segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Temos ou não Futuro? José A. Lutzenberger

TEMOS OU NÃO FUTURO?
José A. Lutzenberger
Novembro de 1996
O Livro da Profecia Brasil XXI e Mais

Gosto de imaginar que, após a minha morte, de vez em quando eu possa voltar, como observador apenas, aos lugares onde vivi. A primeira vez seria por volta do ano 2050. Depois, cem anos mais tarde, duzentos, quinhentos. Mais adiante cada mil, dois mil, dez mil, cinqüenta mil, cem mil, meio milhão, um milhão. Enfim, a cada cinqüenta ou cem milhões de anos, até o fim da evolução de nosso sistema solar, daqui a uns 5 bilhões de anos, com certa flexibilidade nos períodos para poder observar os momentos de grande crise na história da Vida, como a que estamos vivendo.

Isto porque, desde muito jovem, como naturalista que sempre fui, quando observo o mundo vivo, a geologia, o firmamento, quando me debruço sobre livros de astronomia, de cosmologia, a escala de tempo em que gosto de raciocinar é a escala de tempo que rege este maravilhoso processo criativo que caracteriza nosso planeta e o distingue dos demais que conhecemos - o grandioso, o indescritivelmente belo, complexo e vasto panorama da Sinfonia da Evolução Orgânica.

Mas então, por que não começar com a primeira visita daqui a um milhão ou vários milhões de anos? Acontece que, apesar de naturalista, ou exatamente por isso, nunca perdi a fé em nossa espécie. Ela também é fruto deste maravilhoso processo, que não pode ser suicida. Somos ainda muito novos, apenas uns dois milhões de anos, e não temos as limitações que tinham os grandes sáurios. Podemos aprender. Depois que eles se foram, uns oitenta milhões de anos faz, apareceu na orquestra um novo instrumento, a coisa mais sofisticada, mais poderosa que a Vida já produziu - o cérebro humano. Suas potencialidades são praticamente ilimitadas. Ele poderia ser um enriquecimento fantástico, mas hoje perdeu o devido tom, ameaça desintegrar a sinfonia.

É por acreditar nas possibilidades positivas deste instrumento que gostaria de começar em escala de tempo humana, que é a de dezenas, centenas e milhares de anos. Se conseguirmos sobreviver mais mil milênios, um milhão de anos, já seremos outra espécie.

Até o ano 2050, ou seja, durante a vida de crianças e jovens de hoje, terão acontecido inversões fundamentais e irreversíveis nas tendências atuais. Ninguém é e ninguém pode ser profeta, mas uma coisa é certa: o estilo de vida consumista, esta última excrescência da religião fanática, a cultura industrialista global, que já conseguiu o que o Cristianismo, Islamismo e Comunismo não conseguiram, conquistar a Humanidade toda, este estilo de vida não pode ser extrapolado por mais meio século. Até lá, ou aprendemos a nos enquadrar nas leis da Vida, ou ela nos punirá severamente.

Sou daqueles que se vêem obrigados a viajar quase constantemente, por terra e por ar. No avião, sempre cuido em obter bom lugar de janela. Observo atentamente a geologia, os ecossistemas e biomas, a "civilização". Com meus setenta anos de idade, tenho uns sessenta de observação intensiva, refletida. Ultimamente, no Brasil, quando comparo o que hoje vejo com o que via anos e décadas atrás, me assusto. Fico pensando, se os cento e cinqüenta milhões de brasileiros fazem e continuam fazendo os estragos que agora se constatam, como será daqui a trinta ou quarenta anos quando formos trezentos milhões? Mas o Brasil não é exceção. Nos cinco continentes, o que chamamos "progresso" ou "desenvolvimento" tornou-se um processo cada dia mais eficiente de demolição de todos os sistemas de suporte de vida e de desestruturação social.

Uns vinte por cento da Humanidade, a maioria nos países do chamado Primeiro Mundo e uma minoria nos demais, depende de uma movimentação cada vez mais acelerada de recursos finitos e praticam rapina cada vez mais brutal nos sistemas renováveis, a ponto de torná-los finitos também. As florestas tropicais úmidas na Ásia Sudoriental, nas Filipinas, Indonésia, Nova Guiné, Austrália, na África, estão chegando ao fim. Nas florestas temperadas úmidas na costa norte do Pacífico, na América do Norte, avança rápido o corte raso sobre os últimos cinco por cento de mata prístina. Na costa sul do Chile e na Terra do Fogo inicia-se agora processo semelhante, porém mais vandálico ainda. As florestas boreais na Sibéria e no Alasca também já estão sendo atacadas ferozmente. Todos os demais grandes sistemas naturais, Cerrado, Savana, Agreste, Mata Atlântica, Restinga, Pampa, Pradaria, Estepe, Caatinga, todas as florestas subtropicais, os banhados e pantanais, quando já não estão seriamente devastados, estão agora sob séria ameaça. Demolimos montanhas, barramos rios, inundamos imensos vales, afogando florestas virgens ou preciosos solos agrícolas. A pesca insaciável, agora com equipamentos eletrônicos cada vez mais eficientes, que não deixam escapar um peixe sequer num enorme cardume, está depauperando os oceanos. A poluição contamina terra, mar e ar. Já somos mais de 5,7 bilhões, e a cada ano se acrescentam mais de cem milhões. Mas, a cada ano também, milhões de hectares de terras antes férteis são degradados pelos métodos imediatistas da agricultura moderna ou pela primitiva agricultura de rapina - erosão, perda de húmus, contaminação química, destruição da microvida; desertificação acelerada, esgotamento dos aqüíferos fósseis que não têm reposição.

Socialmente, o desastre não é menor. Todas as estruturas sociais que cresceram e se organizaram historicamente, que eram estáveis, que davam às pessoas identidade, segurança e sentimento de aconchego, de significado e calor humano, quer se trate de culturas camponesas, de artesãos em estrutura familiar, pescadores artesanais, ou dos últimos habitantes das últimas selvas, isto é, dos povos aborígines e indígenas, de seringueiros e caboclos, quilombos, ou dos últimos nômades no Kalahari ou no Ártico, todos estão sendo desmoralizados, alienados, marginalizados. Para compreender o que está acontecendo, basta observar de perto a Cidade do México com seus mais de vinte milhões de habitantes ou a proliferação de favelas em todas as partes do Mundo.

Dos quase seis bilhões que somos, uns três bilhões ainda vivem em ambiente rural, com estruturas sociais mais ou menos estáveis. Se mais um bilhão tiver que juntar-se às massas de deserdados que já incham todas as pequenas, médias e grandes cidades no Terceiro Mundo e nas gigantescas conurbações já quase incontroláveis, se isto acontecer, e é quase inevitável que aconteça, ninguém mais poderá prever e conter as convulsões, migrações, conflitos e guerras que virão. O levante dos índios camponeses de Chiapas, no México, é um pequeno começo e augúrio. Mas o neoliberalismo e, agora, a globalização da economia, vão acelerar ainda mais o processo em marcha.

Dividimos o Mundo em países ricos e pobres. Poucos se dão conta de que os pobres não eram pobres. Sua atual miséria é conseqüência do que chamamos desenvolvimento.

Nas classes abastadas da cultura industrial, as pessoas estão eticamente cada vez mais desorientadas. Cresce a insegurança, a criminalidade, o desespero e a alienação, aumenta a corrupção e a incapacidade dos governos em arcar com os problemas. Além de contribuir para maior devastação e miséria no Terceiro Mundo, a globalização, assim como está hoje concebida, aumentará e já está aumentando o desemprego no Primeiro Mundo, pois um de seus alvos expressos é demolir conquistas sociais pela exportação de empregos.

Não obstante a clara visibilidade das graves conseqüências das políticas econômicas atuais, a doutrina predominante, imposta pelas transnacionais e cegamente obedecida pela grande maioria dos governos, pretende estender até o mais remoto rincão o industrialismo e consumismo desenfreados.

A economia global é hoje um processo exponencial. Ele tem retroação positiva. Pregar que necessitamos de mais crescimento para obtermos os meios de que necessitamos para reparar os estragos causados pelo desenvolvimento passado é como pedir mais neve e mais encosta para a bola de neve que já está se transformando em avalanche. Vejamos uma metáfora que ilustra nossa situação:

Uma colônia de pulgões sobre um tomateiro, crescendo exponencialmente, vai duplicando em números - dez, vinte, quarenta... mil, dois mil, quatro mil... Inicialmente, desde o ponto de vista do pulgão, uma situação muito linda. Mas, invariavelmente, chega o momento em que a planta não agüenta mais, morre. É o fim, também, do pulgão. Nossa situação é pior, crescemos em números e aumentamos de maneira mais rápida ainda nosso impacto ambiental. É como se o pulgão, além de se tornar cada vez mais numeroso, ficasse também sempre mais gordo, com apetite cada vez mais voraz.

Se não houver mudança de rumo, de enfoques, de cosmovisão, o colapso está programado. Temos que repensar. Teremos muita sorte se vier uma sucessão de colapsos parciais, menores, não um só grande. Este poderia significar o fim da Civilização. Colapsos menores permitirão ainda a tomada de novas decisões fundamentais.

Vejamos os possíveis colapsos:

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Finanças - Somas fabulosas, da ordem de trilhões de dólares por dia, circulam com a velocidade da luz, saltando de mercado a mercado em volta do globo. Um dinheiro ultra-especulativo que já praticamente não tem mais ligação com fatores concretos. Em grande parte se trata dos chamados "derivativos", que são apostas sobre apostas sobre apostas, uma especulação abstrata, totalmente absurda. Os governos não têm o mínimo controle. A lógica é comandada pelos algoritmos nos computadores. Os próprios operadores podem, a qualquer momento, perder o controle. Entre eles predominam indivíduos ambiciosos, inescrupulosos. Quando vier o colapso, estará desencadeada uma crise econômica mais grave e, certamente, mais duradoura que a de 1929. Bilhões de pessoas perderão suas economias ou seu poder aquisitivo.
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Energia - Quanto mais tempo for mantido artificialmente baixo o preço do petróleo, mais violenta será a próxima crise, quando o petróleo começar a escassear de verdade. O mundo não está se preparando para esta crise. A pesquisa, o desenvolvimento e aplicação das alternativas solares indefinidamente sustentáveis avançam a passo de lesma, enquanto aumenta célere o consumo de petróleo. No Brasil, continuamos apostando na rodovia para a quase totalidade de nosso transporte. O que acontecerá numa megalópole como São Paulo, quando o petróleo triplicar ou quintuplicar de preço? Na indústria, as tecnologias continuam esbanjando energia. Uma só lata de alumínio para cerveja ou refrigerantes, em sua fabricação consome mil e quatrocentos Watt/hora, a quantidade de energia elétrica que uma lâmpada de cem Watt consome em quatorze horas. Isto, sem falar na demolição de montanhas em Carajás, perda de quase cem mil hectares de floresta ao longo da ferrovia, inundação de três mil quilômetros quadrados de floresta intata em Tucuruí.
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Agricultura - Os métodos da agricultura moderna vivem às custas da produtividade futura, seus insumos são todos recursos não renováveis e os renováveis estão sendo consumidos em vez de desfrutados. A produção de carne e ovos em esquema de confinamento, com alimentação subtraída do consumo humano, contribui para o problema da fome. Galinhas, porcos e até gado, são hoje alimentados com grãos cultivados especialmente para este fim ou com tapioca ou torta de palma importados da Ásia e África. No Rio Grande do Sul destruímos toda a floresta subtropical úmida do Vale do Uruguai para exportar soja para alimentar vacas e porcos na Europa. Se, na Índia, houve quebra-quebra de estabelecimentos tipo McDonald's, é por isso. Se somente os chineses partirem para o tipo de produção de carne que predomina no Primeiro Mundo, teremos logo uma tremenda crise no abastecimento e preço dos cereais.
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Epidemias - Até recentemente, pensávamos que já existia um controle total das enfermidades infecciosas, que sobrariam somente as degenerativas. Mas, junto com estas, está havendo agora nova proliferação das doenças infecciosas, e nunca estivemos tão suscetíveis a elas como hoje. Os agentes patógenos viajam livremente com milhões de pessoas em aviões atravessando continentes e oceanos. Se o vírus da AIDS fosse menos complicado em sua transmissão, se fosse como o vírus da gripe....! Por outro lado, estamos todos, ricos e pobres, mal alimentados. Uns comem demais e comem alimento desnaturado, mal equilibrado, contaminado com resíduos de agrotóxicos e com aditivos, os outros comem de menos ou morrem de fome. Isso tudo, mais a contaminação geral do ambiente em que vivemos e a falta de paz de espírito - quem não sofre hoje de stress, frustação, desespero? - afeta o sistema imunológico. As epidemias vão voltar. Talvez não da maneira como eram as grandes epidemias no passado, que matavam milhões de pessoas de vez, mas na forma de uma degradação crescente da saúde pública. Por outro lado, o custo da medicina, com seus enfoques tecnológicos, já está se tornando tão caro que os sistemas de seguro de saúde se aproximam todos da insolvência.
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Clima - A moderna sociedade industrial está interferindo em todos os mecanismos de controle do clima: gás carbônico, camada de ozônio, aerossóis, poeiras e fumaças, albedo, florestas e demais biomas. Apesar das solenes promessas na Eco '92 no Rio de Janeiro, os governos não estão partindo para ação séria, concreta. A China, com sua população de 1,2 bilhões de pessoas, pretende ainda instalar uma fantástica capacidade de fornalhas para geração de energia elétrica. Os capitães da indústria automobilística agem como se acreditassem que seria possível dar à Humanidade inteira a densidade de carros particulares que existe nos Estados Unidos (dois ou mais por família), isto, com carros produzidos de acordo com a filosofia da obsolescência planejada, com absurdo esbanjamento de recursos não renováveis.
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Convulsões Sociais - Como vimos, as crescentes complicações e calamidades desencadearão conflitos, levantes, migrações em massa, guerras que, por sua vez, só poderão aumentar a devastação. Possíveis desequilíbrios climáticos poderão ter como conseqüência que não mais tenhamos colheitas seguras, o que agravará ainda mais as convulsões.

Possivelmente teremos, também, alguns ou muitos colapsos ainda imprevisíveis, maiores ou menores.

Até aqui, a ênfase está na situação global. Vejamos agora a situação do Brasil. Diante deste quadro, se não houver catástrofe climática planetária, o Brasil é, ainda, um espaço privilegiado. Sobra muito para preservar e recuperar, temos ainda mais tempo que os demais para aprender. Se, acima, ao mencionar as florestas tropicais úmidas, não mencionamos a Amazônia, foi para mencioná-la aqui em contexto esperançoso. Com toda a absurda devastação que já houve, sobram ainda mais de 80%. No coração da grande floresta, a maior do Planeta, no Estado de Amazonas, são mais de 95%.

Assim como os oceanos, a atmosfera, os rios e lagos, a Amazônia está entre os grandes sistemas essenciais para a bio-geo-fisiologia do Planeta Vivo - Gaia. O argumento de que "os outros derrubaram, deixem-nos fazer o mesmo" não procede. Vejamos outra metáfora: eu posso sobreviver - miseravelmente, é claro - com a perda de um, vários ou todos os membros, sem audição ou visão, mas não posso sobreviver a perda do coração, dos rins, do pulmão... No organismo de Gaia, a Amazônia, especialmente depois da devastação já quase total das demais florestas tropicais úmidas, é imprescindível.

Portanto, que slogan absurdo: "ocupar para não entregar"! Acaso não temos a Amazônia mais do que ocupada? Ou queremos vê-la na situação de Bangladesh que já foi floresta tropical úmida?

Agora, novembro de 1996, nosso governo federal pretende punir com elevada carga tributária as "terras improdutivas". Quanto ecossistema intato, até então nem sequer ameaçado, foi destruído no passado recente devido a enfoques assim reducionistas do INCRA. Na Amazônia, um dos instrumentos dos grileiros de terras para justificar posse é a derrubada de floresta, sem nenhum sentido produtivo ou social. Para o INCRA este tipo de devastação é "benfeitoria". Como pode um país que se diz sério permitir tamanho absurdo?

Este tipo de visão terá que mudar. Hoje, preservar natureza intocada deve ser visto como altamente produtivo em termos de sobrevivência da nação e de nossa espécie. Se ainda não nos encontramos em situação de pressão demográfica como a da China ou da Índia, ou de falta de espaço como na Holanda, que já tem 20% de seu território nacional coberto de construções ou de pavimentos, longe de constituir-se em sinal de subdesenvolvimento e atraso, a nossa é uma situação altamente vantajosa e desejável.

Assisti certa vez, não faz muito tempo, um governante nosso entonar a costumeira litania terceiro-mundista diante do Primeiro Ministro da Áustria: "É, porque nos somos um país pobre, necessitamos da ajuda dos países ricos, como vocês". Tive que discordar. Disse, "Nós somos ricos, muito ricos, fantasticamente ricos. Com oito e meio milhões de quilômetros quadrados, temos cem vezes mais território que a Áustria, que tem oitenta e quatro mil, metade montanhas cobertas de gelo. Temos recursos de toda sorte, minerais, solos agrícolas, enormes florestas, cerrados, restingas, praias intatas, espaço, muito espaço... Somos pobres, muito pobres, isto sim, em políticos de visão".

Sim, somos muito, muito ricos. Vamos aprender a desfrutar - não consumir - de maneira eficiente e sustentável o que já está desbravado. Não precisamos destruir um hectare mais de selva intata. Só na Amazônia, temos mais de quatrocentos mil quilômetros quadrados de terra deflorestada, uma área total do tamanho da Espanha, quase toda mal aproveitada, degradada ou mesmo abandonada. Em parte esta superfície se está recuperando naturalmente, em parte continuamos a degradá-la ainda mais. No resto do país a soma de áreas deste tipo é ainda maior, somam muitas dezenas de milhões de hectares. Alí sim, nos espera muito trabalho, trabalho significativo, entusiasmante para jovens e velhos idealistas.

Precisamos repensar "progresso", "desenvolvimento"!

A atual medida de progresso, o PNB ou PIB (Produto Nacional Bruto ou Produto Interno Bruto), em termos de real progresso, no sentido de mais satisfação, mais alegria de vida, mais felicidade, segurança, satisfação para maior proporção da população, num mundo humanamente mais significativo, mais sustentável, não mede absolutamente nada. Ele só mede fluxo de dinheiro, sem nada dizer sobre o que este fluxo causa de bom ou de mau. Nada nos diz sobre a real, a concreta riqueza nacional. Absolutamente nada nos diz sobre justiça social. O PNB per capita, usado para comparar progresso entre países, é apenas uma média entre o que ganham os podres de rico e os que não tem o suficiente para se alimentar. O PNB só pode interessar a banqueiros com visão ultra-reducionista, desligada do mundo real.

Voltemos a Carajás: adicionar ao PNB brasileiro as divisas que ganhamos na exportação de alumínio e minério de ferro, sem descontar num balanço nacional a demolição da montanha, a perda da floresta, a perda do meio de vida do caboclo e do índio, etc., etc.... é como se, após visitar a agência de meu banco, retirar dinheiro de minha conta e gastá-lo, me sentisse mais rico. De fato, estou mais pobre, a conta está menor.

Primeiro passo essencial, portanto, para um progresso real é o de obrigar nossos administradores públicos a nos apresentar balanços reais, do tipo que faz o administrador de empresa para seus acionistas. Balanços em que se somam, de um lado, todas as entradas, sim, mas do outro se descontam todas as saídas, perdas, depreciações.

Neste tipo de balanço, o estoque de riqueza nacional - da real, da concreta, objetiva riqueza nacional - não terá que ser necessariamente contabilizado em termos monetários, mas em termos de hectares de solos agrícolas férteis ou degradados, capazes de recuperação ou não (a que custo?), de quilômetros quadrados de florestas, intatas, parcial ou totalmente devastadas, em recuperação natural ou em reflorestamento, etc. Terão que aparecer as toneladas de minérios ainda existentes, os barris de petróleo ainda disponíveis, e assim por diante. Terão que entrar, também, critérios qualitativos, como exploração irrecuperável ou reciclabilidade, fatores subjetivos, como beleza de paisagem, pureza das águas e do ar, contentamento, saúde, expectativa de vida, segurança, emprego, qualidade de vida em termos de cultura, recreação, moradia e muita coisa mais.

Se este tipo de balanço fosse feito na situação atual, todos verificariam que, a cada dia, estamos empobrecendo, não enriquecendo e progredindo, como nos querem fazer crer nossos governos. Uma real democracia só será possível com este tipo de conta.

Precisamos repensar também a tecnologia. Poucos, especialmente entre os políticos, se dão conta de que predominam hoje aquelas tecnologias que concentram poder nas grandes infra-estruturas tecno-burocrático-legislativas, não tecnologias concebidas simplesmente para atender reais necessidades humanas, da maneira mais simples, mais barata, mais acessível, ecologicamente mais compatível e socialmente mais desejável.

Daí que teremos que repensar - energia, transporte, agricultura, moradia, processos de produção e comportamento de consumo e, antes de mais nada, o sistema de educação - da família ao jardim de infância, primário, secundário, universitário e pós-graduação. Hoje, este esquema está a serviço dos poderes estabelecidos e a maior parte deste esquema cabe aos meios de comunicação, especialmente à TV, que está fazendo o que previa Aldous Huxley em seu livro "Admirável Mundo Novo" (Brave New World), onde os poderosos dominam pela desinformação, boçalização e incitamento a um estilo de vida hedonístico-orgiástico. Mas a TV, a Internet e todo este fantástico aparato de comunicação global instantânea, poderiam também ser usados para uma educação real, para uma reformulação de nossa cosmovisão e comportamento.

Um instrumento fantástico, bem mais fácil de implementar imediatamente, seria um imposto único, cobrado na fonte, só sobre a energia e o uso de matérias primas. Ele promoveria logo tecnologias bem mais inteligentes, como, entre muitas outras coisas que aqui não cabe detalhar, uma economia solar: solar direto térmico, solar direto fotovoltaico; biomassa em combustão direta, em pirólise ou biogás; vento, hidráulico - tudo em esquema totalmente descentralizado. Para nós, este potencial é tão fantástico que não precisamos pensar em tecnologias mais complicadas e caras, como marés e vagas. Promoveria também o uso racional, frugal e reciclado de matérias primas finitas, simplificaria radicalmente a administração pública, promoveria emprego, não capital, seria, portanto, socialmente bem mais justo que o atual sistema que, em termos de justiça social é uma grande mentira. Ele promoveria um comportamento bem mais sábio que o que predomina hoje.

Estes primeiros passos levariam automaticamente a um início de nova consciência e reorientação de nossa cultura industrial, que deixaria de ser suicida.

Quero dedicar os anos que me sobram a este trabalho fundamental. Como gostaria de ver o Brasil, este precioso pedaço de Gaia em que tive a sorte de nascer, transformar-se no berço deste renascimento cultural de nossa espécie e da recuperação do Grande Processo Criativo. Como seriam exaltantes as observações em minhas imaginárias visitas futuras!



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