Mudar mentalidades e práticas: um imperativo
Cândido Grzybowski - Sociólogo, diretor do Ibase
Revista Democracia Viva / Ibase
A crise climática é a consequência mais evidente, mais imediata e mais ameaçadora do
modelo industrial, produtivista e consumista em que se baseia a nossa economia e o
modo de vida que levamos. Não se trata de algo conjuntural, mas de esgotamento
de um sistema que tem como motor o ter e o acumular, ou seja, um desenvolvimento
que tem como pressuposto básico o crescer, crescer mais, sem parar, sem respeitar
limites naturais, tudo para concentrar riquezas. Como condição para desenvolver, não
importa a destruição ambiental que possa provocar, nem que a geração de riqueza
seja, ao mesmo tempo, geração de pobreza, exclusão social, desigualdades de todo
tipo. O aquecimento global e a crise do clima são, por isso, expressões de uma
inviabilidade intrínseca deste desenvolvimento.
Tanto de um ponto de vista ambiental como
social, não dá para tornar sustentável tal desenvolvimento.
Não importa o lugar que ocupamos
neste planeta único e finito, o fato é que
precisamos mudar. Esse é, hoje, um imperativo
ético, de vida, está em questão a integridade
da vida e de sua visceral relação com o meio
ambiente, e, portanto, da humanidade inteira.
A crise está aí. Não a vê quem não quer.
Não adianta pensar que dá para se safar,
que não é com a gente. O clima, como bem
comum, tem a virtude de ser cosmopolita,
para o bem e para o mal. Só que a mudança
climática resultante do tipo de economia que
temos, em especial sua base energética, afeta
e afetará particularmente os 80% da humanidade
que pouco ou nada receberam deste
modelo de desenvolvimento. Ainda mais
agora na sua modalidade globalizada, de
interdependência quase total. Ouso dizer
que estamos condenando a esmagadora
maioria a ser refugiada ambiental sem eira
nem beira, à deriva, como os barcos de migran-tes
clandestinos no Caribe e no Mediterrâneo
ou a espantosa expansão de favelas nas
grandes cidades já anunciam.
Estamos diante de uma crise civilizatória,
é isto que precisamos reconhecer para
poder reagir enquanto ainda é tempo. A lógica
do desenvolvimento, gestada com a revolução
industrial, tornou-se o motor econômico, polí-tico
e cultural do mundo nos últimos séculos.
Não se trata mais de um embate nos velhos
termos – capitalismo x socialismo –, no marco
da civilização industrial e seus desdobramentos.
Estamos diante da crise da própria
civilização industrial e de seus modelos de
organização econômica e política a dominante
capitalista e a desafiante e subalterna socialista
para a sociedade. São os fundamentos
desse tipo de civilização que se esgotaram.
Literalmente, derreteram, foram consumidos
pelas suas próprias contradições. E ameaçam
o planeta inteiro.
Nova civilização, novo paradigma
Estamos diante de uma urgência e uma radicalidade:
aqui e agora, precisamos transformar
nossos ideais, modos de pensar e os sistemas
políticos, econômicos e técnicos que
sustentam o desenvolvimento. A ruptura tem
de ser total, de ponta cabeça. Passar de uma
civilização industrial e produtivista para uma
biocivilização, comprometida com a vida no
planeta, implica verdadeira revolução.
A ruptura é espinhosa. O desenvolvimento
está encrustado na gente, é um valor.
Desenvolvimento lembra imediatamente progresso.
E quem não quer progresso? O problema
é que deixamos de discutir a qualidade de
vida que nos traz o progresso. Quanto de lixo,
poluição e destruição estão associados a este
progresso! Basta lembrar aqui o carro, um dos
protótipos atuais do modelo de desenvolvi-mento.
As nossas cidades são desenhadas
para eles e não para nós, cidadãs e cidadãos.
E no entanto, quase não andamos por conta
dos monumentais engarrafamentos. Será que
para viver bem precisamos sempre de mais?
Ter mais e mais bens, trocando sempre por-que
estragam logo (feitos para não durar) ou
pela compulsão, que o ideal nos impõe, de
adquirir o último modelo. Isso só gera destrui-ção
em todo ciclo, da extração das matérias-primas
ao lixão onde jogamos os bens em
desuso. Já paramos para pensar quem está
ganhando nesta história?
Não há dúvida que existem enormes
necessidades não atendidas. Muita gente tem
seus direitos econômicos, sociais, culturais e
ambientais não atendidos. Grupos e povos
inteiros estão condenados à exclusão, miséria,
fome, pobreza, privações de todo tipo. Mas por
quem e como isto é gerado? Quanto mais se
desenvolve o mundo na base deste modelo –
como agora, com a globalização, ficou mais
evidente ainda –, mais e mais desigualdade
se gera no mundo. Apenas 20% da huma-nidade
consome mais de 80% dos recursos
naturais e dos bens e serviços produzidos por
este sistema. E o pior é que se fosse genera-lizá-
lo para atender a todos os seres humanos,
aí faltaria planeta, faltariam recursos naturais!
Foi criada a pegada ecológica (foot print),
pelos ecologistas, exatamente para avaliar
essa apropriação indevida da natureza pelas
camadas privilegiadas da população e pelos
países mais desenvolvidos. Para viver, na média
de um norte-americano, a humanidade pre-cisaria
de uns cinco planetas. Por isso, mudar
é uma condição sine qua non.
Impõe-se uma grande revolução de
mentalidades e de sistema de valores. Preci-samos
superar a ideologia do progresso e
voltar a colocar no centro a justiça social e
ambiental com a ideia de bem viver para todas
as pessoas. Isto enquanto ainda é tempo, pois
se não mudarmos já... amanhã será tarde.
Comecemos disputando sentidos e significa-dos
do desenvolvimento que nos é dado como
salvação. Há uma ditadura de pensamento
econômico no debate e nas decisões políticas,
como se nada pudesse ser feito sem crescimento
econômico como condição prévia.
Considerações ambientais e sociais são custos
na visão economicista dominante e não bases
nas quais se assentam as próprias sociedades.
Repolitizar tudo é a palavra. Trata-se de submeter
o econômico e o mercado, a ciência e as
técnicas, as estratégias de
desenvolvimento a uma
filosofia de vida que vê
os seres humanos como
parte intrínseca do meio
natural e em íntima interação
com todos os seres
vivos, em sua biodiversidade,
seus territórios.
Estamos diante da
necessidade de um novos
paradigma ético, analítico
e estratégico para iniciar-mos
aqui e agora a mu-dança.
Precisamos de uma
infraestrutura mental, de
uma revolução cultural
como diria nosso Betinho,
que reponha tudo no lugar,
o lugar da vida, da natureza,
das ideias, de nossa
enorme capacidade coletiva
de criar, de inventar.
Ponhamos isso tudo a serviço
de um re-encontro entre nós mesmos,
seres humanos, com a diversidade do que
somos e do que sabemos fazer e criar. Mas
nosso reencontro, também, precisa ser com
o meio ambiente do qual sugamos a vida e
do qual somos parte integrante.
Trata-se de criar um grande movimento
de ideias, uma espécie de religião, onde cremos
e agimos com determinação. Isso pode fazer
a diferença hoje e fazer balançar a política a
única arena possível para enfrentar e levar a
cabo a nossa responsabilidade coletiva diante
do desastre que se anuncia do local, lá onde
vivemos, ao mundial. Não dá para esperar!
A Conferência sobre o Clima, em Copenhaguem,
já está quase se realizando. Pressionemos
nossos negociadores para que assumam a
responsabilidade republicana e cidadã que
deles esperamos!
Mas o fundamental é estarmos convencidos
que outro mundo é possível. A dúvida
só retarda a ação efetiva. Pior, permite que sejamos
presas fáceis de um falso discurso sobre
a necessidade de agredir o meio ambiente para
nos desenvolver, para resolver nossos gritantes
problemas sociais. Uma coisa é encarar nossas
necessidades inadiáveis, outra é confundir isso
com apoio aos grandes conglomerados econômicos
e financeiros para que tratem do problema.
Isso vai das grandes hidroelétricas ao
agrocombustível, do desmatamento para criação
de bois e dos grandes desertos verdes para
celulose ao apoio às grandes empreiteiras
porque criam empregos. Nenhuma ação polí-tica
de mudança poderá acontecer se nós,
cidadãs e cidadãos, não acreditarmos que
ela pode, precisa e queremos que aconteça.
Sobre a mudança de paradigma, a bola está
com a cidadania. Está em nossas mãos a pos-sibilidade
de o Brasil agir diferentemente, nós
que somos detentores de um dos maiores
patrimônios naturais da humanidade.
Bases para começar
Compartir o mundo, este é o segredo simples
de uma nova consciência ética e cidadã, de
dimensões planetárias. Precisamos compartir
entre nós, e com gerações futuras, aquilo
que generosamente recebemos, como dom
da própria natureza. Precisamos compartir,
também, o que produzimos, respeitando a
vida e o meio ambiente a partir do gênio coletivo
– ou alguém tem dúvida que o conheci-mento
humano é algo essencialmente cole-tivo,
produzido na interação e troca que a
linguagem e a inteligência nos permitem? e
da aplicação prática como ciência e tecnologia
na criação de bens e serviços úteis para
todos e todas. Compartir significa se solidarizar
e ser responsável. Compartir quer dizer reconhecer
nos outros e outras os mesmos direitos
que queremos para nós mesmos.
Um fundamental desafio para mudar
tudo é recolocar no centro os bens comuns,
aqueles que são condição de vida para todos os
seres humanos. Aqui cabe lembar, em primeiro
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MUDAR MENTALIDADES E PRÁTICAS: UM IMPERATIVO
lugar, os bens comuns dados, como a água, o
ar que respiramos, o clima, a biodiversidade,
os enormes recursos que a natureza contém
acumulados ao longo do tempo, enfim, a
bioesfera como um sistema único em sua
diversidade. Mas, também, são fundamentais
para outro estilo de vida os bens comuns criados
ao longo da história humana, sejam as
línguas, o canto e a música, a arte e a cultura
em geral, como os conhecimentos, a ciência
e a técnicas, as filosofias. A preservação, o
fortalecimento e o uso responsável desses
bens é condição de vida em sociedade e de
uma relação saudável, justa e sustentável
com a natureza. Uma tarefa urgente e incontornável
é desprivatizar e desmercantilizar os
bens comuns – hoje, uma das maiores ameaças
produzidas pelo modelo de desenvolvimento
que temos e, portanto, um dos fatores
determinantes do aquecimento global.
Na busca de definição das bases de
um novo mundo, não podemos esquecer de
conquistas humanas que se revelam estratégicas
e que precisam ser potencializadas.
Trata-se da democracia como método de
transformação e como modus operandi de
uma sociedade baseada na justiça social e
ambiental. Para ampliar o espaço da política
sobre a economia, do espaço público sobre
o privado, do poder cidadão sobre o poder
do dinheiro e das empresas, é fundamental a
democracia. Mas a democracia é essencial
para reposicionar a questão ambiental como
uma questão de justiça social, desta e das
futuras gerações.
Quando falamos em sociedades sustentáveis,
em vez de desenvolvimento sus-tentável,
estamos sobrepondo o direito coletivo
cidadão de ter o suficiente e digno para
viver segundo as condições históricas comida,
roupa, casa, saúde, cultura e felicidade,
segundo um radical princípio de igualdade
com valorização da diversidade, sobre o direito
individual e privado de acumular sem limites.
A democracia traz ao centro a participação,
ou seja, o direito e a responsabilidade cidadã
de definir o tipo de justiça social e ambiental
que a sociedade pode garantir para todos os
seus integrantes.
Novamente, o problema está no modelo
dominante, mas a possibilidade de
mudança está nas mãos da cidadania ativa.
Ou seja, mais que nos desiludir pelo que
fazem nossos representantes e os responsáveis
pelas formulação e gestão das políticas,
precisamos exercer nossa capacidade de constituintes
do poder político e dos governos.
Digamos, em alto e bom som, o que quere-mos
e o que pensamos que o mundo precisa
e espera que façamos.
A mídia pode ser contra, sem dúvida,
mas não ao longo do tempo. Sempre, na
história, são mobilizações vindas do seio da
sociedade em ação que levam a mudanças.
Diante das poderosas empresas, de suas estruturas
que a tudo parecem dominar, precisamos
inventar modos cidadãos de controle
social e público que as constranjam,
inibam e obriguem a mudar de estratégias e
práticas. Afinal, empresa nenhuma resiste a
um boicote cidadão. Elas precisam reassumir
seu papel de organizações de produção de
bens e serviços, não para elas, mas para a
felicidade cidadã.
Está evidente neste percurso que faço
o esforço de libertação. Sim, libertação de
dogmas, de ideais e valores, de estruturas
de pensar e agir. Ciente de minha responsa-bilidade
como diretor geral do Ibase, quero
instigar, motivar, desencadear um poderoso
movimento de mudança interna que nos
leve a ousadas propostas e novas práticas.
O Ibase precisa ser participante ativo na cons-trução
de uma nova agenda, dentro e fora do
Brasil, agenda da cidadania por um mundo
justo e diverso, com justiça social e ambiental.
Radicalmente comprometidos com a democracia
como estratégia de mudança social,
devemos tomar o desafio de uma nova agenda
para o Brasil e o mundo como a agenda
da própria cidadania.
A questão do aquecimento global e da
mudança climática e, junto com ela, a problematização
do desenvolvimento, exige de nós
uma reflexão e uma prática capazes de fazer
emergir na sociedade uma nova visão sobre as
bases que precisamos construir para atender
às nossas necessidades e ao que a cidadania
planetária espera de nós. Por pequena que seja
nossa contribuição, como sempre digo, não
podemos esquecer que, em nossa pequenez
de pulga que pica e incomoda, podemos fazer
diferença no modo de andar do elefante político
e econômico, o Estado e a economia.
Comecemos imaginando o que e como, um
ato libertário nele mesmo.
* Cândido
Grzybowski
Sociólogo, diretor
do Ibase
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