obra que o senhor considera as mais
importantes?
Eric Lecerf - A evolução criadora é um livro
fascinante no seio do qual Bergson se dedica, não só a
defender uma tese, mas também a ilustrar e adaptar um
estilo de escritura suscetível de trazer nele essas linhas
de virtualidades, pelas quais a vida se desenvolve sem
cessar. Eu retomaria, pois, uma tese que me parece
decisiva, isto é, sem a qual a obra de Bergson seria
ilegível. Bergson nos engaja, em A evolução criadora,
num trabalho de recompreensão da vida em nós. De que
12 Sobre o tema, confira nesta edição a entrevista com Adrián Cangi,
A crítica bergsoniana ao cinema. (Nota da IHU On-Line)
13 BERGSON, Henri; BACHELARD, Gaston. Cartas, conferencias e
outros escritos. São Paulo: Abril Cultural, 1974. 514 p. (Coleção Os
Pensadores). (Nota da IHU On-Line)
se trata? De um conhecimento psicológico de nossa
personalidade? Absolutamente. Para Bergson, trata-se de
bem outra coisa do que do inconsciente. Pelo contrário,
o que ele nos engaja mesmo a redescobrir em nós é
precisamente aquilo que ele chama de consciência. Mas
de que consciência se trata? De uma consciência que
perpassa todo ser vivo, que está em cada um de nós em
ato e que, no mundo vegetal, permanece em posição de
torpor. De uma consciência que é a vida. Desvendar a
consciência que nos habita, isso nos conduz, desta
forma, a atingir um conhecimento verdadeiro do ser vivo,
pois nossa consciência procede de uma intenção da vida,
por ser da mesma um desdobramento, da qual a
intelectualidade nada saberia dizer pela simples razão de
que ela é uma expressão da mesma entre outras, ou
antes, para retomar Bergson, uma orientação de uma
tendência. Trata-se de uma virada radical no seio da
filosofia: conhecer o vivente implica um conhecimento
interior, uma experiência de si que encontra na
intimidade da percepção o que é o absoluto de um
movimento incessante, no qual a vida encontra toda a
sua substância.
IHU On-Line - De que forma o ser humano consegue
mover-se na dicotomia dos dois mundos nos quais ele
vive: o do conhecimento imediato (onde tudo é
“continuum”) combinado com o do tempo, concebido
como construção intelectual?
Eric Lecerf - A resposta a esta questão me parece
estar em parte respondida na precedente. A verdadeira
questão não é a de saber como o humano consegue
mover-se, mas antes, como ele chega a crer que ele
construiu uma estabilidade. Assim, poder-se-ia dizer que
toda a história intelectual se declina como uma
perseguição ao infinito desta busca de estabilidade. Isso
é verdade na produção de instituições, bem como nesse
cuidado de ordem que, mesmo quando nos damos um
destino de revolucionários, configura uma parte decisiva
de nossos atos. A filosofia de Bergson não procura, de
nenhum modo, afastar-nos das formas graças às quais nós
tentamos congelar o movimento. Ele procura
simplesmente lembrar-nos que estas formas são apenas
ilusões e que o conhecimento da vida, que deve fundar
toda metafísica, não saberia satisfazer-se com essas
formas. Não é menos verdade que há em Bergson uma
verdadeira análise daquilo que o marxismo chamará de
coisificação. Em Bergson, tratar-se-á antes de um tornar-se
autômato, do repetitivo que tende a rejeitar toda
intrusão do inédito. De fato, como o mostra Deleuze em
Diferença e repetição (2 ed.: São Paulo: Graal, 2006),
mesmo lá onde tudo parece congelado, o movimento se
insere na própria repetição como elemento de
diferenciação. Em Bergson, encontra-se isso
efetivamente, mas sem esse otimismo desesperado que
caracteriza a filosofia de Deleuze. De fato, ninguém
escapa à vida, afora aquele que a teoriza. Dito de outra
forma, se há um autômato absoluto em Bergson, este não
é o operário que trabalha em série, mas o filósofo que
crê que a vida seja uma questão de leis e de sistemas
lógicos.
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