JEAN-MARIE MULLER | Excerto do livro: O Princípio de Não Violência*
Conclusão
A idéia dominante que prevaleceu até ao presente nas nossas sociedades é que só é possível lutar
eficazmente contra a violência opondo-lhe uma contra-violência. Se tantos filósofos, tendo afir¬mado a
exigência ética da não-violência, não souberam fazer outra coisa senão reconhecer a necessidade e a
legitimidade da contra¬-violência, é porque não estiveram em posição de conceber uma ação não-violenta
contra a violência. Na nossa cultura, tudo nos leva a pensar a nossa relação com a violência através do par
vio¬lência/contra-violência e não através do par violência/não-violência. A convicção que funda a opção
pela não-violência é que a contra¬-violência não é eficaz para combater o sistema da violência porque, na
realidade, ela própria faz parte dela, e mais não faz do que mantê-la e perpetuá-la.
O princípio de não-violência implica a exigência de procurar uma maneira não-violenta de agir
eficazmente contra a violência. A experiência de muitas lutas mostrou a eficácia da estratégia da ação
não-violenta para permitir aos homens e aos povos recupe¬rarem a sua dignidade e liberdade. É claro que
esta eficácia é forçosamente relativa e o insucesso é sempre possível, mas a ação não-violenta permite ao
homem ter uma atitude coerente e respon¬sável face à violência dos outros homens. Contudo, não é a
eficácia da ação não-violenta que justifica o princípio de não-violência. Se quiséssemos limitar-nos a
fundamentar a pertinência do princípio de não-violência na eficácia da ação não-violenta, cedo ou tarde
acabaríamos por esbarrar nos limites dessa ação e, nesse momento, deveríamos recusar a legitimidade
desse princípio.
O princípio de não-violência leva-nos a operar uma revolução copernicana na nossa maneira de pensar a
eficácia da luta contra a violência. Desde há séculos que estamos habituados a pensar a eficácia como
sendo essencialmente o efeito da violência. Mais ou menos conscientemente, acabamos por identificar a
eficácia com a violência. Mas só queremos perceber a eficácia da violência e recusamo-nos a ver a
violência da eficácia, isto é, ocultamos aos nossos próprios olhos a violência da violência.
Através do par violência/contra-violência, a luta contra a vio¬lência é conduzida pela oposição frontal aos
seus efeitos mecânicos. Trata-se de um choque de duas forças físicas da mesma natureza. Para vencer a
violência, é então necessário implementar uma violência maior. É claro que, no imediato, a contra-violência
pode conseguir destruir a mola da violência contrária e fazer-nos acre¬ditar que obtivemos uma vitória. Mas, na realidade, essa vitória tem todas as probabilidades de se revelar ilusória, pois,
decididamente, fortalecemos o ascendente da violência na história, contribuímos para fechar a história na
lógica da violência, fizemos da violência uma necessidade. Recorrer à contra-violência para combater a
violência é correr o risco de alongar indefinidamente a cadeia das violências. Através do par
violência/não-violência, trata-se de destruir essa cadeia. É claro que a ação não-violenta visa igual¬mente
interromper os efeitos da violência, mas esforçando-se em primeiro lugar por lutar contra as suas causas.
Mais do que querer conter as águas da torrente, trata-se de esgotá-la na fonte.
Henri-Bernard Vergote sublinhou justamente que “a violência não poderia ser tomada por uma simples
variedade da força”: “À luz da espiritualidade que a compreende como seu oposto, ela surge igualmente
como uma atitude ou maneira de ser. ” Da mesma forma, explica ele, a espiritualidade não é uma força,
mas uma atitude. Nessa óptica, ele denuncia “o mal-entendido sobre a espiritualidade considerada do
ponto de vista exclusivo da sua possível eficácia: justificam-na então por parecer uma força, desde que
surja como o oposto simétrico da força física, produzindo os mesmos efeitos, mas por outros meios ”. Com
efeito, antes de ser uma ação, a violência é uma atitude, uma atitude para com os outros homens que cria
uma atitude em relação à morte e ao homicídio. (Notemos que a cobardia é igualmente uma atitude.) Da
mesma forma, a não-violência é antes do mais e essencialmente uma atitude, uma atitude diferente (da
covardia e) da violência, uma outra atitude em relação à morte e ao homicídio. Ela é a atitude ética e
espiritual do homem vivo que reconhece a violência como à negação da humanidade e que decide recusar
submeter-se à sua dominação. Semelhante atitude baseia-se na convicção existencial de que a não-violência
é uma resistência mais forte à violência do que a contra-violência. Decididamente, aquilo que a
ação não¬-violenta visa é criar as condições que permitam ao adversário que escolheu a violência mudar
de atitude. Esse objetivo é uma aposta que comporta um risco de morte. É precisamente nesse risco que
se encontra a esperança da vida.
Se a não-violência não passasse de um método de ação que procurasse atingir por outro meio aquilo que a
violência visa, seria então necessário julgá-la apenas pelos seus resultados, pois só eles a justificariam. E
conviria mudar de método desde o momento que fosse julgado ineficaz. Mas se a não-violência é uma
atitude, a atitude do homem racional que procura dar sentido e transcen¬dência à sua existência, então
ela justifica-se por si própria. E o homem racional não tem razão para mudar de atitude. Contudo, se a
não-violência é uma atitude que resulta de uma opção pessoal, ela alimenta um projeto de civilização que
tem vocação para se inscrever na história. A construção dessa civilização da não-violência representa hoje
uma questão essencial para o futuro da humanidade, bem como para o de cada uma das nossas
socie¬dades. Ela requer o melhor das energias de todos os homens de boa vontade. Cada um, à sua
medida, tem a possibilidade de agir para criar brechas no sistema da violência que domina as nossas
sociedades, brechas que sejam outras tantas aberturas para um futuro em que o homem reconhecerá o
outro homem como seu semelhante. Se não seria razoável afirmar que esta civilização da não-violência
triunfará - não é verdade, infelizmente, que “a ver¬dade acabe sempre por triunfar” -, é certamente
razoável querer agir para que ela possa pouco a pouco prevalecer sobre os arcaísmos de que ainda nos encontramos prisioneiros. Temos a profunda con¬vicção de que, no início do século XXI, é nessa vontade
que reside à esperança dos homens.
MULLER, Jean-Marie, O Princípio de Não-Violência – Percurso Filosófico. Lisboa, Ed. Instituto Piaget.
1 Henri-Bernard Vergote, “Esprit, violence et raison”, Études, Março 1987,p.368
2 Id., ibid., p.364.
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