TERRITÓRIOS POLÍTICOS
O trabalho desencantado
“O capital não precisa mais e precisará cada vez menos do trabalho de todos”
Leia um trecho do livro “Misérias do Presente, Riqueza do Possível”, do sociólogo austríaco André Gorz, lançado pela editora Annablume
1. O mito do elo social
Vivemos a extinção de um modo específico de pertencimento social e de um tipo específico de sociedade: aquela que Michel Aglietta chamou “sociedade salarial” e Hannah Arendt, “sociedade do trabalho” (“Arbeitsgesellschaft”). O “trabalho” pelo qual se pertencia a essa sociedade não é, evidentemente, o trabalho em seu sentido antropológico ou filosófico. Não é nem o trabalho do camponês que labora seu campo, nem do artesão que realiza sua obra, nem aquele do escritor que trabalha seu texto ou do músico que trabalha em seu piano. O trabalho que desaparece é o trabalho abstrato, o trabalho em si, mensurável, quantificável, separável da pessoa que o “fornece”, suscetível de ser comprado e vendido no “mercado de trabalho”, em suma, o trabalho mercadejável, o trabalho-mercadoria, inventado e imposto pela força e com muita dificuldade pelo capitalismo manufatureiro a partir do fim do século XVIII1.
Mesmo no apogeu da sociedade salarial, este trabalho, contrariamente ao que quer fazer crer sua idealização retrospectiva, nunca foi fonte de “coesão social” nem de integração. O “laço social” que estabelecia entre os indivíduos era abstrato e frágil. Ele os inseria, isto sim, no processo de trabalho social, nas relações sociais de produção, como elementos estreitamente imbricados e funcionalmente especializados de uma imensa maquinaria.
Socialmente determinado, homologado, juridicizado, legitimado, definido pelas competências e habilidades aprendidas, certificadas, tarifadas, este trabalho correspondia às exigências objetivas, funcionais da maquinaria econômica: da sociedade-sistema. Dava a cada um o sentimento de ser útil independentemente de sua intenção: útil de modo objetivo, impessoal, anônimo, e reconhecido como tal pelo salário que recebia e pelos direitos sociais que o acompanhavam. Tais direitos não estavam ligados à pessoa do assalariado mas à função, em si mesma indiferente, que seu emprego preenchia no processo social de produção. “Pouco importa o trabalho, desde que se tenha um emprego. Pouco importa o emprego, desde que se tenha um.” Tal era a principal mensagem ideológica da sociedade salarial: não se inquietem demais com o que fazem, o importante é que o pagamento caia no final do mês. E foi contra esta ideologia do trabalho-mercadoria, sem dignidade, nem interesse, nem sentido intrínsecos, trabalho constrangedor, opressivo, contrapartida instrumental do acesso a consumos cada vez mais opulentos, que combateram com veemência crescente os trabalhadores das fábricas, escritórios e serviços do fordismo taylorizado.
Integração e coesão sociais? Mesmo em seu apogeu, a sociedade salarial esteve dilacerada e “fraturada” pela divisão em classes e pelo antagonismo entre elas. Não era à sociedade, mas à classe, ao sindicato, ao coletivo de trabalho que os trabalhadores integravam-se e era nas lutas para transformar ao mesmo tempo seu trabalho, sua vida e a sociedade que iam buscar “identidade”, dignidade, cultura e coesão. E é contra sua coesão, sua “identidade” e sua organização de classe que “a firma”, como se diz, dirigiu a arma absoluta, irremediável: a volatilização, a individualização, a descontinuidade do trabalho, sua abolição massiva, a insegurança para todos.
“Temam, tremam.” A mensagem ideológica mudou: de “que importa o trabalho, desde que o pagamento caia no final do mês”, transformou-se em “que importa o montante do pagamento desde que se tenha emprego”. Dito de outro modo, estejam prontos a todas as concessões, humilhações, submissões, competições, traições, para obter ou conservar o emprego; pois “quem perde o emprego, perde tudo”. Tal é, senão o sentimento geral, ao menos a mensagem do discurso social dominante. Ele exalta a centralidade do trabalho, apresenta-o como um “bem”, o que é o mesmo que dizer uma mercadoria rara, como algo que se tem ou não se tem, não como alguma coisa que se faz despendendo sua energia e seu tempo; como um “bem”, para a “posse” do qual é preciso estar pronto a sacrifícios; como um “bem”, pela criação do qual -pois doravante não é o trabalho que cria riqueza, é a riqueza (aquela dos outros) que “cria trabalho”- os “criadores de trabalho”, quer dizer os empregadores, o patronato, os investidores, as empresas, merecem os encorajamentos e o reconhecimento da nação, as subvenções, os incentivos e descontos do fisco. O trabalho, um bem; o emprego: um privilégio. Privilégio cada vez mais raro, pois “vai faltar trabalho” e, quaisquer que sejam suas competências e habilidades, arrisca-se em breve ser dele “privado”.
Enorme logro: não há, e não haverá nunca mais, “trabalho suficiente” (remunerado, estável, em tempo integral) para todos, mas a sociedade -de fato: o capital- que não precisa mais e precisará cada vez menos do trabalho de todos continua repetindo que não é ela, a sociedade, ah não!, é você, quem precisa de trabalho. Com muita dificuldade e empenho, a sociedade vai se dar ao trabalho de encontrar, trazer, inventar trabalho, trabalho que ela mesma poderia facilmente dispensar, mas trabalho que você precisa absolutamente.
Fantástica inversão: não é mais aquele ou aquela que trabalha que “se torna útil” aos outros; é a sociedade que vai se tornar útil, “permitindo” a você trabalhar, “dando” a você este “bem precioso”, o trabalho, para evitar tanto quanto possível que você seja dele “privado”. A mesma sociedade que parece surpresa e indignada quando aquelas e aqueles que têm o “privilégio” de trabalhar, pretendem, os ingratos, discutir ou mesmo recusar as condições de trabalho cada vez mais constrangedoras que se lhes impõem por um salário cada vez mais baixo.
Nunca a ideologia do trabalho-valor foi exposta, proclamada, ressaltada tão afrontosamente e nunca a dominação do capital, da empresa, sobre as condições e o preço do trabalho foi aceita tão docilmente. Nunca a função “insubstituível”, “indispensável” do trabalho como fonte de “laço social”, de “coesão social”, de “integração”, de “socialização”, de “identidade pessoal”, de sentido foi invocada de modo tão obsessivo, justamente a partir do momento que não pode mais preencher nenhuma dessas funções, nem nenhuma das cinco funções estruturantes que sublinhava Marie Yahoda em seu célebre estudo a respeito dos desempregados de Marienthal no início dos anos 30. Tornado precário, flexível, intermitente, com duração, horário e salário variáveis, o emprego deixa de integrar em um coletivo, deixa de estruturar o tempo cotidiano, semanal, ou anual e as idades da vida, deixa de ser a base sobre a qual cada um pode construir seu projeto de vida.
A sociedade na qual cada um espera encontrar um lugar, um futuro balizado, uma segurança, uma utilidade, esta sociedade -a “sociedade do trabalho”- está morta. O trabalho só conserva uma espécie de centralidade fantasmagórica, no sentido em que se diz que alguém amputado de um membro percebe ainda o membro fantasma que já não possui. Somos uma sociedade do trabalho fantasma sobrevivendo fantasmaticamente à sua extinção graças às invocações obsessivas, reativas daqueles que continuam a nele enxergar a única via possível e não podem mais imaginar outro futuro que não o retorno ao passado. E que, por isso, prestam o pior dos serviços: persuadem-nos que não há futuro, socialidade, vida, desenvolvimento de si fora do trabalho-emprego; que a escolha se faz entre o trabalho ou o nada, entre a inclusão pelo emprego ou a exclusão; entre a “socialização identitária pelo trabalho” ou a queda na “desesperança” do não-ser. Persuadem-nos que é bom, normal, indispensável que “cada um deseje imperiosamente” isto precisamente que não existe mais e que nunca mais estará ao alcance de todos, a saber: “um trabalho remunerado em um emprego estável” única “via de acesso, ao mesmo tempo, à identidade social e à identidade pessoal”, “ocasião única de se definir e construir um sentido a seu próprio percurso”2.
Estas invocações, reiteradas à exaustão, contribuem poderosamente para manter vivas normas já caducas; para perpetuar e justificar como “normais”, expectativas completamente falsas com relação aos desenvolvimentos reais; para lançar à desolação e à impotência submissa aqueles cujas “justas” expectativas serão inevitavelmente frustradas; para confortar a estratégia de poder do capital que -para poder “flexibilizar”, precarizar, individualizar, selecionar, aumentar a produtividade e o lucro, reduzir as remunerações e os efetivos- precisa exatamente disso que lhes oferecem em coro a ladainha da centralidade do trabalho-emprego e de suas insubstituíveis funções sociais: que todos continuem a desejar “imperiosamente” aquilo que as empresas só concederão a alguns, e que a competição de todos contra todos no mercado de emprego diminua as pretensões e aumente a submissão zelosa dos raros “privilegiados” aos quais a empresa permitirá que a sirvam.
É confortando a “opinião pública” por meio dessas expectativas irrealizáveis, dessa adesão a normas que não correspondem mais a nada, por meio de interpretações estereotipadas completamente deslocadas diante das realidades que elas pretendem decifrar, que se alimentam os maniqueísmos, a busca de bodes expiatórios, a ideologia e as práticas protofascistas. Dirão, empunhando pesquisas, que a “opinião pública” não está amadurecida para ouvir um outro discurso; que a aspiração a uma vida na qual o trabalho não seria mais central “não está definitivamente estabelecida”; em suma, que a ideologia do “ou bem o emprego ou, então, nada” corresponde ao estado de espírito da maioria e que qualquer outro discurso só pode interessar aos marginais ou aos “utópicos”.
Estranha argumentação, esta: não apenas é falsa (nós o veremos na seqüência), mas ainda sustenta que se a maioria persiste em crer que a terra é quadrada, é preciso confortá-la nesta crença, dissimulando-lhe as provas que indicam o contrário. Estranha argumentação, esta, que faz o jogo dos partidários do poder por sua função repressiva, isto é, por sua vontade de ignorar, de censurar, de reprimir toda tentativa de ir ao fundo do problema: a questão não é saber se os indivíduos são capazes de..., se estão prontos a..., maduros, para uma sociedade e uma vida não mais centradas sobre o emprego; a pergunta, ao contrário, é saber como esta outra vida e esta outra sociedade podem ser antecipadas e prefiguradas já agora nos experimentos em grande escala, práticas e lutas exemplares, modos alternativos de cooperação, de produção, de habitação, de responsabilização auto-organizada das necessidades coletivas; saber como o medo de cair no buraco negro da não-sociedade e da nulidade individual pode ser apaziguado por meio de práticas comuns capazes de inventar e ilustrar novas solidariedades; saber como, no lugar de sofrer as mudanças tecnológicas, as economias de tempo de trabalho, as intermitências do emprego e sua precarização, é possível delas apossar-se coletivamente, conquistar a iniciativa e seu controle, voltá-las contra as estratégias do capital para fazer surgir novas liberdades possíveis; e, enfim, saber como todos podem ter garantida uma renda contínua quando o trabalho torna-se cada vez mais descontínuo.
2. Geração X ou a revolução sem voz
A não-sociedade absoluta é aquela que instala a incapacidade de ver e de querer além desta sociedade de trabalho que se esboroa. O problema situa-se na fronteira do cultural e do político. É preciso que as mentalidades mudem para que a economia e a sociedade possam mudar. Mas, inversamente, a mudança das mentalidades, a mudança cultural precisam ser relacionadas (e traduzidas) a práticas e a um projeto políticos para adquirir um alcance geral e encontrar uma expressão coletiva capaz de inscrever-se no espaço público. Enquanto não encontrar sua expressão pública e coletiva, a mudança das mentalidades pode ser ignorada pelos detentores do poder, dada por marginal, um desvio de pouco significado.
É aí, neste nível, que se situam o problema e a tarefa mais urgentes. Pois contrariamente ao que pretende o discurso do poder, a mudança das mentalidades já aconteceu. O que falta cruelmente é a tradução pública de seu sentido e de sua radicalidade latente. Essa tradução não pode ser obra espontânea de uma inteligência coletiva. Supõe “técnicos do saber prático” (como Sartre chamava os “intelectuais orgânicos” de um movimento nascente) capazes de decifrar o sentido de uma mutação cultural e os temas nela em pauta de modo a permitir aos sujeitos reconhecer suas aspirações comuns. Para conseguir realizar esse trabalho de interpretação, o observador-intérprete deve ser capaz de romper com os estereótipos interpretativos e culturais e alçar-se a um nível de consciência pelo menos igual àquele dos sujeitos mais conscientes do qual ele interpreta a experiência.
1 - Para mais detalhes ver “A invenção do trabalho”, in A. Gorz, "Métamorphoses du travail", pp. 25-27.
2 - Renaud Sainsaulieu, “Quel avenir pour le travail?”, "Esprit", dez. 1995.
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