1 SÃO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIÇÃO 237
A evolução criadora, de Henri
Bergson
Sua atualidade cem anos depois
Editorial
No ano em que se comemora o centenário de publicação de A evolução criadora (Rio de Janeiro: Opera Mundi, 1971),
indiscutivelmente a obra de maior impacto do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), a IHU On-Line propõe-se a
discutir e analisar seu legado.
Ao examinar as idéias de Bergson sobre o cinema, o argentino Adrián Cangi (Universidade de Buenos Aires) diz que, “em
certo sentido, o mito da caverna exposto em A república, como tensão entre a idéia e o simulacro, pensada como
projeção indireta, está no fundo da imagem dogmática do pensamento que Bergson critica”. No ponto de vista da filósofa
brasileira Débora Morato, da Universidade Federal de São Carlos, “em A evolução criadora, Bergson defende que a
função do intelecto é adaptativa e assim naturaliza a inteligência”, e completa: “Para viver, é preciso recortar o real em
função das nossas necessidades”.
Na opinião do filósofo francês Eric Lecerf, da Universidade de Paris VIII, uma das proposições mais importantes contidas
em A evolução criadora é “desvendar a consciência que nos habita”, o que “nos conduz, desta forma, a atingir um
conhecimento verdadeiro do ser vivo”. O também francês Pierre Montebello da Universidade de Mirail, Toulouse, saúda a
filosofia bergsoniana como uma filosofia do futuro: “Bergson faz-nos entrever nossa participação num movimento criador
do universo, do qual nós não somos nem a origem nem o fim. Esta idéia de um universo aberto, criador, que em nada
corresponde àquele que a metafísica grega ou clássica descreveu, exerce hoje uma grande influência. O bergsonismo é
uma filosofia do futuro, do tempo, da transformação”.
SÃO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIÇÃO 237
Henri Bergson (1859-1941)
nasceu em Paris, filho de
mãe inglesa e pai judeu-polonês,
e cresceu tendo o
francês como língua
materna. Passou sua vida
ativa como professor
universitário de filosofia,
mas era um escritor tão
cativante que foi lido
amplamente e teve influência fora das universidades. Em
1927, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Entre seus
livros mais conhecidos, estão Ensaio sobre os dados
imediatos da consciência (1889), Matéria e Memória
(1896) e A evolução criadora (1907). Nos últimos anos
de vida, seu pensamento tomou um rumo religioso, e é
possível que tenha sido recebido na Igreja Católica
romana pouco antes de morrer; se assim foi, o ato foi
deliberadamente protelado e mantido em segredo,
porque não queria parecer estar abandonando os judeus
enquanto estavam sendo perseguidos pelos nazistas e
enquanto a França estava sob ocupação alemã.
“Elã vital”
Bergson acreditava que os seres humanos devem ser
explicados primordialmente em termos do processo
evolutivo. Parecia-lhe que, desde o início, a função dos
sentidos nos organismos vivos tem sido não fornecer ao
organismo “representações” de seu ambiente, mas
estimular reações de caráter preservador da vida. Em
primeiro lugar, os órgãos sensoriais; em seguida, o
sistema nervoso central, e, depois, a mente
desenvolveram-se durante eras incontáveis como parte
do equipamento do organismo para a sobrevivência, e
sempre como auxiliares do comportamento; e até hoje
aquilo que nos fornecem não são pinturas objetivas do
nosso ambiente, mas mensagens que nos levam a nos
comportar de determinada maneira. Nossa concepção de
nosso ambiente não é nada parecida com um conjunto de
fotografias detalhadas: ela é altamente seletiva, sempre
pragmática, e sempre a serviço de si mesma. Damos
atenção quase exclusiva àquilo que importa para nós, e a
concepção que formamos de nosso ambiente de constrói
em termos de nossos interesses, sendo o mais premente
deles nossa própria segurança. Apenas quando se
percebe isso é que a verdadeira natureza do
conhecimento humano para ser entendida.
Quanto à evolução, Bergson acreditava que os
processos mecânicos de seleção aleatória são
inadequados para explicar o que acontece. Parece haver
algum tipo de impulso persistente rumo a uma maior
individualidade e todavia, ao mesmo tempo, maior
complexidade, apesar de ambas sempre implicarem uma
crescente vulnerabilidade e risco. A esse impulso Bergson
deu o nome de “elã vital”, que podemos traduzir por
“impulso vital”.
Bergson acredita que, dado que tudo está mudando o
tempo todo, o fluxo do tempo é fundamental a toda
realidade. Nós realmente vivenciamos esse fluxo dentro
de nós mesmos da maneira mais direta e imediata, não
por meio de conceitos, e não por meio de nossos
sentidos. Bergson chama esse tipo de conhecimento não-mediado
de “intuição”. Ele acredita que também temos
conhecimento intuitivo a respeito de nossas decisões de
agir, portanto conhecimento imediato de nossa própria
posse do livre-arbítrio. No entanto, esse conhecimento
imediato da natureza íntima das coisas é bastante
diferente em caráter do conhecimento que nosso
intelecto nos dá do mundo externo a nós mesmos.
A realidade flui
O que nosso intelecto nos fornece são sempre os
materiais exigidos para a ação, e o que queremos é
poder prever e controlar os eventos, por isso nosso
intelecto nos apresenta um mundo que podemos
apreender e usar, um mundo repartido em unidade
manejáveis, objetos separados em medidas delimitadas
de espaço e também em medidas delimitadas de tempo.
É o mundo dos afazeres e negócios diários, do senso
comum, e também da ciência. Sua extraordinária
utilidade para nós se exibe nos triunfos da moderna
tecnologia. Mas tudo isso é um produto de nossa maneira
de lidar com o mundo, exatamente da mesma maneira (e
pelo mesmo tipo de razão) como um cartógrafo
representará uma paisagem viva em termos de uma
grade geométrica quadriculada. Isso é inegavelmente
útil, prodigiosamente útil, e nos permite fazer toda sorte
de coisas práticas que queremos; mas não nos mostra a
realidade. A realidade é um continuum. No tempo real
não existem instantes. O tempo real é um fluxo
contínuo, sem unidades separáveis, não delimitado por
extensões mensuráveis. O mesmo com o espaço: no
espaço real não há pontos, nem lugares separados e
específicos. Tudo isso são mecanismos da mente.
Ser e tempo
Assim, vivemos simultaneamente em dois mundos. No
mundo íntimo de nosso conhecimento imediato tudo é
continuum, tudo é fluido, fluxo perpétuo. No mundo
externo apresentado a nós por nossos intelectos há
objetos separados ocupando determinadas posições no
espaço por períodos mensuráveis de tempo. Mas, é claro,
esse tempo externo, o tempo dos relógios e do cálculo, é
um construto intelectual, e não é de modo algum o
mesmo tempo “real” de cujo fluxo contínuo temos
experiência íntima direta.
No ponto culminante de sua filosofia, Bergson
identifica esse fluxo de tempo vivenciado internamente
com a vida mesma e com o impulso vital, o elã vital que
leva o processo da evolução constantemente para a
frente. Lembraremos que a filosofia de Heidegger
também culminava na identificação de ser e tempo,
embora os dois filósofos tenham chegado à mesma
conclusão independentemente e de pontos de partida
completamente diferentes.
Em sua própria época, Bergson teve alguns críticos
eminentes entre seus contemporâneos, como Bertrand
Russell 1 . A principal queixa deles era que Bergson,
embora tornasse suas idéias atraentes com vívidas
analogias e metáforas poéticas, não as sustentava muito
com argumentos racionais. Confiava-os à intuição dos
leitores. Além disso, queixavam-se seus críticos, suas
idéias não resistiam muito bem à análise lógica. Seus
defensores replicavam dizendo que ele possuía todas
essas características em comum com os mais criativos
escritores, e assim era porque estava oferecendo
insights, mais do que argumentos lógicos. Em todo caso,
é certo que seu pensamento teve apelo amplo e
permanece como um elemento distintivo da filosofia do
século XX.
Fonte: MAGEE, Bryan. História da filosofia. 3. ed. São
Paulo: Loyola, 2001.
1 Bertrand Arthur William Russell (1872-1970): considerado um dos
mais influentes matemáticos, filósofos e lógicos do século XX. (Nota da
IHU On-Line)
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