segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Entrevista com Lia Diskin - Revista Vida Simples

Entrevista Vida Simples
Novembro de 2003
Lia Diskin
1- Na sua opinião qual é a maior dificuldade para o estabelecimento de uma cultura de
não-violência na sociedade atual?
A maior dificuldade está em vencer as resistências que gera qualquer proposta de mudança.
Nossa vida anímica - em qualquer tempo e cultura - está apoiada em hábitos mentais e de
comportamento que se orientam na direção de valores apresentados como relevantes e
significativos por determinada sociedade. No nosso caso herdamos valores que apontam na
direção da notoriedade, reconhecimento, visibilidade, consumo, poder. Os mecanismos mais
imediatos para atingir essas metas são a competição, a sedução, o individualismo e todos eles
geram algum tipo de violência, seja física ou simbólica.
2 - Como podemos explicar o avanço da violência em família (até ao extremo do homicídio)
e que recursos práticos poderemos utilizar para evitar o acirramento de conflitos entre
cônjuges, pais e filhos, irmãos? Como orientar as crianças para a cultura de paz? Se
puder citar algum exemplo concreto ou história que ajude a fixar o ensinamento e a
estimular o leitor à sua prática, seria ótimo.
Nas últimas décadas temos investido grandes esforços em consolidar direitos, o que foi um
imenso avanço. Entretanto, temos descuidado da contrapartida: as responsabilidades. Toda
convivência implica em um pacto que livremente estabelecem as partes para se beneficiar do
afeto, conhecimento, diversão, segurança e possibilidades de futuro.
Esse pacto, na maiora das vezes tácito, é constituído de co-responsabilidades que, quando não
se cumprem, inviabilizam a convivência.
Para evitar o acirramento de conflitos entre cônjuges, pais e filhos, irmãos, podemos propor a
via do diálogo e da negociação. Há um provérbio africano que diz que "a palavra é o mais eficaz
dos atos humanos". É através dela que tomamos conhecimento daquilo que se passa na mente e
no coração de outra pessoa. Se cultivarmos o recurso do diálogo poderemos dispor no seio da
família de um espaço comum, onde todos podem se encontrar, não sendo necessário concordar
ou aceitar, mas onde é possível ter interlocutores que se respeitem mutuamente, motivados
pela busca do bem comum.
Quanto a como orientar as crianças para a Cultura de Paz, é óbvio que será através do exemplo,
as palavras não têm grande significado para os mais jovens - são os gestos, as atitudes, os
modos de fazer e dizer que os atinge diretamente. O neto de Mahatma Gandhi, Dr. Arun
Gandhi, relatou um episódio de sua vida juvenil durante uma palestra que ministrou na
Universidade de Porto Rico e que ilustra bem esta questão. Ele conta:
"Eu tinha 16 anos e estava vivendo com meus pais no instituto que meu avô havia fundado na
África do Sul, em meio a plantações de cana de açucar. Estávamos bem no interior do país e não tínhamos vizinhos. Assim, sempre nos entusiasmava, às minhas duas irmãs e a mim, poder ir
à cidade visitar amigos ou ir ao cinema.
Certo dia, meu pai pediu-me que o levasse à cidade para assistir a uma conferência que duraria
o dia inteiro, e eu me apressei de imediato diante da oportunidade.
Como iria à cidade, minha mãe deu-me uma lista de coisas para comprar no supermercado, e
como iria passar todo o dia lá, meu pai solicitou que me encarregasse de algumas tarefas
pendentes, como levar o carro à oficina.
Quando me despedi de meu pai, ele disse: "Nos veremos neste local às 5 horas da tarde e
retornaremos para casa juntos".
Após completar todas as tarefas, fui ao cinema mais próximo. Estava tão concentrado no filme,
um filme duplo de John Wayne, que me esqueci do tempo. Eram 5h30 da tarde quando me
lembrei.
Corri à oficina, peguei o carro e disparei até onde meu pai estava me esperando. Já eram quase
6 horas da tarde.
Ele me perguntou com ansiedade "Por que chegaste tarde?" Eu me sentia mal com o fato, e não
lhe podia dizer que estava assistindo a um filme de John Wayne. Então, lhe expliquei que o
carro não estava pronto e que tive que esperar...isto eu disse sem saber que meu pai já havia
ligado para a oficina.
Quando se deu conta de que eu havia mentido, disse-me:"Algo não anda bem na maneira pela
qual te tenho educado, já que não te proporcionou confiança suficiente para me dizer a
verdade. Vou refletir sobre o que fiz de errado contigo. Vou caminhar as 18 milhas até nossa
casa e pensar a respeito".
Então, vestido com seu traje e sapatos elegantes, começou a andar por caminhos que nem
estavam asfaltados nem iluminados. Não podia deixá-lo só. Assim, dirigi por 5 horas e meia
atrás dele...vendo meu pai sofrer a agonia de uma mentira estúpida que eu havia dito. Decidi,
desde aquele momento, que nunca mais iria mentir.
Muitas vezes me recordo desse episódio e penso...Se ele me tivesse castigado do modo que
castigamos nossos filhos...teria eu aprendido a lição?... Não acredito... Se tivesse sofrido o
castigo, continuaria fazendo o mesmo... Mas, tal ação de não violência foi tão forte que a tenho
impressa na memória como se fosse ontem...
Esse é o poder da não-violência".
3 - Você acha que é possível conciliar a competitividade - a palavra de ordem da vida
moderna - com o compromisso de ahimsa? Como? Se isso não é possível, qual a alternativa (a atitude no dia-a-dia) que nos levaria à paz no ambiente de trabalho?
Dispõe de algum exemplo?
Se entendermos competitividade como o instrumento que permite o sucesso a custo do
fracasso de um outro, temos que dizer que é impossível uma tal conciliação. Ahimsa é o
compromisso de não causar dano físico, moral, psicológico ou de qualquer espécie de modo
proposital e deliberado. É importante, contudo, distinguir competição de competência. Esta
última dá qualidade aos nossos afazeres, permite expressar o nosso melhor naquilo que
estamos envolvidos, seja uma função, um relacionamento, uma criação ou mesmo no processo de
auto-conhecimento.
E acredito que aqui esteja a alternativa que gera paz no ambiente de trabalho. Entender que
qualquer coisa que faça revela, põe à mostra aquilo que sou, minha história e a das minhas
referências, escolhas e possibilidades. Um exemplo de como as habilidades ou capacidades
pessoais podem contribuir para gerar sinergia - sucesso para todos - é um conto
aparentemente infantil da tradição jainista, que aqui recrio sinteticamente:
Duas crianças, uma cega e a outra perneta, estão brincando numa floresta. Elas não se
conhecem, e estão distantes entre si. Inesperadamente, o fogo começa a tomar conta da mata.
A fumaça espalha a notícia – aves, insetos, animais saem em disparada. As crianças, entretanto,
não se mexem, medo e incerteza as dominam. Gritam por socorro, e pelos gritos, se encontram.
Querem fugir do fogo, mas como? Suas falas, entrecortadas por soluços, tecem e desmancham
planos. De pronto, numa sinergia que as abraça, o menino perneta pula sobre os ombros da
criança cega, e esta lhe pede que oriente seus passos. Graças à altura proporcionada pelo corpo
do colega, o perneta consegue ver as clareiras através da fumaça, e saem triunfantes da
floresta.
4.1 – O aumento nas estatísticas de dependência química e suicídio, por exemplo,
sugerem que o homem concentra muita violência contra si mesmo. Na sua opinião, por que
isso acontece?
Dependência química, depressão crônica, suicídio são todas vias de “saída” para uma situação
que se tornou insustentável, aparentes portas de fuga quando se tem um muro intransponível
pela frente e não conseguimos vislumbrar nenhum futuro possível. Não há pessoas de
referência, nem a quem recorrer em busca de reconhecimento e aceitação. Grande parte
destes sentimentos são fruto de uma cultura utilitária na qual os próprios indivíduos tornam-se
objetos de uso que, quando perderam sua validade, são descartados e substituídos por outros
mais interessantes e cheios de novidades.
4.2 – O que podemos fazer para cultivar ahimsa conosco? Há algum caso exemplar que
mereça ser citado?
Primeiramente, compreender que é impossível satisfazer todas as expectativas que as pessoas
com as quais convivemos têm a nosso respeito. Querer agradar a todo mundo é uma proposta
fadada ao fracasso e, às vezes, à auto-mutiliação. Segundo, aceitar que somos criaturas inacabadas, pertencentes a uma espécie com possibilidades infinitas que ainda não se
atualizaram, e que o caminho de humanização está sendo construído dia-a-dia com o aporte que
vai dando cada indivíduo geração após geração. Isto atenua o despotismo do perfeccionismo e,
igualmente, nos afasta da auto-indulgência.
5 – Qual o papel das crenças (num mundo cada vez mais cético) para o estabelecimento
da cultura de não-violência? No passado, pelo menos as religiões institucionalizadas
muitas vezes funcionaram como catalisadoras da violência.
Hoje é necessário distinguir espiritualidade de religiosidade. De fato, no passado as religiões
institucionalizadas muitas vezes funcionaram como catalisadoras da violência, entretanto,
muitas delas conseguiram esse objetivo através da ameaça, da geração de medo e de violências
estruturais na dinâmica da própria sociedade. Um exemplo disso são os preconceitos, as
intolerâncias e discriminações para com tudo o que não se enquadrasse nas suas doutrinas, ou
que estivesse sob a proteção de um deus ou potestade diferente da preconizada.
Uma coisa é gerar consciência e promover o exercício da liberdade de escolha responsável
pelas conseqüências que advirão, outra é impor um modelo de comportamento prometendo
recompensas extraordinárias que, se não forem possíveis desfrutar aqui na terra, com absoluta
certeza serão usufruídas no além. Neste caso você confisca, seqüestra o que de mais nobre
tem a condição humana – seu livre arbítrio.

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