Núcleo de Estudos do Futuro
Autor(es): Pierre Lévy
O que seria o espaço cibernético? O espaço cibernético é um terreno onde está funcionando a humanidade, hoje. É um novo espaço de interação humana que já tem uma importância enorme sobretudo no plano econômico e científico e, certamente, essa importância vai ampliar-se e vai estender-se a vários outros campos, como por exemplo na Pedagogia, Estética, Arte e Política. O espaço cibernético é a instauração de uma rede de todas as memórias informatizadas e de todos os computadores. Atualmente, temos cada vez mais conservados, sob forma numérica e registrados na memória do computador, textos, imagens e músicas produzidos por computador. Então, a esfera da comunicação e da informação está se transformando numa esfera informatizada. O interesse é pensar qual o significado cultural disso. Com o espaço cibernético temos uma ferramenta de comunicação muito diferente da mídia clássica, porque é nesse espaço que todas as mensagens se tornam interativas, ganham uma plasticidade e têm uma possibilidade de metamorfose imediata. E aí, a partir do momento que se tem o acesso a isso, cada pessoa pode se tornar uma emissora, o que obviamente não é o caso de uma mídia como a imprensa ou a televisão. Então, daria para a gente fazer uma tipologia rápida dos dispositivos de comunicação onde há um tipo em que não há interatividade porque tem um centro emissor e uma multiplicidade de receptores. Esse primeiro dispositivo chama-se Um e Todo.
Uma outra versão é o tipo Um e Um, que não tem uma emergência do coletivo da comunicação, como é o caso do telefone. O espaço cibernético introduz o terceiro tipo, com um novo tipo de interação que a gente poderia chamar de Todos e Todos, que é a emergência de uma inteligência coletiva. Do interior do espaço cibernético encontramos uma variedade de ferramentas, de dispositivos, de tecnologias intelectuais. Por exemplo, um aspecto que se desenvolve cada vez mais, nesse momento, é a inteligência artificial. Há também os hipertextos, os multimídia interativos, simulações, mundos virtuais, dispositivos de tele-presença. É preciso não esquecer, por outro lado, que a própria mídia hoje está numa hibridação com o espaço cibernético, onde ela se vê obrigada a se abrir para isto... Mas, o que há de comum entre todas essas tecnologias, entre todas essas formas de mensagens? O que implica uma mensagem numerada e os outros tipos de mensagens? Uma mensagem numeralizada se caracteriza pelo fato de que se pode controlar essa estrutura de perto e de maneira muito fina. Então, os bits da informática são como gens na genética, isto é, a microestrutura. Fazem parte de um conjunto de tecnologia e vão em direção a um controle molecular de seu objeto, o que dá uma fluidez a todas essas mensagens e lhes dá também a possibilidade de uma circulação muito rápida. O que há em comum em todas as bases nos bancos de dados do espaço cibernético? Não são as mensagens fixas, mas um potencial de mensagens e que, dependendo de quem vai utilizá-los, vai para uma direção ou outra. O que acontece é que, com isso, se recupera a possibilidade de ligação com um contexto que tinha desaparecido com a escrita e com todos os suportes estáticos de formação. É possível através disso reencontrar uma comunicação viva da oralidade, só que, evidentemente, de uma maneira infinitamente mais ampliada e complexificada. Por exemplo, é isto que observamos com o que acontece, hoje, com o hipertexto ou multimídia interativa. O importante é que a informação esteja sob forma de rede e não tanto a mensagem porque esta já existia numa enciclopédia ou dicionário.
Portanto, a verdadeira mutação se passa noutros aspectos. Em primeiro lugar, não é mais o leitor que vai se deslocar diante do texto, mas é o texto que, como um caleidoscópio, vai se dobrar e se desdobrar diferentemente diante de cada leitor. O segundo ponto é que tanto a escrita como a leitura vão mudar o seu papel, porque o próprio leitor vai participar da mensagem na medida em que ele não vai estar apenas ligado a um aspecto. O leitor passa a participar da própria redação do texto à medida que ele não está mais na posição passiva diante de um texto estático, uma vez que ele tem diante de si não uma mensagem estática, mas um potencial de mensagem. Então, o espaço cibernético introduz a idéia de que toda leitura é uma escrita em potencial. O terceiro ponto que, sem dúvida, é o mais importante, é que estamos assistindo uma desterritorialização dos textos, das mensagens, enfim, de tudo o que é documento: tanto o texto como mensagem se tornam uma matéria.
Assim como se diz “tem areia”, “tem água” se diz “tem textos”, “tem mensagens” pois eles se tornam matérias como se fossem fluxos justamente porque o suporte deles não é fixo, porque no seio do espaço cibernético qualquer elemento tem a possibilidade de interação com qualquer outro elemento presente. Então, isso não é uma utopia daqueles que experimentaram, conhecem e participam da Internet. É como se todos os textos fizessem parte de um texto, só que é o hipertexto, um autor coletivo e que está em transformação permanente. É como se todas as músicas passassem a fazer parte de uma mesma polifonia virtual e potencial, como se todas as músicas fizessem parte de uma só música, também ela virtual e potencial. Acredito que o texto não vai absolutamente desaparecer com a informatização. O que vai desaparecer é a noção de página, porque na etimologia a página se refere a um campo e um campo com proprietário, com fronteiras delimitadas . Esta página com o campo circunscrito está desaparecendo uma vez que os elementos que a compõem navegam nos fluxos.
O espaço cibernético envolve, portanto, dois fenômenos que estão acontecendo ao mesmo tempo: a numerizaqção que implica essa plasticidade de potencial de todas as mensagens seria o primeiro aspecto e o fato de que as mensagens potenciais são postas em rede e fluxo é o segundo fenômeno.
Desta forma, o espaço cibernético está se tornando um lugar essencial, um futuro próximo de comunicação humana e de pensamento humano. O que isso vai se tornar em termos culturais e políticos permanece completamente em aberto, mas, com certeza, dá para ver que isso vai ter implicações muito importantes no campo da educação, do trabalho, da vida política, das questões dos direitos, como por exemplo, no direito de propriedade. Hoje não se pode ter um projeto técnico se você não tiver uma visão cultural organizadora desse projeto, assim como não se pode ter um projeto cultural sem incluir a técnica. Por isto, é difícil estar distinguindo essas dimensões sociais, culturais e técnicas.
O espaço cibernético se encontra também na origem de uma nova arquitetura, de um novo urbanismo. Poderíamos até dizer de uma nova política porque se trata de uma nova pólis que está se constituindo. É assim que pedagogos, artistas, psicólogos, etc, que geralmente não se interessavam por fenômenos técnicos tem passado a se preocupar com estes problemas. O novo equipamento coletivo de sensibilidade, de inteligência, de relação social está, de fato, nascendo em silêncio. Trata-se de um equipamento coletivo de subjetivação. Para falar do critério de escolha em relação a essa questão da técnica, o critério que este novo equipamento propõe é um critério de escolha ética e política.
O interessante nas possibilidades que se abrem com a emergência de uma nova inteligência a partir disto é que se trata de uma inteligência coletiva, ou seja, estamos na direção de uma potencialização da sensibilidade, da percepção, do pensamento, da imaginação e isso tudo graças a essas novas formas de cooperação e coordenação em tempo real. Trata-se de equipamentos que podem ajudar o aprendizado e a aquisição de saberes. Então, o inimigo necessário de ser evitado é o isolamento, a separação. É preciso pensar em equipamentos de comunicação que, ao invés de fazer uma difusão como a mídia tradicional (difusão de uma mensagem por toda parte), faz com que esses dispositivos estejam à escuta e restituam toda a diversidade do presente no social. Uma outra coisa que é possível explorar é o fato de que estes equipamentos favorecem a emergência da autonomia, tanto de indivíduos quanto de grupos, onde o inimigo é a dependência.
É preciso imaginar, então, que a partir desses sistemas de comunicação quanto mais eles sejam utilizados mais eles se aperfeiçoam, se desenvolvem, ficam melhores. O que acontece hoje é o contrário: as informações vão se degladiando e cada um fica perdido nessa massa de informações. Com as redes, podemos pensar equipamentos de tecnologia que possam permitir que cada um se beneficie dessa inteligência.
Eu vou colocar alguns exemplos em campos diferentes, como a semiótica, epistemologia, artes e política. Começando pela semiótica eu vou propor um exercício de pensamento. Suponhamos que a gente dispõe de todos esses equipamentos atuais mas não se tem uma escrita alfabética, por exemplo. Vamos imaginar que fosse preciso inventar uma escrita não dispondo da escrita alfabética e sim dispondo de todos esses equipamentos. Seria uma escrita alfabética o que inventaríamos? Eu acho que não, porque a escrita alfabética serve par anotar o som. Hoje, a gente tem infinitos meios de gravar o som e não precisamos mais de uma escrita alfabética. Mas há também escritas que vão colocar conceitos ou idéias como é o caso dos ideogramas chineses ou as escritas matemáticas.
Quando o alfabeto foi inventado só se dispunha de suportes fixos e, no entanto, agora dispomos de suportes de outro tipo. Eu acho que a gente está longe de ter explorado o que essa variedade de novos suportes permite. O que se costuma fazer é produzir imagens na multimídia que tem a ver com o suporte estático anterior. Hoje, por outro lado, se poderia estar inventando o que se chama de ideografia dinâmica, que explora completamente a inteligência e o caráter dinâmicos desses novos suportes, constituindo-se numa introdução a modelos mentais com toda sua plasticidade e dinamismo. Isso se encontra nos jogos de vídeo, que é o começo de uma linguagem animada. Mesmo quando o conteúdo cultural dos jogos de vídeo não seja extraordinário há, sem dúvida, um potencial muito interessante. A partir desse modelo a gente vê surgir novas formas de conhecimento por simulação que é muito diferente do estilo teórico hermenêutico que se apóia no estático, na verdade universal e em critérios de objetividade. Os novos critérios têm, ao contrário, a capacidade de mudar em função do contexto local. Quanto ao aspecto epistemológico algo interessante também acontece. Em linhas gerais, podemos dizer que a humanidade desenvolveu quatro ideais ou tipos de relação com o saber. Antes da escrita, o saber era ritual, místico e encarnado por uma comunidade viva. Tem um ditado africano que diz que quando um velho morre é uma biblioteca que pega fogo, que se incendia. Temos um segundo tipo ideal de relação com o saber que é o ligado à escrita, o saber trazido pelo livro. Em geral é um livro único suposto a conter tudo, como por exemplo, a Bíblia. Aí a figura do conhecimento não é mais o velho, mas o comentador, o intérprete.
Com o advento da imprensa, há um novo tipo ideal que não é mais o livro mas a biblioteca. Como vocês sabem as enciclopédias do século XVIII, na França, já eram verdadeiras bibliotecas porque eram volumes e mais volumes. Cada palavra, cada tema remetia um a outro e, assim, já era uma espécie de hipertexto, cuja navegação na biblioteca já era muito diferente do que o livro. Do comentador e intérprete passamos à figura do sábio ou erudito.
Hoje, entretanto, estamos assistindo à desterritorialização da biblioteca. É como se estivéssemos voltando às origens, onde o portador do saber era a comunidade viva, claro que de uma forma muito mais ampliada e diferenciada. Atualmente, o hipertexto não consegue conter a velocidade com que circula a informação. Como a informação é fluxo é como se o coletivo novamente fosse portador do conhecimento.
Então, o novo portador do saber no nosso novo horizonte seria a própria humanidade. Estamos falando não da humanidade no sentido genérico mas de uma humanidade viva enquanto espaço cibernético. O espaço cibernético aqui é entendido como esse espaço virtual onde a comunidade conhece a si mesma e conhece seu próprio mundo, porque são duas faces da mesma coisa. Não se trata mais de uma enciclopédia mas de uma espécie de plasmopédia, isto é, um espaço de saber vivo e dinâmico (para quem teve a oportunidade de conhecer o projeto das árvores de conhecimento que eu apresentei ontem, é justamente essa perspectiva que se encontra aí exemplificada).
Eu vou concluir com algumas observações no campo político. A configuração dominante da esfera política hoje é a mídia com essa estrutura triangular - mídia, sondagens, eleição - onde cada ponto reforça ao outro. As pesquisas reforçam a mídia, a mídia reforça as pesquisas, que reforça a eleição e por aí vai, numa estrutura fechada a três. É uma espécie de estrutura em estrêla onde se tem um centro, que parte lá de cima e depois uma periferia na base.
Desta forma, as questões que são colocadas nestas pesquisas para a eleição já chegam prontas e aquele que responde tem a possibilidade de pensar e se colocar, dizendo sim ou não. O outro elemento do triângulo é o das eleições, onde eu voto como representante, onde cada pessoa que vota participa de uma balança e o voto vai ajudar a balança a pender para um ou outro lado. O que se faz, nestes casos, é utilizar uma espécie de poder de massa para que uma ou outra pessoa, um ou outro programa chegue ao poder. Para isto, não se utiliza praticamente nada no sentido de trabalhar a imaginação e a inteligência das pessoas.
Então, não se tem o majoritário mas, por outro lado, a singularidade é algo que é apagada. Hoje, com a emergência do espaço cibernético podemos imaginar a emergência da imaginação e da inteligência das pessoas de uma outra forma, onde as pessoas não vão estar separadas entre si e ligadas todas em relação ao centro, mas onde serão multiplicadas as conexões transversais entre eles. E, nesse espaço de elaboração e decisão política, poderão se constituir maiorias e minorias diferentes para cada problema: cada problema vai constituir uma maioria e uma minoria. Aí, o pertencimento político não vai remeter a uma categoria massiva, a priori. Ele vai dizer respeito a uma configuração singular dentro de uma geografia de problemas limitada e construída permanentemente pela própria coletividade.
Temos, portanto os meios de restauração de uma democracia direta e em grande escala, porque, até agora, a democracia direta só podia funcionar em pequena escala, fazendo com que para milhares de pessoas espalhadas em territórios mais distantes não fossem envolvidas. Com o uso de novos instrumentos técnicos dá para fazer uma democracia direta distinta do sistema de representação (cuja organização política remete a um centro de decisão e que está completamente obsoleta na medida em que é tecnicamente obsoleto que as decisões sejam centralizadas).
* Palestra realizada no Festival Usina de Arte e Cultura, promovido pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, em Outubro, 1994.Tradução Suely Rolnik. Revisão da tradução transcrita
João Batista Francisco e Carmem Oliveira.
fonte: http://empresa.portoweb.com.br/pierrelevy/aemergen.html
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