ENTREVISTA COM PAOLA MARRATI
Para a filósofa italiana Paola Marrati, “ainda mais importante para nossos debates é a idéia-mestre
de Bergson de que não há vão, deixadas de lado quaisquer oposições, entre vida e conceitos, entre
processos biológicos e processos congnitivos”. A declaração pode ser conferida na íntegra na entrevista
a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Desde janeiro de 2003, Marrati é professora no Centro de Humanidades do Departamento de Filosofia
na Universidade John Hopkins, em Baltimore, Estados Unidos. Imediatamente antes desse período,
lecionava Filosofia da Arte e Cultura no Departamento de Filosofia da Universidade de Amsterdã. Na
John Hopkins dirige o programa para o estudo da mulher, gênero e sexualidade, e é membro do
Advisory Board of the Film and Media Studies Program. É, também, diretora do programa de pesquisa
do Colégio Internacional de Filosofia, de Paris.
É mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea, pela Università degli Studi di Pisa, Itália. Recebeu
seu diploma d'Etudes Approfrondies na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris, e
seu PhD em Filosofia na Universidade Marc Bloch, em Estrassburgo, França. Escreveu, entre outras
obras, Gilles Deleuze. Cinéma et philosophie (Presses Universitaires de France, 2003) e Genesis and trace.
Derrida reader of Husserl and Heidegger (Stanford: Stanford University Press, 2005). Está prestes a ser
publicado o livro The event and the ordinary: on the philosophy of Gilles Deleuze and Stanley Cavell.
SÃO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIÇÃO 237
IHU On-Line - Qual é a atualidade da obra A evolução
criadora, 100 anos após seu lançamento?
Paola Marrati – Em A evolução criadora, como em
seus outros trabalhos, Henri Bergson (1859-1941) engaja-se
em uma séria e bem informada discussão sobre teorias
científicas e descobertas de seu tempo e,
particularmente, seu conhecimento de diferentes
desenvolvimentos na teoria evolucionista depois de
Darwin 16 . Não é necessário dizer que, um século mais
tarde, as idéias de Darwin sobre evolução foram
desenvolvidas e refinadas; particularmente, a descoberta
do DNA e mecanismos genéticos de evolução modificaram
profundamente nosso entendimento dos processos
evolutivos. Apesar disso, os principais insights de Darwin
não foram desafiados e em consideração a isso muita da
análise filosófica de Bergson é pertinente ainda hoje.
Ainda mais importante para nossos debates, na minha
opinião, é a idéia-mestre de Bergson de que não há
vazio, deixadas de lado quaisquer oposições, entre vida e
conceitos, entre processos biológicos e processos
cognitivos. Contrário a uma longa tradição que opõe os
misteriosos e irracionais poderes da “vida” à razão e
conceitualidade, Bergson lembra-nos que todas as nossas
práticas cognitivas, não importa o quão abstratas,
originam-se na “vida”, e essa “vida”, o que quer que
seja ou signifique, é, em primeiro lugar e em todas as
16 Charles Robert Darwin (1809-1882): Naturalista britânico,
propositor da Teoria da Seleção natural e da base da Teoria da
Evolução no livro A origem das espécies. Teve suas principais idéias
em uma visita ao arquipélago de Galápagos, quando percebeu que
pássaros da mesma espécie possuíam características morfológicas
diferentes, o que estava relacionado com o ambiente em que viviam.
Em 30 de novembro de 2005, a Prof.ª Dr.ª Anna Carolina Krebs Pereira
Regner apresentou a obra Sobre a origem das espécies através da
seleção natural ou a preservação de raças favorecidas na luta pela
vida, de Charles Darwin, no evento Abrindo o Livro, do Instituto
Humanitas Unisinos. A respeito do assunto ela concedeu entrevista à
IHU On-Line 166, de 28 de novembro de 2005. (Nota da IHU On-Line)
suas instâncias, e não apenas em sua forma humana, uma
capacidade para ajustes e resolução de problemas.
IHU On-Line - Como o conceito de “elã vital” pode
nos ajudar a compreender a crescente complexidade
do mundo contemporâneo?
Paola Marrati – O conceito de “elã vital” [impulso
vital] é definido por Bergson como uma tendência para a
mudança e diferenciação. As formas vitais, para Bergson,
estão constantemente envolvidas de novos e
imprevisíveis jeitos, conseqüentemente não podendo ser
compreendidas em termos de conjuntos de propriedades
estáveis e fixas. Devemos, pelo contrário, compreender a
tendência específica que define uma forma de vida em
seu processo inacabado de transformação e diferenciá-la
de outras formas de vida.
Bergson não nos dá chaves prontas para interpretar as
complexidades de nosso mundo atual, mas sua convicção
de que a vida não tem essência fixa e que, pelo
contrário, é uma tendência em andamento para a
mudança pode ajudar-nos na tarefa difícil de analisar os
desenvolvimentos contemporâneos na biociência e na
biotecnologia, e avaliar as promessas, e perigos que elas
nos guardam.
IHU On-Line - Em que aspectos Bergson conserva e
supera traços da teoria evolutiva de Darwin?
Paola Marrati – Bergson está totalmente de acordo com
o principal insight da teoria de Darwin, de que a vida é
um processo evolutivo que produz novas e imprevisíveis
formas. Acredito que essa fundamental concordância é
mais significativa que a crítica de Bergson a Darwin e ao
neo-darwinismo em A evolução criadora. E deve-se
observar que essas críticas objetivam destacar a essência
temporal e mutante das formas de vida.
IHU On-Line - Partindo do pressuposto de que aquilo
que nossos sentidos nos fornecem não são a realidade,
mas cópias seletivas desta, podemos perceber aí uma
influência platônica, como aquelas imagens refletidas
no fundo da caverna?
Paola Marrati – De acordo com Bergson, nossa
percepção consciente, assim como nossas ferramentas
cognitivas e linguagem, são pragmaticamente orientadas
para as necessidades de sustentar a vida e não para o
conhecimento puramente desinteressado e vazio.
Exatamente por essa razão, selecionamos e percebemos
do campo todo da realidade o que é útil para nós. Apesar
disso, isso não é dizer que nos agarramos a cópias da
realidade melhor que à própria realidade, sendo isso no
sentido platônico ou não. É o oposto: para Bergson,
estamos em contato com a realidade como tal, mesmo se
percebemos e conceitualizamos apenas seleções dela, e
isso é sempre possível. Essa é a tarefa da filosofia e da
ciência: dar um passo atrás das necessidades presentes
no sentido de aumentar nossa experiência para além dos
limites do que normalmente sabemos e percebemos dela.
IHU On-Line - Ainda nessa linha de raciocínio, qual é
a influência de Kant no pensamento bergsoniano,
tendo em vista que o filósofo de Könnigsberg afirmava
que a coisa em si é incognoscível?
Paola Marrati – O projeto filosófico de Bergson é
fortemente antikantiano. Como eu disse antes, Bergson
vê a razão, como qualquer outra faculdade humana,
como tendo suas raízes nos processos evolutivos da vida.
Como animais viventes, estamos em contato com a
realidade e até mesmo com o absoluto. Como ele escreve
na introdução de A evolução criadora: “A ação não pode
mover-se no irreal. Uma mente nasce para especular ou
para sonhar, admito, deve permanecer fora da realidade,
deve deformar ou transformar o real, talvez até criá-lo –
como criamos figuras de homens e animais que nossa
imaginação recorta das nuvens que passam. Mas um
intelecto que dobra o ato a ser atuado e a reação que se
segue, sentindo seu objeto enquanto capta sua impressão
de movimento a cada instante, é um intelecto que toca
algo do absoluto” (p. 11). Melhor que a busca pelo
estabelecimento de condições a priori e limites do
conhecimento e razão, assumindo que “a coisa como tal”
é eternamente não cognoscível por nós, Bergson chama a
uma tarefa diferente. Ele acredita que uma teoria do
conhecimento é inseparável de uma teoria da vida:
precisamos substituir nossas ferramentas cognitivas no
contexto evolutivo da vida no sentido de
compreendermos como nossos esquemas conceituais
foram formados, como eles evoluíram, e como eles
eventualmente podem ser aumentados, abertos para
além de seus limites atuais. Tal tarefa é, ao mesmo
tempo, mais modesta e mais ambiciosa que a filosofia
transcendental de Kant: mais modesta porque a par de
que nenhuma resposta definitiva pode ser dada à questão
das condições de possibilidade de conhecimento; mais
ambiciosa porque sustenta que, em princípio, não há
limites ao domínio daquilo que pode ser conhecido, que
não estamos condenados a uma forma de conhecimento
que paga suas certezas com o preço de ser um
conhecimento do fenômeno diferente do conhecimento
das coisas.
IHU On-Line - Como essa seleção natural de
informações nos ajuda a compreender a singularidade
e irrepetibilidade das concepções do sujeito moderno?
Paola Marrati – Bergson não pertence à tradição da
filosofia dos sujeitos no modo cartesiano, kantiano ou
husserliano. O sujeito não é o exemplo original e
organizado para o qual tudo aparece, o espectador para
quem o mundo é dado como um objeto de contemplação.
Subjetividade, ou consciência [de algo], se você prefere,
é constituída em um largo campo de experiência por um
processo de seleção. Como Bergson reconhecidamente
escreveu em Matéria e memória (1896), a percepção se
torna consciência pela seleção de todos os campos de
[da] experiência que são relevantes em um dado tempo
para um dado propósito. William James, em seu Ensaios
sobre o empirismo radical (1912), experimenta um
projeto parecido de descrição da formação da
subjetividade em um largo campo de experiência não-subjetiva.
A subjetividade é constituída em um campo de
experiência que a excede: a subjetividade não é nem o
ponto de partida para a filosofia e nem sua meta.
IHU On-Line - De que forma as filosofias de Bergson e
Deleuze se cruzam? O que têm em comum e no que
diferem, principalmente?
Paola Marrati – Na minha opinião, Deleuze deve a
Bergson mais que a qualquer outro filósofo. A idéia de
que a filosofia necessita de precisão e deve criar
conceitos singulares para objetos singulares, ao contrário
de construir sistemas gerais que possam acomodar todo e
qualquer mundo, como Bergson escreve no início de sua
Introdução à metafísica, estabelece um padrão para o
que Deleuze considera como tarefa da filosofia. Ele
repetidamente reivindica, em Diferença e repetição
(1969) e em algum outro lugar, que a filosofia visa a
agarrar as condições de possibilidade do real e não da
experiência possível, sendo uma elaboração direta de
uma demanda de Bergson. Mas a importância de Bergson
para Deleuze não é apenas metodológica: todo o projeto
de elaboração de uma filosofia das diferenças internas
como alternativa à dialética e à fenomenologia é
profundamente enraizada na interpretação deleuziana de
Bergson. O mesmo segue verdadeiro para a crítica da
negatividade e da ilusão retrospectiva da categoria do
possível, assim como para a concepção do tempo como
virtualidade. De forma mais geral, gostaria de dizer que
Deleuze leva extremamente a sério a idéia de Bergson de
que a filosofia deve dirigir a si a questão da novidade, do
novo no fazer, ao contrário de se voltar para o eterno.
Para Deleuze, tal idéia traz aproximadamente toda
transformação da filosofia e seu próprio trabalho é
dedicado largamente a desdobrar as conseqüências dessa
transformação. Apesar disso, como todos os grandes
filósofos, Deleuze introduziu um novo conjunto de
problemas e conceitos que não podem ser remetidos
outra vez a Bergson somente. Deleuze tem sua própria e
singular voz.
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