UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CEDNTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
Prof. Selvino José Assmann
SUBSÍDIOS DE ESTUDO
A SOCIEDADE GLOBAL DO RISCO
Uma discussão entre Ulrich BECK e Danilo ZOLO
(Trad. port.: Selvino J. Assmann)
1. Para uma nova modernidade
Danilo ZOLO (DZ): Existe, me parece, uma profunda continuidade teórica entre os teus livros precedentes - especialmente Risikogesellschaft (Sociedade do Risco) e Gegengifte (Contra-venenos) - e o último Was ist Globalisierung? (O que é Globalização?)...
Ulrich BECK (UB): É verdade. No meu livro Sociedade do Risco, que apareceu na Alemanha em 1986, havia proposto a distinção entre uma primeira e uma segunda modernidade. Havia caracterizado a primeira modernidade nos seguintes termos: uma sociedade estatal e nacional, estruturas coletivas, pleno emprego, rápida industrialização, exploração da natureza não "visível". O modelo da primeira modernidade - que poderíamos denominar também de simples ou industrial - tem profundas raízes históricas. Afirmou-se na sociedade européia, através de várias revoluções políticas e industriais, a partir do século XVIII. Hoje, no fim do milênio, encontramo-nos diante daquilo que eu chamo "modernização da modernização" ou "segunda modernidade", ou também "modernidade reflexiva". Trata-se de um processo no qual são postas em questão, tornando-se objeto de "reflexão", as assunções fundamentais, as insuficiências e as antinomias da primeira modernidade. E com tudo isso estão vinculados problemas cruciais da política moderna. A modernidade iluminista deve enfrentar o desafio de cinco processos: a globalização, a individualização, o desemprego, o subemprego, a revolução dos gêneros e, last but not least, os riscos globais da crise ecológica e da turbulência dos mercados financeiros. Penso que se estão consolidando um novo tipo de capitalismo e um novo estilo de vida, muito diferentes daqueles das fases anteriores do desenvolvimento social. E é por este motivo que necessitamos urgentemente de novos quadros de referência, seja no plano sociológico, seja naquele político.
DZ: Nas tuas páginas a análise dos dilemas e dos riscos da globalização me parece feita com muita lucidez e vigor crítico...(...) Ao mesmo tempo, porém, continuas sugerindo uma atitude substancialmente otimista, mesmo que se trate, por assim dizer, de um "otimismo dramático".
UB: Não, não falaria de otimismo. Como se pode ser otimista diante da situação atual do mundo? Mas por outro lado, como se consegue ser apenas pessimista? O mundo diante do qual estamos é cheio de paradoxos que não podem senão nos deixar perplexos. Devemos libertar-nos de algumas certezas antropológicas do passado e, ao mesmo tempo, procurar construir, em meio a muitas contradições e rupturas, linhas de coerência e de continuidade. Esperança e desespero não podem deixar de entrelaçar-se na nossa experiência. Olhemos, por exemplo, para a Europa. Um século escuro, no qual tivemos duas guerras mundiais sangrentas o Holocausto, o fascismo e o imperialismo comunista finalmente no ocaso, deixando o lugar para uma perspectiva de uma Europa democrática a construir nos próximos anos. Estas não são razões suficientes para sermos otimistas e pessimistas ao mesmo tempo?
DZ: Contudo a intenção última do teu livro, através de uma interpretação que tu mesmo chamas "dialética", é a de apresentar a globalização como precursora de uma nova modernidade. A "sociedade de risco" - no plano nacional assim como no global - não comporta - conforme sustentas - uma renúncia à tradição iluminista, como querem por sua vez tendências irracionalistas do pós-moderno. Pelo contrário, esforças-te em delinear uma teoria social que, na esteira de Weber, encontre no presente o perfil de uma nova modernidade. Assim como no ‘séc. XIX a modernização industrial dissolveu e superou o sistema corporativo da sociedade rural, assim também a modernidade global está destinada, pelo que dizes, a superar as formas atuais da política "nacional-estatal" e da economia tardo-capitalista. É assim mesmo?
UB: Sim, é isso, mas ao mesmo tempo mudam, como disse, as assunções fundamentais, a antropologia e o paradigma mesmo da modernidade. Certamente o termo "modernidade" sempre significou também crise em ato, descontinuidade e incertezas. Mas o que distingue a "modernidade reflexiva" e a torna problemática é o fato de que devemos encontrar respostas radicais aos desafios e aos riscos produzidos pela própria modernidade. Os desafios poderão ser vencidos se conseguirmos produzir mais e melhores tecnologias, mais e melhor desenvolvimento econômico, mais e melhor diferenciação funcional. E estas são as condições para vencer o desemprego, a destruição do ambiente natural, o egoísmo social e assim por diante.
2. Um diálogo global entre as culturas
DZ: Permite-me uma objeção: o que pode significar exatamente "nova modernidade" , se, como tu o fazes, te referes não apenas ao mundo europeu e ocidental, mas a todas as culturas do globo? Não existe aqui o risco de adotar uma perspectiva eurocêntrica, acabando involuntariamente em formas de "imperialismo" antropológico e cultural, como o fazem, segundo minha opinião, os mais renomados Western globalists, começando por David Held, Richard Falk e, de algum modo, Jürgen Habermas? As reflexões de Samual Huntington sobre o conflito entre as civilizações não contêm, não obstante a sua evidente fraqueza teórico-política, pelo menos uma advertência cautelativa que deve ser acolhida? A saber, que os valores ocidentais, por mais preciosos que sejam, de fato não são universais e não podem ser "exportados" com a força, a pressão econômica ou a propaganda.
UB: Pessoalmente não compartilho a imagem do mundo contemporâneo que Samuel Huntington esboçou. A minha impressão é que quando Huntington fala de "conflito entre civilizações", na verdade toma em consideração a experiência de um macho branco e protestante ameaçado pela rápida emergência de uma América do Norte que já se tornou multicultural e é cada vez mais influenciada por tradições culturais de origem não européia. A minha teoria da "segunda modernidade" é uma séria tentativa de superar qualquer tipo de "imperialismo ocidental" e qualquer concepção unidirecional da modernidade. Proponho-me superar o preconceito evolucionista que aflige grande parcela da ciência social ocidental. Trata-se de um preconceito que relega as sociedades não ocidentais contemporâneas à categoria do "tradicional" e do "pré-moderno", e desta forma, em vez de defini-las a partir do ponto de vista delas, as concebe em termos de oposição à modernidade ou de não-modernização. Muitos pensam até que o estudo das sociedades ocidentais pré-modernas possa nos ajudar a entender as características que os países não ocidentais apresentam hoje. "Segunda modernidade" significa, pelo contrário, que devemos colocar com firmeza o mundo ocidental no âmbito da "modernização da modernização", ou seja, dentro de um pluralismo de modernidades. Nesta perspectiva, há espaço para conceitualizar a possibilidade de trajetórias divergentes de modernidade.
DZ: Concordo com o sentido da tua tentativa, mesmo que mantenha alguma dúvida sobre a possibilidade de universalizar a categoria "modernidade". Mas, a este respeito, o que pensas de autores japoneses, maleses e chineses, como Shintaro Ishihara, Mahathir Mohammed, Son Qiang e Zhang Xiaobo, que rejeitam os valores políticos e culturais da modernidade ocidental, mesmo que aceitem o industrialismo e a economia de mercado? A recusa, como se sabe, diz respeito sobretudo à tradição liberal-democrática e à doutrina dos direitos humanos. Existe, entre eles, quem reivindique contra o ocidente, a universalidade dos "valores asiáticos". Lee Kuan Yew, célebre rei-filósofo de Singapura, defendeu, por exemplo, que a tradição confuciana, com a sua concepção paternalista do poder e sua idéia orgânica da sociedade e da família, oferece um quadro ideológico mais adequado para conter os efeitos "anárquicos" da economia de mercado e para atenuar os impulsos desagregadores do individualismo e do liberalismo ocidental.
UB: Trata-se de um debate muito importante e estimulante. Antes de mais, nós, ocidentais, devemos tomar consciência do fato de que estão em curso amplas discussões - na Ásia, na África, na China, na América do Sul - que têm por objeto o tema das "modernidades divergentes". No meu livro Was ist Globalisierung? (O que é globalização?) tentei contribuir para este diálogo global, distinguindo o "contextualismo universal ou relativismo", que é uma atitude pós-moderna, do "universalismo contextual", que supera a alternativa rígida entre a afirmação de um (único) universalismo e a negação de todo possível universalismo. Nesta perspectiva, podem conviver seja o meu seja o teu universalismo, isto é, uma pluralidade de universalismos diferentes. Sobre este assunto devemos ser muito precisos. Na sociedade global do risco, as sociedades não ocidentais têm em comum com as sociedades ocidentais não apenas o mesmo espaço e o mesmo tempo, mas também alguns dos desafios fundamentais da segunda modernidade, mesmo que forem percebidas em âmbitos culturais diversos e sgundo perspectivas divergentes. Estes aspectos de analogia entre situações diferentes foram analisados por um recente debate. "Korea: a risk society", que apareceu no Korea Journal (30, 1998, 1) . Os ensaios apresentados neste volume constituem um ótimo exemplo de como a idêntica situação de risco produzida por uma modernização demasiado rápida pode dar vida a perspectivas culturais divergentes e, precisamente por este motivo, são muito interessantes seja do ponto de vista teórico, seja do político.
3. Globalismo econômico e fundamentalismo mercantil
DZ: Gosto do teu aceno à necessidade de um "diálogo global" entre as culturas, contudo este diálogo parece-me, no que diz respeito ao ocidente, ainda muito longe de ser, não digo, iniciado, mas nem sequer concebido. Volto, porém, a um tema central da tua elaboração teórica. A sociedade do risco - o sustentaste em Risikogesellschaft (Sociedade do Risco) - é uma sociedade que, apesar de tudo, dispõe de novas possibilidades de transformação e de desenvolvimento racional da condição humana: maior igualdade, maior liberdade individual e capacidade de auto-formação. O imperativo que então formulavas consistia na necessidade de que a perspectiva de uma nova "ecologia política" conseguisse prevalecer sobre os esquemas da lógica puramente econômica da produção, do consumo e do lucro. Analogamente, hoje sustentas que os riscos que ameaçam a sociedade globalizada podem mobilizar - sobretudo no mundo ocidental - novas energias sociais e políticas. Pergunto: o que te leva a pensar que uma política transnacional possa conseguir prevalecer sobre os esquemas do "globalismo econômico", e que um senso coletivo de responsabilidade pela sorte do mundo possa contrastar a apatia e o desencanto político - recentemente falou-se de neo-hedonimso e de neo-cinismo das novas gerações - que hoje proliferam no ocidente?
UB: Quando escrevi o meu livro sobre globalização, ou seja, há um ano e meio, a crítica ao globalismo neoliberal parecia absolutamente "idealista", na velha concepção alemã do termo. Mas nós vivemos de fato num mundo em que tudo está fortemente acelerado e dificilmente controlável. Neste breve período de tempo, a atenção pública mundial concentrou-se sobre a questão: como controlar o mercado financeiro global e os seus riscos globais? Perguntamo-nos como deveria ou poderia ser uma globalização responsável e como poderia a mesma tornar-se realidade concreta. O fundamentalismo mercantil, naturalmente, assume que os mercados financeiros sejam sistemas capazes de auto-regulação e que tendam constantemente ao equilíbrio. No seu último livro, George Soros usa a noção de "reflexividade" (também Anthony Giddens, como eu, a usamos) a fim de propor um ponto de vista mais realista. Ele sustenta que, devido ao caráter reflexivo dos meios de informação, os mercados financeiros tendem à instabilidade. Podem tornar-se caóticos, ser influenciados por efeitos de bandwagon, por comportamentos de massa irracionais e por fenômenos de pânico. Por estes motivos, os mercados financeiros globais pertencem à categoria da sociedade mundial do risco. A principal conseqüência de tudo isso é que a era da ideologia do livre mercado já é uma vaga recordação. Está-se verificando exatamente o contrário: a politização do mercado global. Na Ásia, está acontecendo algo que se poderia denominar uma Chernobil econômica: o caráter "socialmente explosivo" do risco financeiro global está se tornando realidade. E isso proporciona uma dinâmica de transformação cultural e política que enfraquece as burocracias, contesta a hegemonia da economia clássica, desafia o neoliberalismo e reordena os confins e as arenas da política contemporânea. Aparecem novas opções políticas: o protecionismo nacional e regional, o recurso a mecanismos de regulação e a instituições supranacionais e, por fim, a questão da sua democratização.
DZ: Portanto, segudo tua opinião, isto pode abrir novas perspectivas e emergir forças políticas transnacionais. É um possibilidade, admito-o, embora neste momento não me pareça estarem presentes muitos indícios nesta direção. Reconheço, porém, que neste livro te esforçaste em analisar os diferentes aspectos do processo de globalização fora dos esquemas tradicionais que contrapõem os defensores da globalização como desenvolvimento coerente da modernidade ocidental aos seus detratores. Estes vêem na globalização essencialmente um fator de turbulência e, ao mesmo tempo, uma irresistível tendência para a concentração do poder internacional, o aumento da distância entre países ricos e países pobres e o achatamento das diversidades culturais. Pergunto: quais argumentos opões a quem sustenta que os processos de globalização tendem a hierarquizar mais ainda as relações internacionais, pondo no comando do poder e da riqueza um diretório de potências industriais, sobretudo os Estados Unidos, a União Européia e o Japão.
UB: Há uma forte tendência em confundir globalização com americanização, ou até globalização com novo imperialismo. Mas esta não é toda a verdade. Há provas evidentes de que a globalização se torna cada vez mais um fenômeno decentralizado, não controlado e não controlável por um só país ou por um só grupo de países. Na realidade, as conseqüências da globalização atingem ou podem atingir os Estados Unidos, assim como a França, a Itália, a Alemanha ou os países asiáticos. Isto é verdade pelo menos no que diz respeito aos riscos financeiros, aos meios de comunicação e aos desequilíbrios ecológicos (o esquentamento da atmosfera, por exemplo). O Estado nacional é submetido a desafios de modo igual na América do Sul como na Ásia, na Europa ou na América do Norte. Há até mesmo fenômenos de "colonização invertida". Ou seja, acontece que países não ocidentais modelam formas de desenvolvimento no Ocidente. Pense-se na "latinização" de algumas grandes cidades estado-unidenses, na emergência na Índia e na Malásia de um setor de alta tecnologia sem raízes territoriais orientado para o mercado global, ou então na aquisição por parte de Portugal de uma grande quantidade de produtos musicais e televisivos do Brasil. Mas, naturalmente, há vencedores e há perdedores no jogo da globalização. Uma minoria torna-se cada vez mais rica e uma maioria crescente, cada vez mais pobre. A parcela da riqueza global que coube aos 5% mais pobres da população mundial, passou nos últimos dez anos de 2,3% para 1,4%. No mesmo período, a parcela açambarcada pelos 5% mais ricos da população mundial, cresceu de 70% para 85%. Conforme escreveu recentemente um autor inglês, mais do que falar de "aldeia global" (global village), dever-se-ia falar de uma "pilhagem global"(global pillage).
DZ: Não te parece portanto que a concentração do poder internacional tenha como conseqüência uma crescente inclinação das grandes potências a violarem ou a descumprirem o direito internacional? Como julgas, a este propósito, a tendência dos Estados Unidos de erigirem-se em guarda policial do mundo através do uso instrumental até do Conselho de Segurança das Nações Unidas? Não te parece que isto tenha recentemente acontecido no que foi chamado de "terceira guerra" do Golfo Pérsico? Não há o risco que isso acabe alimentando - e aos olhos de muitos acabe por justificar - o terrorismo internacional?
UB: É evidente que, conforme já disse, vivemos numa sociedade mundial do risco. O mundo está se tornando caótico. Não é difícil imaginar a possibilidade de um grande número de desastres. "Segunda modernidade" não significa que tudo deva caminhar para um bom fim. Seria uma profunda incompreensão do meu ponto de vista. Há atrás da esquina novas ameaças que ninguém está preparado para enfrentar. Eu mesmo estou trabalhando há alguns anos em novo livro sobre o "mau cidadão": é o cidadão que usa as suas liberdades para combater as incertezas sociais que lhe aparecem à frente e nas quais está imerso. Mas esta atitude não é suficiente. Seria intelectualmente fácil demais. Muito mais difícil é procurar reconstruir e desenvolver as novas opções, os novos horizontes sociais e políticos que estáo emergindo. Em suma, é fácil demais ser hoje unilateralmente pessimista. Eu sou simultaneamente otimista e pessimista. O meu interesse consiste em descobrir o que é novo. As idéias fundamentais da minha teoria da sociedade do risco vão além do otimismo e do pessimismo.
DZ: Estou de acordo contigo, embora não procurasse com a minha pergunta pedir-te uma declaração de pessimismo, mas sim um juízo específico sobre o processo de hierarquização do poder internacional - já em ato hoje em dia - e sobre a função que, neste quadro, cumprem as instituições internacionais e os Estados Unidos. Compartilho a tua recusa do fatalismo.
4. Para uma "McDonaldização" da sociedade global?
DZ: No teu último livro, escreveste algumas páginas, que considero muito interessantes, para criticar o fatalismo de quem jura na inevitável homologação cultural do planeta. A tese de George Ritzer, da McDonaldization of society, dizes, está errada. E é exagerado pensar que a globalização cultural seja um rolo compressor que produz a "ocidentalização do mundo". Esta tese é defendida, como se sabe, por Serge Latouche. Mas também outros sociólogos da globalização - Mike Featherstone e Bryan Turner, por exemplo - pensam que estamos presenciando fenômenos de "crioulização" das culturas indígenas. Tratar-se-ia de uma extensa contaminação de culturas fracas por parte de modelos de consumo e de estilos de vida que os grandes meios de comunicação de massa - quase sempre situadas no Ocidente - difundem no mundo, em especial através da comunicação publicitária. Trata-se de um fenômeno - dizem eles - de destruição da diversidade, da complexidade e da beleza do mundo.
UB: Para mim , este é um dos aspectos mais fascinantes do debate sobre a globalização cultural que ocupa particularmente escritores anglo-saxônicos - antropólogos e teóricos da cultura - como Appadurai, Robertson, Featherstone, Lash, Urry, Albrow, Eade e muitos outros. Há um novo significado da dimensão local que emerge na era da globalização. Toda a literatura que se ocupa com isso oferece uma pitoresca e convincente contra-prova ao simplista estereótipo da "McDonaldização do mundo". O que está claro é que neste horizonte transnacional se formam, muitas vezes ilegalmente, amálgamas sociais que ameaçam seriamente a aspiração dos Estados nacionais a exercerem um controle territorial e a garantirem a ordem. Os espaços da vida privada e do trabalho que daí derivam são "impuros". Para analisar tais fenômenos, a sociologia deve abandonar esquemas de interpretação demasiado rígidos e admitir a possibilidade de coexistência de formas de vida diferentes.
DZ: Mas pensas de fato que haja culturas capazes de resistir à imponente avalanche que difunde no mundo a ciência, a tecnologia, a burocracia , o industrialismo e o individualismo ocidental? O que pode reduzir , não digo impedir, o fenômeno da migração de massa proveniente dos países pobres para os países industrializados, com todas as conseqüências que comporta em termos de desigualdade social, de exploração do trabalho e de destruição das identidades culturais? Os processos de globalização podem favorecer - ou pelo contrário podem sufocar - os estímulos para a autonomia étnica ou para a independência nacional? Penso, por exemplo, entre os muitos povos, nos tamil, nos palestinos, nos curdos, nos bascos, nos corsos...
UB: Há, na minha opinião, dois modos para conceber e conceitualizar a globalização: dois que devem ser mantidos claramente distintos. Um corresponde à idéia de uma globalização simples e linear, e outro corresponde ao conceito de "globalização reflexiva". A versão simples remete à teoria que poderíamos definir do "receptáculo social": o receptáculo é a sociedade estatal e nacional, fundada sobre uma identidade coletiva mais ou menos homogênea. A globalização , sob este ponto de vista, é algo que se ajunta, que provém do exterior e que, por isso, nos ameaça e até nos agride na nossa identidade comum. Na perspectiva da concepção reflexiva da globalização, a mesma definição de sociedade e de comunidade muda radicalmente. Viver juntos não tem mais o significado de residir em lugares geograficamente contíguos. Pode também significar viver juntos ultrapassando os confins estatais e também os continentais. E isso vale não só para os "atores globais" e para os managers do capitalismo global, mas também, por exemplo, para o taxista indiano que trabalhe em Londres ou para mexicanos que vivam em Nova Iorque ou no México e que decidam, prescindindo das fronteiras, negócios comuns a realizar-se em cidades mexicanas. São apenas alguns exemplos, mas a literatura é vastíssima. Deriva disso o fato de que a localização territorial já não seja, como era no tempo do Estado nacional, um imperativo para a vida social e para a realização de uma comunidade. Urge acrescentar que as relações e os liames sociais e políticos de natureza não territorial que se desenvolvem na sociedade cosmopolita não foram ainda descobertos, afirmados e estimulados. Em suma, respondo à tua pergunta dizendo: sim, eu acredito que o desenvolvimento da modernidade não é linear e que pode romper-se em qualquer momento por motivos endógenos. A "gaiola de aço" da modernidade, de que falava Weber, está-se abrindo, pressionada por uma pluralidade de modernizações divergentes.
DZ: A globalização, conforme sustentas no teu livro, é realidade irreversível - no plano econômico, ecológico, técnico-comunicativo, civil, da organização do trabalho, etc. - que nenhum protecionismo, velho ou novo, pode impedir ou condicionar: nem o protecionismo "negro" dos nacionalistas, já obsoleto, nem o protecionismo "verde" dos ecologistas que atualmente redescobrem o Estado nacional como um "biotipo" em extinção e se cansam em protegê-lo , nem, por fim, o protecionismo "vermelho" que relança anacronisticamente , em plano mundial, a palavra de ordem da luta de classes.
UB: Sim, é assim mesmo. Há um "reflexo protecionista" presente em todos os países e que é defendido por todos os partidos políticos. Naturalmente, é possível compreender os seus motivos. Ninguém está preparado para as grandes transformações em curso. Todos esperam que a globalização destrua os pressupostos em base aos quais os próprios vizinhos construíram as suas casas e organizaram a própria vida. Acontece assim que a globalização produz algo que se poderia denominar "efeito caracol". Retirar-se, porém, na própria toca não será muito útil. Recusar-se a tomar consciência do que está acontecendo fora da porta de casa e não aceitar expor-se ao risco do novo não pode ser um modo eficaz de preparar-se para o futuro.
5. A função dos Estados nacionais
DZ: Não pensas, porém, de que há aspectos da globalização que os países da "periferia" do mundo deveriam tentar contrastar, mesmo com meios políticos, para resistirem à força homologadora do mercado e dos seus correlatos ideológicos? A idéia de nação e de Estado nacional pode de fato ser considerada um resíduo obscurantista do passado? Não é talvez verdade que toda a tradição da democracia representativa, do rule of law e da própria doutrina dos direitos do homem são indissociáveis da experiência histórica do Estado nacional soberano?
UB: Estado nacional está-se transformando , mas não se pode dizer que esteja caminhando para a extinção. Pode até mesmo fortalecer-se , conforme afirmei no meu livro, tornando-se um Estado cooperativo, um Estado transnacional ou cosmopolita. Mas já não será, em todo caso, um Estado nacional no velho sentido. Para realizar o seu "interesse nacional", o Estado da segunda modernidade deve ativar-se simultaneamente em vários níveis locais e transnacionais e dentro de instituições muito afastadas dos seus confins. Um Estado, por exemplo, pode até usar a Europa como um pretexto para não tomar decisões locais ou para efetivar no plano europeu decisões para as quais o governo nacional não disporia de sustentação da maioria interna. Atores globais, como as empresas multinacionais, dispõem de grande poder no âmbito dos negócios de um Estado nacional, pois podem aumentar ou reduzir a oferta de vagas de trabalho. Mas um novo protecionismo regional poderia, apesar disso, revelar-se eficaz. No meu livro, propus um experimento mental: experimentemos imaginar um mundo no qual os custos da informação e do transporte para além das fronteiras aumentem em proporção significativa. As economias regionais e os mercados regionais - os da União Européia, por exemplo - tirariam certamente vantagem com isso.
DZ: Estou de acordo contigo. Acrescentaria apenas que a ênfase globalista menospreza o fato de que o Estado nacional parece destinado não apenas a conservar por muito tempo várias de suas funções tradicionais, mas também a assumir funções novas que não poderão ser absorvidas por estruturas de agregação regional ou global. Só um Estado nacional democrático parece capaz de garantir uma boa relação entre extensão geopolítica e lealdade dos cidadãos, e já por isso desenvolve, na minha opinião, função não facilmente compensável, mesmo no que diz respeito aos excessos das reivindicações étnicas. E talvez não se deva esquecer, conforme sublinhou Paul Hirst, que as pessoas são muito menos móveis do que o dinheiro, do que as mercadorias e as idéias, para não falar dos conteúdos da comunicação eletrônica: as pessoas são muito mais "nacionalizadas" e será, portanto, ao seu enraizamento nacional e territorial que se deverá apelar, mesmo no futuro, para legitimar as instituições supranacionais.
UB: A respeito deste assunto desenvolveu-se a mais importante controvérsia no campo da teoria política contemporânea: é possível uma democracia para além do âmbito do Estado nacional? Ou o Estado nacional deve ser considerado o único âmbito institucional dentro do qual se pode realizar o Estado de direito e, portanto, de tutela dos direitos humanos? Pode existir legitimação democrática obtida através de procedimentos transnacionais? Penso que, pelo menos no que concerne ao âmbito europeu, esta discussão tem valor puramente teórico. É pura ilusão pensar que seja possível atrasar o relógio da história e voltar à Europa dos tempos da democracia nacional. Não haverá democracia na Europa se não for uma democracia reforçada no plano transnacional. A democracia foi inventada há mais de mil anos em âmbito local. Depois, no curso da primeira modernidade, assumiu dimensão nacional. Agora e no próximo futuro a democracia deve ser reinventada no plano transnacional. Este é o sentido do projeto democrático para a Europa.
DZ: De acordo, mas o problema põe-se sobretudo fora da Europa, onde a dimensão transnacional é bem mais problemática. Escreves no teu livro que já vivemos numa sociedade mundial em que qualquer representação de "espaços fechados" só pode ser fictícia. E o próprio Estado já é pensável apenas como "Estado transnacional", cuja "sociedade civil" está atravessada por uma variedade de agências e instituições transnacionais, como as grandes empresas econômicas, os mercados financeiros, as tecnologias da informação e da comunicação, a indústria cultura e assim por diante. Dito resumidamente, pensas que a especificidade da globalização consista na extensão, na densidade e na estabilidade da rede de interdependência entre o global e o local ( a assim chamada "glocalização"), de que a inteira humanidade está tomando consciência através da comunicação massmidial. Defendes que a globalidade já constitui o horizonte cognitivo ao qual ninguém consegue subtrair-se. Talvez poderia objetar-te que há inteiros continentes - penso, por exemplo, na África - e amplas faixas de novos pobres e de novos analfabetos no interior até mesmo dos países mais ricos que ficam excluídos do horizonte cognitivo da globalidade ( e do uso dos meios eletrônicos que difundem a consciência reflexiva da mesma)
UB: Respondo contando uma história. Há alguns anos, uma antropóloga, especializada no estudo do Camboja rural, chegou a uma pequena localidade cambojana, onde queria desenvolver a sua pesquisa de campo. De noite, foi convidada a uma casa privada para um entretenimento. A antropóloga esperava descobrir algo sobre os passatempos tradicionais que sobreviveram naquele perdido local asiático. Pelo contrário, a noitada foi destinada à assistência da transmissão televisiva do filme Basic Instinct. Naquele momento, o filme ainda não havia sido projetado nas salas cinematográficas de Londres. Portanto, a globalização neste sentido não pode de modo algum ser impedida. Os antropólogos não cansam de repetir a substância desta história: as culturas locais do globo hoje não podem ser estudadas e entendidas sem que se tenham em conta os "fluxos globais", conforme afirmou, entre outros, Appadurai. Mas, certamente, isso não exclui que as desigualdades sociais estejam aumentando.
6. Caminhando para um capitalismo sem trabalho e sem vínculos fiscais?
DZ: Zygmunt Bauman falou de nova estratificação da população mundial em ricos globalizados e pobres localizados. E tu mesmo recordaste que os países da União Européia, nos últimos vinte anos, tornaram-se mais ricos numa proporção que se aproxima dos cinquenta aos setenta por cento. Não obstante isso, temos na Europa hoje vinte milhões de desempregados, cinquenta milhões de pobres e cinco milhões de sem teto. Isto não é indicador de novas, mais profundas diversidades em poder e riqueza entre os habitantes do planeta? Não poderia ser este o início da "brasilização"do mundo?
UB: Acabei de escrever um livro - Die schöne neue Arbeitswelt ( O belo novo mundo do trabalho) - no qual rejeito a tese da "brasilização" do ocidente. Invertendo o juízo de Marx, poder-se-ia de fato dizer que muitas áreas do "Terceiro Mundo" mostram à Europa a imagem do seu futuro. Por um lado - é o aspecto positivo - poder-se-ia indicar elementos como o desenvolvimento de sociedades multi-religiosas, multi-étnicas e multiculturais, estilos de vida intraculturais e uma multiplicação das soberanias. Por outro lado - este é o aspecto negativo - devemos reconhecer a difusão de áreas de informalidade, a flexibilidade do trabalho, a desregulamentação de vastos setores da economia e das relações de trabalho, o aumento do desemprego e do subemprego (trabalho em tempo parcial, trabalhos a tempo limitado ou por empreitada, trabalhadores domésticos e outras categorias que não é fácil denominar com terminologia tradicional). A tudo isso importa acrescer, como disseste, a radicalização das desigualdades e uma alta taxa de violência e de criminalidade.
DZ: O "globalismo econômico" é, no teu léxico teórico, algo bem diverso da globalização. É a ideologia ultra-libertária - falas até de "metafísica do mercado global"- que procura esconder os riscos que, particularmente, os processos de globalização econômico-financeira comportam. O perigo claramente mais grave - afirmas - provém dos setores mais fortes da economia globalizada, vem da capacidade que as grandes empresas industriais e financeiras tem para subtraírem-se dos vínculos da solidariedade nacional, especialmente da obrigação fiscal. A estrutura das grandes corporations é tamanha que podem escolher a bel-prazer e trocar rapidamente as sedes geográficas ou funcionais dos próprios fatores de produção, obtendo com isso grandes vantagens e subtraindo-se às regras impostas pelos organismos estatais. Que medidas são possíveis, fora da idéia do "governo mundial" e do "Estado mundial", que também tu pareces considerar perspectiva não realizável?
UB: Não devemos iludir-nos: um capitalismo que estivesse concentrado exclusivamente sobre a propriedade e sobre o lucro, que desse as costas para os trabalhadores, para o Welfare State e a democracia acabaria a longo prazo se autodestruindo. Por este motivo hoje não há apenas o risco de que milhões de pessoas fiquem sem trabalho. E não está apenas sendo destruído o Welfare State. A liberdade política e a democracia correm risco! Devemos perguntar-nos: qual é a contribuição que a economia global e as corporations multinacionais oferecem para sustentar a democracia no plano nacional ou cosmopolita? Devemos agir de maneira que a economia se torne responsável pelo futuro da democracia , reforçando, por exemplo, a política transnacional na Europa. Mas devemos também tentar reforçar as organizações transnacionais dos consumidores e, em geral, a chamada global civil society.
DZ: O desenvolvimento de tecnologias eletrônicas - automação, informática, telemática - aumenta a produtividade das empresas multinacionais que tendem a desfazer-se cada vez mais da força-trabalho que não seja altamente qualificada. Está-se afirmando um capitalismo global que é capaz de subtrair-se em grande parte aos custos do trabalho e, tendencialmente, ao próprio trabalho. Esta é a tenaz que, mesmo nos países industriais, está esmigalhando as novas gerações, cada vez mais atingidas pela não-ocupação e pelo desemprego. Contudo, em geral mais ameaçados são todos os cidadãos que não pertencem à minoria dos que são capazes de exercer tarefas tecnologicamente sofisticadas. A maioria dos cidadãos , mesmo quando encontra trabalho, é obrigada pela lógica da "flexibilidade" a aceitar empregos precários e mal remunerados e que, sozinhos, muitas vezes, não bastam para garantir subsistência digna.
UB: Isso é absolutamente correto. Devemos reconhecer que até nos chamados países de pleno emprego, como os Estados Unidos e a Inglaterra, de um terço até uma metade das pessoas que trabalham são hoje "trabalhadores flexíveis, de acordo com os muitos e bem ambíguos sentidos do termo. Acontece algo semelhante ao que aconteceu a propósito do chamado "modelo familiar normal". O que antes era típico, está-se tornando fenômeno minoritário. É por isso que devemos repensar e reformar o Welfare State em base a esta mudança morfológica do trabalho e da vida privada.
DZ: De fato é possível reformar o Welfare State? Ainda é possível fazê-lo? No teu livro, sublinhas o fato de que, enquanto crescem os lucros das grandes empresas, estão se esgotando, nos países ocidentais, os recursos financeiros tradicionalmente destinados às aposentadorias, aos serviços sociais e à assistência dos idosos. Esgotam-se porque as grandes empresas são capazes de fugir não apenas dos custos do trabalho, mas também dos vínculos das obrigações fiscais. Isso provoca naturalmente uma crise dos balanços estatais que podem contar cada vez menos com as entradas fiscais ligadas às atividades produtivas. Não é portanto apenas o trabalho que vem a faltar; vêm a faltar também os recursos públicos. Não há, então, o risco de que qualquer forma de Welfare State já destinada à extinção e que os defensores dos direitos sociais nos países ocidentais se estejam batendo por uma causa já perdida para sempre?
UB: Não, não penso assim. Na Europa atualmente temos, de modo inesperado, maioria de governos orientados para a esquerda, inclusive a Itália, a Alemanha, a Grã-Bretanha, e a França. O debate sobre a "terceira via" diz respeito substancialmente à reforma do Welfare State na era da globalização. No livro The Third Way, Anthony Giddens traça as linhas de uma sociedade de positive welfare e de estratégias de investimento. Este é o início da discussão sobre as estruturas de uma Europa social e democrática que certamente continuará nos próximos anos.
DZ: Sustentas, portanto, com Giddens e os social-democratas europeus, que existem respostas políticas capazes de neutralizar os riscos mais graves da globalização econômica e de relançar o projeto de uma nova modernidade. Este é o aspecto, segundo minha opinião, mais sugestivo, mas talvez também o mais problemático do teu livro. Enfatizas as possibilidades corretivas de uma série de intervenções que submetam a regras políticas e a lógicas cooperativas as forças anárquicas dos mercados globais. Entre estas intervenções, assinalas particularmente o incremento da cooperação internacional, a afirmação de uma concepção "inclusiva" da soberania dos Estados, o recurso a mecanismos de participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, policies de grande alcance no setor da formação, o apoio das atividades profissionais autônomas (nos setores das novas tecnologias, das culturas experimentais, dos mercados de nichos e das empresas públicas).
UB: É isso, sim. Mas estou consciente das resistências políticas e das críticas feitas pelos ambientes intelectuais. O Zeitgeist (espírito do tempo) pós-moderno leva a crer fortemente no fim da política e da racionalidade social. Eu, pelo contrário, consigo entrever a emergência de uma grande estação política. Contudo - admito- no quadro da "modernidade reflexiva" a autodefinição subjetiva da situação identifica-se com a própria situação. Esta é uma das razões que me levam a ser tão claramente contrário ao pensamento pós-moderno": poderia revelar-se uma profecia que se auto-realiza. E seria, além do mais, profecia muito chata e perigosa.
DZ: Coloquemos de lado o pessimismo intelectual dos pós-modernos e usemos a hipótese de que a tua profecia política seja capaz de se auto-realizar virtuosamente. Persiste o problema dos novos espaços e dos novos sujeitos de uma política transnacional. Tuas indicações movem-se no sentido da recuperação da política no plano mundial, depois que a política dos Estados nacionais e dentro dos Estados nacionais parece cada vez menos eficaz e cada vez mais afastada do modelo representativo. Quais são, para ti, as arenas transnacionais em que se podem efetivar os objetivos que indicas? Onde estão as forças políticas e econômicas potencialmente interessadas neste tipo de intervenção corretiva? Ou pensas numa revolução nos estilos de vida dos cidadãos ocidentais que os afaste dos valores de mercado e os torne imunes à sua potente e invadente ideologia aquisitiva?
UB: Tens razão que são necessários novos sujeitos políticos: partidos cosmopolitas capazes de agir em termos de representação transnacional dos interesses, mas que o façam no interior das arenas políticas dos Estados nacionais. Estes sujeitos podem, por isso, afirmar-se, no plano organizativo e programático, só em formas plurais, ou seja, como movimentos nacionais e globais ao mesmo tempo, como partidos locais representando "cidadãos globais". Os partidos cosmopolitas deveriam pôr-se em competição com os partidos nacionais no interior de competições políticas (aparentemente) nacionais. Seriam os primeiros atores capazes de experimentar no plano político as estratégias já há tempo adotadas pelas corporações industriais, libertando-se da gaiola territorial do Estado nacional. E deveriam agir em vários níveis, e pôr os interesses dos Estados nacionais em concorrência entre si. Aí, pode-se perguntar: onde estão os eleitores dispostos a serem representados por este tipo de partidos cosmopolitas? Penso que é nas grandes metrópoles, nas "cidades globais" que podem emergir a compreensão pós-nacional da política e a correspondente concepção pós-nacional do Estado, da justiça, da arte, da ciência e das relações públicas. Entretanto, não quero dizer com isso que seja suficiente estar ligado à rede de Internet para ser cidadão global...
7. Qual ordem política mundial?
DZ: Há ainda, na minha opinião, o tema das formas e das instituições da política transnacional, um tema que no teu livro não enfrentas de modo explícito, mesmo que assumas o processo de integração européia como importante ponto de referência prático e teórico. Mas os fenômenos de integração regional hoje em curso nalgumas áreas mais ricas do planeta parecem dificilmente exportáveis no plano global. Podem até ser vistos cimo reforço da lógica particularista da soberania estatal, ao invés de serem um passo em frente na direção do desejado objetivo de uma governance democrática do mundo. A formação de um "super-estado europeu", a saber, de uma entidade político-econômico-militar dotada de poderes excepcionalmente elevados é perspectiva promissora no sentido de atenuar os riscos da globalização econômica?
UB: Não acredito em super-Estado europeu. Também isso seria um modelo de modernização de caráter linear, em vez de reflexivo. A Europa é um eldorado de diferenças e pessoalmente penso que deveria continuar assim também na era da globalização. Ao mesmo tempo, porém, a Europa é o laboratório onde experimentar uma sociedade e uma política cosmopolita. A adoção da moeda única nos remete nesta direção. Quanto mais o Euro tiver sucesso, tanto mais urgentemente a Europa terá necessidade de uma alma democrática. Uma vez realizada a união monetária européia, a Europa deve fortalecer-se graças a novas idéias políticas e a debates, instituições e associações civis que superem as fronteiras dos Estados membros. Só uma Europa intelectualmente vital é capaz de reelaborar a velha idéia européia de democracia para a nova era global.
DZ: Consente-me, concluindo, alguma pergunta relativa às funções que, segundo a tua opinião, o direito internacional pode exercer a fim de conter as tendências eversivas da globalização econômica e de garantir uma nova ordem mundial. No teu livro citas Zum ewigen Frieden (Para a paz perpétua) de Kant, e às vezes pareces simpatizar com o ideal de um "direito cosmopolita" e de um "pacifismo jurídico". Te pergunto: pensas, com Kelsen e seus epígonos, que o direito e as instituições internacionais sejam o instrumento principal para garantir a ordem mundial e em especial uma paz estável e universal? Compartilhas, em outras palavras, as teses kelsenianas de Peace trough Law?
UB: Compartilho-as sem dúvida. No albor da segunda modernidade devemos perguntar-nos: quem são, no plano intelectual, os pais fundadores da sociedade global cosmopolita? Para mim, entre outros, são de grande atualidade Kant e Kelsen, mas também, por exemplo, Nietzsche, Hannah Arendt e Montaigne.
DZ: E qual é para ti o provável destino das Nações Unidas? A globalização a favorece, ou exige dela um revigoramento, ou está destinada a acabar com ela? É capaz não apenas de garantir a paz entre os Estados, mas de impedir a difusão da produção das armas de guerra e de vencer o desafio das grandes organizações criminais - comércio de armas, das drogas, das mulheres e dos emigrantes - que já assumiram dimensões globais?
UB: A democracia transnacional deverá ter em consideração algumas mudanças fundamentais ocorridas na organização transnacional do crime e da violência. As distinções clássicas entre "guerra"e "paz", "interno" e "externo", "sociedade civil" e "barbárie" - distinções associadas à autonomia do Estado nacional - já estão superadas. Ao mesmo tempo, é possível identificar novas tendências civis que poderiam oferecer as bases para uma paz estável. As Nações Unidas devem certamente ser revigoradas. Mas o fenômeno da globalização do crime e da violência exige também resposta por parte de uma estrutura de cooperação de tipo estatal .
DZ: Há quem falasse recentemente de uma global expansion of judicial power. O que pensas particularmente a respeito dos novos tribunais penais internacionais, aqueles já existentes para a ex-Iugoslávia e e para Ruanda, e aquele já permanente e universal cujo estatuto foi aprovado em Roma em junho passado? Consideras que podem oferecer contribuição significativa para a manutenção da paz e a tutela dos direitos humanos? Também tu estás de acordo com Jürgen Habermas segundo o qual o objetivo último deva ser uma jurisdição penal universal e, ao seu serviço, uma força policial supranacional?
UB: Naturalmente, uma corte internacional seria, a longo prazo, grande conquista em favor de uma ordem cosmopolita. Trata-se de projeto totalmente irrealizável? Não acredito. É um projeto tão irrealista quanto o foi o pedido de democracia há 150 anos na Igreja de São Paulo em Frankfurt (durante a revolução alemã). Mas eu espero que neste caso se tenha mais pressa.
Texto disponível na Internet: SWIF (http://lgxserver.uniba.it) _ Web italiano para a Filosofia - Copyrigt 1997-1998
Tradução provisória portuguesa de SELVINO JOSÉ ASSMANN - Florianópolis - UFSC - Depto. de Filosofia - julho de 2000.
Nenhum comentário:
Postar um comentário