domingo, 15 de novembro de 2009

A crítica bergsoniana ao cinema - entrevista com Adrián Cangi

28 SÃO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIÇÃO 237
A crítica bergsoniana ao cinema
ENTREVISTA COM ADRIÁN CANGI
Questionado se o cinema para Bergson seria uma espécie de sombra
projetada no fundo da caverna platônica, o filósofo argentino Adrián Cangi
não hesitou em responder: “Em certo sentido, o mito da caverna exposto em
A república, como tensão entre a idéia e o simulacro, pensada como projeção
indireta, está no fundo da imagem dogmática do pensamento que Bergson
critica. Em Platão, a imagem está a serviço do poder que diferencia entre as
cópias que se atentam ao modelo e aos meros simulacros. A matriz platônica
define, deste modo, os pressupostos de um pensamento transcendente, que
tem vontade de se impor como conquista do verdadeiro através do conceito.
Daqui nasce a idéia da verdade como invariante abstrata e teológica”. De
acordo com Cangi, Bergson “não deixa de pensar o mito da caverna
criticamente para desmantelá-lo como o domínio das ‘posturas’ abstratas
que separam o inteligível-real do sensível-aparente. Encontra-se mais perto
de pensar o universo material como cinema, ainda que como intuir ao
cinematográfico como um ilusionismo mecânico”. A entrevista, exclusiva, foi
concedida por e-mail à IHU On-Line.
Cangi é doutor em Sociologia, Filosofia e Letras. Leciona na Universidade
de Buenos Aires (UBA), Fundação Universidade do Cinema (FUC) e
Universidade Nacional de La Plata. Profundo conhecedor do pensamento de
Spinoza, Nietzsche, Foucault e Deleuze, é um dos autores de Lúmpenes
peregrinaciones. Ensayos sobre Néstor Perlongher (Rosario: Beatriz Viterbo
Editora, 1996) e Glauber Rocha. Del hambre al sueño. Obra, política y
pensamiento (Buenos Aires: Fundación Eduardo F. Costantini, 2004), entre
inúmeras outras obras.
IHU On-Line – Poderia explicar por que Bergson pensa
o cinema como a perpetuação de uma antiga ilusão
que consiste em crer que se pode construir o
movimento mediante momentos fixos de tempo?
Adrián Cangi - A filosofia, como apontou Deleuze,
manteve, até a contemporaneidade, condições pré-cinematográficas,
conferindo-lhe a percepção natural,
um privilégio que faz com que o movimento siga ainda
vinculado às “posturas”, sejam estas essenciais ou
existenciais. A partir daí, o movimento cinematográfico é
visto como imagem do pensamento, ao mesmo tempo
infiel às condições da percepção e portador de um novo
relato capaz de se acercar à percepção e ao mundo. Será
no capítulo IV de A evolução criadora (1907) que
Bergson expôs que “a forma não é mais que uma
instantânea tomada sobre uma transição”, sustentando
que a percepção solidifica em descontinuidades formais a
continuidade fluida. Define a forma como uma imagem
instantânea que funciona como uma “imagem média do
movimento”. Configura, assim, criticamente “o caráter
cinematográfico do nosso conhecimento das coisas”.
Conhecimento sustentado na idéia de que toda
percepção, intelecção (estudo) e linguagem operam
como um movimento abstrato e simples, artificialmente
criado, que permitiria tornar “instantânea” como uma
permutação do devir interior das coisas por um
movimento geral, uniforme e invisível. Tal mecanismo
estaria situado no fundo do aparato do conhecimento
com o fim de imitar mecanicamente o devir. O cinema,
como unidade de comparação, não se sai bem na análise
de Bergson. Contudo, Deleuze mostrará minuciosamente
em A imagem-movimento. Cinema 1 (1983) e A
imagem-tempo. Cinema 2 (1985) que Bergson estaria
inventando premonitoriamente os problemas de uma
linguagem, que somente pude perceber no registro
amoroso e vacilante iniciais e que em seu pensamento
alcançará a inquietude espiritual madura, antes que os
grandes cineastas o produzam como marcas de estilo.
Imagem é igual a movimento
É no capítulo I de Matéria e memória (1896) que
Bergson refletirá o cinema pensando que a imagem é
igual ao movimento, que a imagem-movimento e a
matéria-fluxo são estritamente a mesma coisa. De
Matéria e memória a A evolução criadora, Bergson
concebe um corte móvel da duração mais que um corte
imóvel ou instantâneo do movimento. Deste modo, o
cinema seria capaz de alcançar o universo material na
imagem-movimento como identidade absoluta da imagem
e o movimento. Identidade maquinista que os conceitos
de Bergson nos permitem ver e que, contudo, em sua
crítica explícita, nos afasta do cinema. Podemos dizer
que o cinema perpetuaria uma antiga ilusão porque
Bergson crê que em um movimento que há mais que nas
posições sucessivas, há mais num devir que nos cortes ou
formas uma atrás da outra. O mecanismo
cinematográfico da inteligência responde à
representação por detenções que dominou a filosofia
antiga e que atravessa – para Bergson – a filosofia
moderna em certo grau. A provocação deste pensamento
consistiria em se instalar na mudança e captar, ao
mesmo tempo, a mudança e os estados sucessivos que a
todo instante poderiam imobilizar-se. Mas instalar-se na
transição supõe “renunciar aos hábitos cinematográficos
de nossa inteligência”.
Deleuze supõe clarificar a imagem do pensamento
como duração em três grandes teses. A primeira provém
de Matéria e memória e sustenta que o movimento é o
ato de recorrer, o espaço recorrido é indivisível, ou bem
não se divide sem mudar com cada divisão da natureza.
Então, não se pode reconstruir o movimento com
posições no espaço ou com instantes no tempo. Uma
duração concreta em movimento é uma imagem média
com dado imediato. As outras duas provêm de A
evolução criadora. A segunda sustenta que o movimento
não é a postura regulada de uma forma a outra segunda
ordem de posturas ou instantes privilegiados, como
supunha a filosofia antiga, mas que este somente se
recompõe segundo cortes imanentes ou instantes
quaisquer, como explica a ciência moderna. O tempo
aparece, assim, como variável independente do
movimento. A terceira dirá que se o instante é um corte
imóvel do movimento, ou seja, este resulta de um corte
móvel da duração. O movimento expressa a mudança na
duração. A criatura existe na duração como um todo que
não está dado nem pode se dar. Corresponde-se com o
aberto que assimila no ser vivo o ritmo do universo. Esse
todo crê numa dimensão sem partes como puro devir sem
interrupção que, contudo, passa por estados somente
pensáveis como graus artificiais ou conjuntos
relativamente fechados.
A partir destas teses, Deleuze dirá que Bergson
antecipa a criação de três tipos de imagens do
pensamento. Podemos dizer que há não somente imagens
instantâneas como cortes imóveis do movimento, mas
também imagens-movimento como cortes móveis da
duração e imagens-tempo, para além do movimento
mesmo, como imagens-duração, imagens-mudança,
imagens-relação. Aquele que nos conduziria pelo
mecanismo cinematográfico do pensamento que fazia a
ilusão mecanicista, para Deleuze havia liberado um novo
modo de pensar a igualdade da imagem e o movimento,
destituindo a ilusão antiga da imagem do pensamento.
IHU On-Line – Em que medida este pensamento serve
como instrumento de crítica à indústria
cinematográfica contemporânea em sua tendência a
perpetuar o instante e o estereótipo?
Adrián Cangi - A história do cinema tem revelado
procedimentos de criação que se subtraem aos poderes
estabilizadores da comunicação com sua promessa
orgânica, sensorial e motriz. Cada interrupção desta
lógica de ação-reação como imagem realista do
pensamento gera uma anomalia, um falso movimento,
um salto na continuidade perceptiva. Sempre que as
lógicas orgânicas da representação são interrompidas
aparece o gesto de estilo. O estilo como gesto poético
que me atrai responde à sentença de Bresson 31 : “Não
corra atrás da poesia. Ela penetra por si mesma através
das junções!”. Bergson é um pensador dos intervalos,
elaborando um “entre” como fonte imanente do
movimento-duração do qual emerge potências criadoras.
Esta posição supõe para o pensamento um salto que vai
da percepção automática à percepção atenta, do
movimento estruturado pelo costume associativo e
estratigráfico. Deleuze vê nesta lógica um pensamento
31 Robert Bresson (1901-1999): diretor de filmes francês,
considerado um dos maiores cineastas franceses do século XX e um dos
grandes mestre do movimento minimalista. Um dos filmes que dirigiu é
Diário de um padre (1951). (Nota da IHU On-Line)
da diferença que absorve os estereótipos na repetição e
os transforma no processo de criação. O cinema, como
outras linguagens de criação, trabalha e elabora
estereótipos e tópicos. Os grandes criadores os utilizam e
desgastam produzindo intervalos em sua repetição. De
distintos modos, Vertov 32 , Bresson, Rossellini 33 , Godard 34 ,
Syberberg 35 , somente para citar alguns realizadores que
utilizam o intervalo para descompor a percepção do
instante e do estereótipo.
O espetáculo é o pesadelo da sociedade moderna que
não expressa seu desejo de infância e de sonho. Um
estilo é sempre uma indecisão que resiste à ilusão.
Segundo a fórmula de Bergson, sempre vemos de menos
determinados por condicionamentos psicológicos,
econômicos, ideológicos. Vemos por capas: a postura de
uma capa à outra é uma mudança visão do mundo. Ao
começar “História(s) do cinema”, Godard disse: “guarda
para ti uma imagem de indefinição!”. Essa margem é um
intervalo que produz uma mirada mais para lá do
instante e do estereótipo.
IHU On-Line – O cinema para Bergson seria uma
espécie de sombra projetada no fundo da caverna
platônica?

Adrián Cangi - A filosofia de Platão parte da forma
e vê nela a essência mesma da realidade. Não obtém
a forma mediante uma vista tomada sobre o devir. A
duração e o devir somente seriam a degradação da
eternidade imóvel. A forma independente do tempo
não é unida à percepção; é uma abstração. As
formas se assentam fora do espaço e em cima do
tempo. Expressam uma distensão no tempo e uma
extensão no espaço. Em certo sentido, o mito da
caverna exposta em A república, como tensão entre
a idéia e o simulacro, pensada como projeção
indireta, está no fundo da imagem dogmática do
pensamento que Bergson critica. Em Platão, a
imagem está a serviço do poder que diferencia entre
as cópias que se atentam ao modelo e os meros
simulacros. A matriz platônica define, deste modo,
os pressupostos de um pensamento transcendente,
que tem vontade de se impor como conquista do
verdadeiro através do conceito. Daqui nasce a idéia
da verdade como invariante abstrata e teológica.
Bergson não deixa de pensar o mito da caverna
criticamente para desmantelá-la como o domínio das
“posturas” abstratas, que separam o inteligível-real
do sensível-aparente. Encontra-se mais perto de
pensar o universo material como cinema, ainda que
este seja visto como um ilusionismo mecânico.
Deleuze consegue perceber que Bergson concebe um
plano móvel como um conjunto de movimento que
expressa uma mudança. Esse plano corresponde à
idéia de bloqueio de espaço-tempo mais próximo ao
cinema como igualdade da imagem e à matéria do
que ao mito da caverna.
IHU On-Line – Qual é a importância de A evolução
criadora dentro de sua obra? Qual é o papel
ocupado pelo conceito de “elã vital” nesta
filosofia?
Adrián Cangi - Nesta obra, Bergson desenvolve a
noção de seu pensamento: a duração. O que quer
dizer pensar a vida como duração? Liberar-nos da
falsa idéia de que a experiência do tempo é uma
sucessão de instantes autônomos, quase como se o
presente estivesse separado do passado e tivesse
necessidade de recriá-lo de qualquer maneira,
através de uma reelaboração a posteriori. Viver não
é reviver o passado; entre passado e presente não há
cicatriz alguma. Na experiência do tempo como
duração, nada do passado se perde. O presente não
é senão a prolongação do passado que opera
incessantemente até o futuro. Se tudo muda
continuamente, a forma de experiência resulta
perpetuamente remodelada por um impulso de
criação ininterrupto, flexível e infinito, que gera e
incorpora a invasão da novidade. Bergson desdobrou
em sua obra uma metafísica da vida, evoluindo os
processos vitais como o impulso que nos lança até
um dinamismo criativo.
Em Introdução à metafísica (1903), considera o
processo impulsivo que nos lança até a criação como
uma identificação com a vida do mundo inteiro. Esta
experiência havia sido abordada em Essai sur les
données inmédiates de la conscience (1889), em
relação a duas ordens de realidade: uma,
homogênea, caracterizada pelo domínio da dimensão
espacial como uma ordem quantitativa e múltipla; a
outra, heterogênea, caracterizada por uma
experiência do tempo como duração alcançada pela
percepção das qualidades e pela indeterminação
numérica. A primeira está conectada com a extensão
e a exterioridade; a segunda, com a intensidade e a
interioridade. De um lado, a ordem da continuidade,
do outro, da sensação dos estratos profundos da
consciência. Deste último, se desprende a intuição
como um “elã vital” de uma sensação que vem
acompanhada de um acontecimento diferencial. A
sensação é uma experiência da vibração do devir
que não pode ser alcançada abstratamente. A
transição é contínua, mas a vibração supõe um
caminho de estado. O fundo do problema consiste
em distinguir as presenças puras da duração e da
extensão, encontrando as articulações do real ou as
diferenças da natureza. A intuição do devir é uma
experiência trágica, afirmativa do múltiplo e
pensável como uma alegria dinâmica.
IHU On-Line – E em que medida é possível
aproximar o conceito de vida de Bergson com a
vontade de potência nietzschiana?
Adrián Cangi – Por comodidade, escolho somente
um aspecto para responder esta pergunta. Bergson
considera a idéia do possível como uma miragem do
presente no passado. O possível é um falso problema
porque não é mais que o real mesmo unido a um ato
do espírito que expulsa a imagem no passado uma
vez que se tem percebido. Nossos hábitos
intelectuais são os que nos impedem de perceber. O
atual está acompanhado pela imagem virtual de
maneira inseparável e ambas caras compõem o real.
A noção da palavra virtual provém do latim medieval
virtualis, no sentido de virtus, estritamente: força,
potência. O virtual é aquele que existe em potência,
e não o ato. O virtual tende a atualizar-se. O atual e
o virtual são maneiras de ser diferentes. O virtual é
como um complexo problemático, um nó de
tendências das forças que acompanham uma
situação, um acontecimento e que espera um
processo de resolução: a atualização. A virtualização
se pode definir como o movimento inverso da
atualização. Movimento que consiste em uma
passagem do atual ao virtual, em uma elevação da
potencia da entidade considerada. A virtualidade
não é uma desrealidade, mas uma mutação da
identidade, um deslocamento do centro de
gravidade ontológico do objeto considerado. A vida
em Bergson é pura potência virtual, impulso vital ou
movimento da duração que se diferencia. Este seria
um plano de aproximação do movimento da vida em
Bergson e a vontade de potência em Nietzsche.

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