domingo, 15 de novembro de 2009

Recortar o real em função das nossas necessidades : condição para a vida - entrevista com Débora Morato

SÃO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIÇÃO 237

Recortar o real em função das nossas necessidades: condição
para a vida

ENTREVISTA COM DEBORA MORATO

“Em A evolução criadora, Bergson defende que a função do intelecto é adaptativa e assim
naturaliza a inteligência. A nossa ação somente se exerce sobre pontos fixos, agir é dominar a
matéria procurando, na pura mobilidade que é o estofo da realidade, estabilidades cômodas.
Para viver, é preciso recortar o real em função das nossas necessidades”, acentua a filósofa
Débora Morato, em entrevista dada com exclusividade à IHU On-Line. A pesquisadora, que
leciona na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), em São Carlos, São Paulo, afirma que
A evolução criadora há “respostas a alguns desafios próprios ao pensamento contemporâneo,
como é o caso do problema do dualismo mente/corpo, das relações entre instinto e
inteligência, do papel do tempo na descrição dos fenômenos vitais, do sentido da evolução,
entre outros. Destacam-se a crítica aos sistemas da tradição e a necessidade de compreender a
dimensão histórica do real e do homem”.
Morato é graduada, mestre e doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Sua
dissertação intitulou-se Espaço, percepção e inteligência - Bergson e a formação da consciência
empírica humana e sua tese, Consciência e corpo como memória: subjetividade, atenção e vida à
luz da filosofia da duração, ambas orientadas por Franklin Leopoldo e Silva. É uma das
organizadoras das obras Subjetividade e linguagem (São Carlos; Curitiba: Universidade Federal
do Paraná, Universidade Federal de São Carlos, 2006); Questões de Filosofia contemporânea (São
Paulo; Curitiba: Discurso Editorial; UFPr, 2006) e A fenomenologia da experiência - Horizontes
filosóficos da obra de Merleau-Ponty (Goiânia: Ed. da UFG, 2006). Confira a íntegra da
entrevista, concedida por e-mail.
IHU On-Line - Cem anos após sua publicação, qual é a
atualidade da obra A evolução criadora?
Débora Morato - Podemos apontar a atualidade de A
evolução criadora em duas vertentes: uma referida à
história da filosofia, e outra a um campo que podemos
delimitar como epistemológico. Tratando de problemas
comuns ao horizonte do início do século XX, o livro
apresenta respostas a alguns desafios próprios ao
pensamento contemporâneo, como é o caso do problema
do dualismo mente/corpo, das relações entre instinto e
inteligência, do papel do tempo na descrição dos
fenômenos vitais, do sentido da evolução, entre outros.
Destacam-se a crítica aos sistemas da tradição e a
necessidade de compreender a dimensão histórica do
real e do homem. É importante ressaltar o papel do
último capítulo da obra, em que Bergson expõe o
“mecanismo cinematográfico” da inteligência e mostra
como a racionalidade ocidental é vítima da obsessão pela
imobilidade e pela repetição – ela perde de vista a
mudança e o movimento que respondem pela essência da
realidade. Temos ali o desenvolvimento da crítica
endereçada à história da metafísica racional, que
Bergson considera sustentada por uma ilusão natural ao
entendimento: a imagem ou a idéia do Nada. Em relação
a essa famosa crítica do negativo, a obra de Bento Prado
Junior 27 Presença e campo transcendental (publicada
pela Edusp em 1989 e traduzida para o francês em 2002,
editora OLMS) tem uma importância capital. Ela nos
apresenta uma interpretação original e instigante sobre a
filosofia de Bergson, mostrando como a discussão da
ilusão do Nada explicita as direções mais fundamentais
de todas as análises críticas do filósofo e ressaltando a
pertinência da denúncia do papel dessa ilusão na história
da filosofia. O livro tem hoje reconhecimento mundial, e
um de seus méritos foi ter percebido a importância da
discussão do pressuposto do Nada para a filosofia do
século XX.
Uma articulação entre dados da ciência e construção
metafísica
A segunda vertente que atesta a atualidade da reflexão
de A evolução criadora é o modo pelo qual ela articula
dados da ciência e construção metafísica. Bergson leva
até o limite a capacidade de meditar sobre as
descobertas e inovações da biologia evolutiva,
oferecendo hipóteses especulativas guiadas pelos fatos
ou por sua leitura sem pressupostos. As discussões
pontuais com os cientistas da evolução explicitam um dos
aspectos mais interessantes da filosofia bergsoniana,
precisamente a denúncia de que existem conceitos
27 Bento Prado Junior: filósofo brasileiro, graduado pela
Universidade de São Paulo (USP), pós-doutor pelo Centre National de la
Recherche Scientifique, CNRS, França e livre-docente pela Universidade
de São Paulo (USP). Docente na Universidade Federal de São Carlos,
Centro de Educação e Ciências Humanas, é autor de Erro, ilusão,
loucura (São Paulo: Editora 34, 2004) e Presença e campo
transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson
(São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1989). (Nota da IHU
On-Line)
previamente inseridos no trabalho da ciência, isto é,
pressupostos latentes que dirigem a observação e a
interpretação dos dados do trabalho experimental. Todas
as obras de Bergson reforçam essa dificuldade: os dados
da ciência são observados e descritos por um trabalho
que é, na verdade, pura interpretação, cujos princípios
os cientistas ignoram – em outros termos, usam teses e
conceitos sem que o percebam. No caso das ciências
biológicas, as conseqüências dessa reflexão crítica têm
especial importância hoje, momento em que elas
ocupam papel de protagonistas do progresso científico e
dos dilemas que esse progresso impõe à humanidade.
IHU On-Line - Qual é a contribuição de Bergson para
compreender a formação da consciência empírica
humana?
Débora Morato - Ao procurar compreender os
fenômenos vitais, Bergson considera a temporalidade ou
duração. E logo percebeu que a temporalidade está
essencialmente ligada à consciência. Nesse sentido, sua
filosofia desenvolve-se como um estudo progressivo e
profundo da consciência em geral, dos processos em que
ela se manifesta. Ele procura superar a noção de
consciência herdada das filosofias anteriores, que a
limitam à sua dimensão de consciência reflexiva e
intelectual, ou seja, “constituinte”, se quisermos usar o
termo próprio às filosofias transcendentais. Bergson
recupera o papel do estudo da consciência psicológica
numa tentativa de desenvolver um empirismo
verdadeiro. A consciência é originariamente uma
inserção prática no mundo, surge na própria relação que
se estabelece entre os corpos vivos e os seus ambientes.
A reflexão sobre a consciência necessita do estudo das
ações do corpo; é pelo critério da ação, aliás, que
Bergson determina as diferenças entre as coisas e os
organismos, entre a matéria e a consciência, entre o em
si e o para si, os primeiros marcados pela ação necessária
e automática, os segundos termos da oposição
apresentando a capacidade de elaborar ações
indeterminadas. Se a consciência é originariamente ação
no mundo, essencialmente ele é progressão contínua do
passado no presente invadindo o futuro – ela é duração.
Encontramos no segundo livro de Bergson, Matéria e
memória: ensaio sobre a relação do corpo com o
espírito (São Paulo: Martins Fontes, 1990), uma hipótese
detalhada e complexa sobre a origem da consciência
humana na percepção, a dimensão originária da
consciência. Essa obra liga o estudo sobre a interioridade
e seus estados psicológicos, o Ensaio sobre os dados
imediatos da consciência (Montevideo: Cláudio Garcia,
1944), que dá conta da dimensão profunda e essencial da
consciência enquanto progressão qualitativa, ao estudo
da consciência em geral, uma espécie de “supra-consciência”
criadora que é o centro da metafísica da
vida de A evolução criadora. O trajeto que vai da
primeira à terceira obra, integrando teoria do
conhecimento e teoria da vida, funda-se então sobre um
estudo que circula entre psicologia, biologia e metafísica
e cujo centro é a noção de consciência – a duração, idéia
central de filosofia de Bergson, é metafisicamente
compreendida através da análise dos fenômenos
conscientes em sua temporalidade concreta.
IHU On-Line - Como o espaço, a percepção e a
inteligência se relacionam em sua obra e pensamento?
Débora Morato - A teoria da inteligência de Bergson foi
o primeiro aspecto de sua filosofia que chamou minha
atenção e dediquei a esse tema grande parte do meu
mestrado. Em linhas gerais, Bergson atribui à inteligência
uma forma, o espaço, e uma origem, a percepção. A
inteligência tem um funcionamento que pode ser
esclarecido pela metáfora do “mecanismo
cinematográfico”: ela recorta momentos ou partes fixas
dos fenômenos, como que “congelando” a dinamicidade
do real, e tenta recompor a realidade através da
justaposição desses instantes recortados de um todo no
qual ela está inserida. Em outros termos, tudo o que a
inteligência pode conhecer se dá por refração num meio
homogêneo e vazio, no qual são desdobradas partes ou
unidades nitidamente separadas, e isso se deve
justamente ao fato de que ela é uma faculdade de ação
e desenvolve-se na mesma medida do progresso da
linguagem. Em A evolução criadora, Bergson defende
que a função do intelecto é adaptativa e assim naturaliza
a inteligência. A nossa ação somente se exerce sobre
pontos fixos: agir é dominar a matéria procurando, na
pura mobilidade que é o estofo da realidade,
estabilidades cômodas. Para viver, é preciso recortar o
real em função das nossas necessidades. Ao desenvolver-se
modelada por sua função vital, a inteligência
progressivamente leva ao extremo a forma pela qual é
capaz de fixar e recortar o real – o espaço, um meio
vazio e homogêneo. O espaço é o meio de conservação
das partes atualmente dadas por justaposição,
fundamento das figuras geométricas e condição da
percepção e da concepção de objetos distintos e
determinados. Se o real é pura dinamicidade ou
diferenciação (“atributos” da duração), é evidente que a
visão intelectual dos fenômenos será necessariamente
fragmentada e estática, ou seja, distorcida e
equivocada, útil para a vida, mas completamente
inadequada à compreensão da verdadeira essência dos
fenômenos, o que para Bergson é ainda e sempre a
tarefa da filosofia.
IHU On-Line - Como a construção da metafísica
enquanto experiência integral - conhecimento interior
e imediato como atributos da intuição em Bergson -
pode ser explicada?
Débora Morato - A defesa e proposta de refundação da
metafísica em novas bases é um aspecto do pensamento
bergsoniano que provoca muito interesse e também
muita rejeição no ambiente filosófico atual. Afinal, falar
de metafísica em plena aurora do século XXI pode
parecer provocação. Mas o fato é que Bergson tem o
mérito de assumir aquilo que muitos pensadores
preferem ignorar: as diversas áreas e os vários temas
filosóficos, ao se aprofundarem, encontram por seu
próprio desenvolvimento questões de ordem metafísica.
Desde logo, ele percebeu que a filosofia evolucionista
implica uma hipótese de fundo sobre a criação e o
tempo, passando, então, a reformular o equacionamento
de temas filosóficos pela crítica dos pressupostos
metafísicos herdados da tradição. O desafio que Bergson
procura enfrentar é justamente o de refazer a
metafísica, agora pautada pela noção de experiência e,
portanto, com apoio nos fatos. A título de exemplo,
podemos citar o tratamento que ele confere ao problema
do dualismo, estudado em Matéria e memória: a
discussão e reposição do problema consiste ali em trazê-lo
para o terreno dos fatos da memória, mais
especificamente aos fatos da psicopatologia (os casos de
afasia que estavam na ordem do dia da pesquisa
científica na passagem do século XIX ao XX). As doenças
da memória mostram uma conservação de lembranças
que não se atualizam adequadamente, mas não são
destruídas no córtex porque se apresentam em situações
inesperadas, reforçando a tese bergsoniana de que lesões
cerebrais impedem processos globais de organização,
mas não suprimem as “cenas” ou as representações
passadas. O que impressiona nessas análises é a
capacidade que Bergson tem de extrair conseqüências
filosóficas cruciais de fenômenos simples e corriqueiros,
tais como o a aprendizado de uma lição decorada ou de
um exercício físico, descrevendo a formação de uma
memória do corpo em que reside uma das mais belas
passagens do livro.
Metafísica como “experiência integral”
A definição de metafísica como “experiência integral”
tem relação direta com o método da intuição. A
experiência concreta dos seres humanos é sempre uma
mistura entre a dimensão temporal e a espacial. O
domínio da vida por excelência é misto e, por não se
darem conta desse fato, os diversos filósofos da
experiência não souberam compreender e descrever a
experiência concreta. O método da intuição trabalha em
primeiro lugar de modo analítico, procurando dissociar os
fenômenos em suas partes puras, seus limites. Há uma
definição célebre do trabalho da intuição que explicita o
seu funcionamento: ele exige buscar a experiência “em
sua fonte”, aquém de sua inflexão no sentido da
utilidade que a define propriamente como experiência
humana. O trabalho de purificar o misto conduz ao
momento originário e, uma vez que Bergson define a
realidade como tendência, e a tendência é uma mudança
de direção em estado nascente, encontrar o momento
nascente é então compreender o real. A intuição é a
revelação do real como tendência através de um
processo de separação analítica das tendências puras que
são vividas por nós, na experiência concreta, como
mistura. Além de recuperar o caráter dinâmico que
subjaz a toda aparência estável dos fenômenos, a
intuição da duração permite superar a própria condição
humana, pensando a sua origem numa totalidade que lhe
é anterior. A experiência agora não se limita ao misto e
não se contenta com a exteriorização prática que institui
objetos: pela intuição metafísica, a consciência se volta
ao puro, às tendências que originam o domínio misto e é
nesse sentido que ela pode ser compreendida como
experiência integral – expressão que fecha o texto
Introdução à metafísica, traduzido por Franklin
Leopoldo e Silva 28 para a coleção Os Pensadores.
28 Franklin Leopoldo e Silva: filósofo brasileiro, mestre, doutor e
livre-docente pela Universidade de São Paulo (USP), onde leciona no
departamento de Filosofia. Na livre-docência, apresentou a tese
Bergson: intuição e discurso filosófico (São Paulo: Loyola, 1994). Em
14-09-2006 concedeu ao site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU a
entrevista A banalidade da ética e da política. Em 22-05-2007,
palestrou sobre A subjetividade moderna. Possibilidades e limites
para o cristianismo, dentro da programação do Simpósio Internacional

IHU On-Line - Em que aspectos o conceito de "elã
vital" nos auxilia a compreender a complexidade das
sociedades pós-modernas?
Débora Morato - Não sou a melhor pessoa para
responder a essa questão, mas me parece que é na
definição do “elã vital” como impulso a partir do qual
uma multiplicidade de tendências começa a se efetivar
(em direções divergentes) que temos um bom exemplo
dessa possibilidade. Bergson nos apresenta a um modo de
compreender a evolução e as organizações diversas como
movimento de diferenciação que guardam uma origem
comum e, assim, uma memória. A unidade na diversidade
apóia-se nessa memória da origem, nessa indistinção
originária, na virtualidade de direções amalgamadas que
define a duração. A noção de virtualidade e criação,
assim como a de diferença interna, são trabalhadas pela
filosofia de Gilles Deleuze, sobre a qual o pensamento de
Bergson teve grande influência.
IHU On-Line - Partindo da afirmação bergsoniana de
que aquilo que nossos sentidos nos fornecem não são a
realidade, mas cópias seletivas desta, podemos
perceber aí uma influência platônica, como aquelas
imagens refletidas no fundo da caverna? Por quê?
Débora Morato - Parece-me que a aproximação mais
adequada entre Bergson e Platão 29 reside na descrição da
intuição como método das divisões que procura discernir
no real suas articulações naturais. Quem trabalha essa
aproximação é Deleuze, em seu livro Bergsonismo (São
Paulo: Editora 34, 1999). Em relação ao conhecimento
sensível, podemos dizer que a posição de Bergson é
inversa a de Platão, que postula uma superação dos
O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos? (Nota da IHU
On-Line)
29 Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Criador de sistemas
filosóficos influentes até hoje, como a Teoria das Idéias e a Dialética.
Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre suas
obras, destacam-se A república e o Fédon. (Nota da IHU On-Line)
dados da sensibilidade pela abstração que se encaminha
às idéias. Na verdade, em sua leitura crítica da tradição,
Bergson denuncia a relação interna entre desprezo pelo
movente, pela diferença e pela transformação e
desvalorização da sensibilidade, vendo no platonismo um
dos ápices dessa direção do pensamento racional.
Bergson reiteradamente afirma que a metafísica nasceu
dos argumentos de Zenão de Eléia 30 relativos à
transformação e ao movimento. Ao chamar a atenção
para o absurdo do movimento, o eleata levou os filósofos
a procurar a realidade coerente e verdadeira naquilo que
não muda. Ocorre que esse “absurdo” tem sua imagem
fornecida pela sensibilidade, e a experiência sensível
passa a significar aquilo que deve ser superado. Constrói-se,
assim, uma posição teórica ou conceituação que
literalmente “põe” um mundo, um mundo pensado ou
ideal, revelado pelo conceito. Bergson, ao contrário,
quer voltar à percepção sensível, ampliando o seu
domínio e nela recuperado os índices do real por um
contato com sua dimensão originária. É certo dizer que,
para Bergson, os sentidos filtram o real e selecionam
aquilo que interessa ao organismo, mas ele nunca abre
mão da idéia de que tal seleção se efetiva sobre um ato
de penetração na própria realidade. O corpo está no
mundo e os sentidos retiram algo do mundo, não apenas
nos fornecem uma cópia. As sombras de Platão seriam,
para Bergson, os recortes estáveis sobre os quais agimos,
e a filosofia liberta o homem dessa ilusão, a da
imutabilidade, justamente aquilo que, para Platão, seria
a essência do real. Nesse ponto, a filosofia de Bergson é
essencialmente anti-platônica.
30 Zenão de Eléia (495 a. C. – 430 a. C.): filósofo nascido em Eléia,
hoje Vélia, Itália. Foi discípulo de Parmêndies. Seu método consistia na
elaboração de paradoxos. Deste modo, não pretendia refutar
diretamente as teses que combatia, mas sim mostrar os absurdos
daquelas teses (e, portanto, sua falsidade). Acredita-se que Zenão
tenha criado cerca de quarenta destes paradoxos, todos contra a
multiplicidade, a divisibilidade e o movimento (que nada mais são que
ilusões, segundo a escola eleática). (Nota da IHU On-Line)

IHU On-Line - Russell criticava Bergson afirmando que
sua filosofia não tinha muitos argumentos racionais, mas
analogias e metáforas poéticas. Até que ponto essa crítica
é procedente e até que ponto está impregnada de um
pressuposto que filosofia boa é filosofia hermética, escrita
em jargão ininteligível?
Débora Morato - Talvez haja algo nessa questão um pouco
injusto com Russell, mas é certo que ele foi um grande
crítico de Bergson. Penso que o verdadeiro problema aqui é a
excessiva formalização da linguagem, sua extrapolação em
técnica. Bergson é um crítico da capacidade da linguagem no
terreno da especulação, já que sua destinação natural não é
o conhecimento metafísico ou mesmo teórico. A linguagem é
instrumento de adaptação e socialização. Nesse sentido, sua
função é possibilitar e desenvolver o trabalho de fixação do
real que será a tarefa fundamental da inteligência. A relação
entre a filosofia e a linguagem é de extrema complexidade,
pois enquanto conhecimento a filosofia é discurso, mas tem
que efetivar um trabalho contra as tendências naturais do
discurso que não são nada filosóficas. O discurso é fruto da
prática, nela se origina e segue assim as direções da ação,
enquanto que a filosofia, de algum modo, interrompe a
prática, deve inverter os sentido das representações por ela
produzidas. Daí o recurso às analogias e às metáforas
poéticas, com a intenção de dissolver um pouco a
solidificação de significados.
IHU On-Line - Alguns afirmam que na filosofia de Bergson
há um encontro com a literatura. Você concorda? Por quê?
Débora Morato - A duração criadora é o centro da filosofia
de Bergson, o que acarreta inevitavelmente um problema:
uma vez que a linguagem é uma ferramenta do homem para
fixar o real que dura e assim fixar-se a si mesmo na realidade
(ou seja, é o instrumento mais importante para a
adaptação), ela é, de uma forma geral, inadequada para o
conhecimento metafísico. A linguagem é um instrumento de
ação e ao se constituir e se aperfeiçoar acaba ocultando
gradualmente, com eficácia, os verdadeiros índices do real, a
mudança, a transformação, a dinamicidade, a criação do
novo. O grande problema que Bergson então enfrentou foi o
de propor uma filosofia cujo objeto é inapreensível pela
linguagem sem poder escapar de usar o discurso. A questão
transforma-se assim na da possibilidade de um discurso
filosófico e o caminho para resolver o problema está na
aproximação entre filosofia e literatura. A metáfora no lugar
do conceito, o discurso que fala às capacidades humanas
extra-intelectuais, eis a direção que o filósofo deve tomar:
Bergson não só propôs esta via como a seguiu em seu
itinerário, produzindo obras filosóficas de notável valor
literário e vindo a ganhar o prêmio Nobel de Literatura. Nós
temos no Brasil um dos melhores estudos sobre a relação
entre o método intuitivo e a discursividade: trata-se do livro
de Franklin Leopoldo e Silva, Bergson: intuição e discurso
filosófico (São Paulo: Loyola, 1994), publicado em 1994 pela
editora Loyola. Ali podemos acompanhar em detalhe como
Bergson expõe a função e a estrutura da linguagem, que é
para ele a materialização em som e em signos de um sentido,
de um pensamento, de uma realidade espiritual. A linguagem
congela o sentido, como nos explica Franklin em seu estudo,
materializando o pensamento para atender às urgências da
ação, da adaptação. Nesse sentido, seu aperfeiçoamento
caminha na direção da fixação de significados e da
formalização técnica. Se parte do trabalho reflexivo que
procura reabilitar a dimensão temporal dos fenômenos
consiste em desfazer o que a inteligência e a linguagem
fizeram no seu funcionamento natural, compreende-se a
função da poesia e da metáfora: recuperar a mobilidade
original dos significados, inverter a direção do trabalho da
linguagem, usar a linguagem contra si mesma! Esse é um dos
temas de maior dificuldade de compreensão, mas também
uma das mais ricas contribuições de Bergson ao
entrecruzamento da filosofia com a literatura.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

SER(ES) AFINS